Os efeitos normativos e práticos de casamento religioso no direito brasileiro

AUTORES: Anielly Belfort Aires, servidora pública federal do Tribunal Regional Federal da 1ª Região Lourival da Silva Ramos Júnior, titular da serventia extrajudicial de Sucupira do Riachão/MA Marcelo Domingos da Silva Oliveira, secretário judicial da Comarca de São João dos Patos/MA Priscilla Ribeiro Moraes Rêgo de Souza, analista judiciária do Tribunal de Justiça do Maranhão 1 – Introdução O trabalho das serventias extrajudiciais com atribuição de casamento civil revela diversos problemas relacionados ao direito de família, em especial ao casamento e ao seu procedimento, com muitas peculiaridades e implicações no direito de filiação e patrimonial, não perceptível em uma única leitura, apesar de aparentemente fácil. A leitura normativa de casamento eclesiástico, previsto no art. 75, da Lei n.º 6.015/73 (Lei de Registros Públicos), é um texto de fácil compreensão, ao dizer que “o registro produzirá efeitos jurídicos a contar da celebração do casamento”. Em uma primeira leitura, essa norma diz que o registro terá efeito pretérito. A título de ilustração, duas pessoas casaram-se religiosamente no dia 5 de janeiro de 2024, sem prévia habilitação civil na serventia extrajudicial. Ocorre que, após as formalidades legais, com o registro de casamento religioso no dia 15 de março de 2024, exsurge o efeito civil retroativo até 5 de janeiro de 2024, para fins de parentesco e patrimonial. O problema acontece quando o casamento religioso ocorre na vigência do Código Civil de 1916, mas o seu registro é requerido apenas em 2002. Daí surge dúvida quanto ao regime de bens de casamento aplicável; quanto ao modelo de preenchimento de certidão de casamento padronizada pelo Conselho Nacional de Justiça; quanto à natureza jurídica do prazo para o registro de casamento etc. Tais perguntas surgiram em um pedido de casamento religioso na serventia extrajudicial de Sucupira do Riachão/MA, que só aumentaram ao procurar respostas. Na Comarca de Imperatriz do Estado do Maranhão, descobriu-se a existência de registros antigos com autorização judicial. Ademais, também havia dúvida quanto à data do registro de casamento religioso na certidão, quando a celebração fosse muito antiga, ou seja, a celebração ocorreu na década de 70, mas o requerimento de atribuição de efeito civil ao casamento religioso seria apenas em 2024. Na prática, encontrou-se duas maneiras feitas pelos cartórios: enquanto uns colocam a “data da celebração [de casamento]” na parte de anotações da certidão de casamento, outros colocam essa data na parte da “data de registro de casamento (por extenso)”, conforme imagem abaixo do modelo padrão anexado ao Provimento 63/2017, do Conselho Nacional de Justiça, mantido pelo Provimento n.º 149/2017, que 1 institui o Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça - Foro Extrajudicial (CNN/ CN/CNJ-Extra) Para piorar, no bojo das pesquisas, encontrou-se um consorte eclesiástico falecido, mas o outro se considerava “casado” (e não solteiro). Por outro lado, a jurisprudência não é favorável ao requerimento de registro por apenas um dos nubentes sobrevivente, em razão do art. 74 da Lei n.º 6.015/73 (Lei de Registros Públicos), ao dizer que “o casamento religioso, (...), poderá ser registrado desde que apresentados pelos nubentes, com o requerimento de registro (...)” (grifos nosso). Dessa divergência prática, percebeu-se que decorria, na realidade, de dificuldade interpretativa das normas jurídicas sobre casamento religioso e sua evolução legislativa, que atrapalha muito a sua aplicação prática pelos cartórios e autoridades públicas. Por fim, este trabalho discutirá apenas o casamento religioso sob o aspecto civil, sem adentrar em discussão teológica ou interpretativa do direito canônico, embora este seja utilizado neste trabalho. 2 - Do Império à Constituição Federal de 1988 A Igreja Católica era a religião oficial do Império brasileiro, sendo permitido outras religiões em seu culto doméstico, ou particular em casas para isso destinadas, sem forma exterior do Templo, nos termos do art. 5º da Constituição Imperial de 1824. Essa norma constitucional reflete o monopólio da Igreja Católica sobre o casamento religioso e outros atos (confissão, batismo e extrema-unção na hora da morte)1, sacramentado como indissolúvel. Por meio do art. 2º do Decreto n.º 1.144, de 11 de setembro de 1861, o Governo fixou a regulação de registro e provas de casamento de pessoas não católicas, bem como o registro dos nascimentos e óbitos das pessoas que não professavam a Religião Católica, e as condições necessárias para que os Pastores de Religiões toleradas possam praticar atos que produzam efeitos civis. No final do Império, os atos de registro civil ficaram a cargo de Escrivão do Juiz de Paz do 1º ou único distrito de cada paróquia, sob a imediata direção e inspeção do Juiz respectivo, a quem caberia decidir administrativamente quaisquer dúvidas, nos 1FAUSTO, Boris. História do Brasil. 11. ed. São Paulo: Edusp, 2003, p. 60. 2 termos do art. 2º do Dec. n. 9.886, de 7 de março de 1888, o qual regulamentava o registro civil de nascimento, casamento e óbito (de católicos e acatólicos). Com a Proclamação da República, rompendo com o sistema anterior, a nova ordem constitucional só reconhecia o casamento civil, nos termos do art. 72, § 4º, da Constituição Federal de 1891, reforçando o art. 180 do Decreto n.º 181, de 24 de janeiro de 1890, o qual dizia que: “Esta lei [Dec. n.º 181/1890] começará a ter execução desde o dia 24 de maio de 1890, e desta data por deante só serão considerados válidos os casamentos celebrados no Brazil, si o forem de accordo com as suas disposições”. Esse decreto de 1980 também estabeleceu uma norma de transição às causas matrimoniais, ou seja, as causas ainda pendentes (à época de 24 de maio de 1890) relativas ao impedimento, divórcio e anulação permaneciam competentes o foro eclesiástico, ao passo que doravante, “todas as causas matrimoniais ficarão competindo exclusivamente à jurisdição civil” (art. 109 do Decreto 181/1890). A Constituição Federal de 1934, entretanto, tornou lenitiva a rigidez do casamento leigo de 1891, ao permitir o casamento religioso com efeitos civis, observada a prévia habilitação dos consortes perante as autoridades civis, a fim de verificar os casos de impedimentos, nos termos do art. 146 da norma constitucional supra, a saber: O casamento perante ministro de qualquer confissão religiosa, cujo rito não contrarie a ordem pública ou os bons costumes, produzirá, todavia, os mesmos efeitos que o casamento civil, desde que, perante a autoridade civil, na habilitação dos nubentes, na verificação dos impedimentos e no processo da oposição sejam observadas as disposições da lei civil e seja ele inscrito no Registro Civil. Nesse contexto, foi atribuída à autoridade ou ministro celebrante (pároco, pastor etc.) as mesmas funções do Juiz de Paz e do Juiz de Direito, a fim de que, uma vez cumpridas as formalidades da lei civil, a celebração religiosa fosse inscrita no assento de casamento do cartório competente, onde se fez habilitação. Em regulamentação à norma constitucional supra, a Lei n.º 379, de 16 de janeiro de 1937, determinou a inscrição de casamento religioso, após deferimento do juiz competente para habilitação (art. 1º e 2º, da Lei 379/37), a fim de atribuir-lhe os mesmos efeitos do casamento civil, desde o momento de sua celebração (art. 8º, § 2º, da Lei nº 379/37). Note-se que, no § 5º do art. 4º da Lei n.º 379/37, determina que, “se a inscrição for ordenada ulteriormente, retro-agirão todos os seus efeitos à data da anotação tomada pelo oficial”, o texto não fala à celebração do casamento religioso, o qual somente foi corrigido pelo inciso II do art. 4º do Decreto-Lei n.º 3.200/1941, para constar que são substituídas as palavras "à data da anotação tomada pelo oficial, pelas seguinte data da celebração". Com efeito, fica evidente que os efeitos do casamento religioso contam a partir de sua celebração, e não da data de sua inscrição no cartório de registro civil de pessoas naturais, por meio de anotação de seu oficial. 3 Inovando a ordem jurídica anterior, a Constituição Federal de 1945 permitiu não somente o registro de casamento religioso com habilitação prévia, mas também o registro desse casamento com habilitação posterior, nos termos do art. 163, §§ 1º e 2º, da CF/1945. Ademais, o § 1º do art. 163 da CF/1945 determina que, uma vez observados os impedimentos e as prescrições da lei (habilitação prévia), o celebrante ou qualquer interessado (e não somente os consortes) poderá requerer o registro de casamento religioso. Por outro lado, o § 2º do art. 163 da CF/1945 permite apenas aos consortes requerer a inscrição do casamento religioso, quando houver habilitação de casamento após a celebração. Por outro lado, é importante frisar que essa norma constitucional não teve regulamentação na Lei de Registros Públicos (Decreto n.º 4.857/1939). Somente com a Lei n.º 1.110, de 23 de maio de 1950, atribuiu os efeitos civis ao casamento religioso. Nesta legislação, ao contrário da anterior (Lei n.º 379/1937), fixou dois procedimentos para concessão de efeito civil ao referido casamento, com habilitação prévia (art. 2º e 3º, ambos da Lei n.º 1.110/1950) ou posterior (art. 4º e 6º, ambos da Lei n.º 1.110/1950). Entretanto, cabe ressaltar ainda, que somente na habilitação posterior, ainda era necessário o juiz ordenar a inscrição do casamento religioso de acordo com a prova do ato religioso e os dados constantes do processo de habilitação, tendo em vista os elementos do assento de casamento previsto no art. 81 do Decreto nº 4.857/1939 (Lei dos registros públicos). Não se olvide que, em qualquer das modalidades de habilitação prévia ou posterior, a sua inscrição produzirá os efeitos jurídicos a contar do momento da celebração do casamento (art. 7º da Lei n.º 1.110/1950), bem como a inscrição no Registro Civil revalida os atos praticados com omissão de qualquer das formalidades exigida no Código Civil de 1916 (arts. 207 e 208). No tocante à primeira parte do caput do art. 3º da Lei n.º 1.110/1950, referente ao casamento religioso com habilitação prévia, a dita norma dizia que, “dentro nos três meses imediatos à entrega da certidão”, “o celebrante do casamento religioso ou qualquer interessado poderá requerer a sua inscrição, no registro público”. Nesse contexto, é importante frisar que, nem nos artigos 2º ao 3º da Lei n.º 1.110/1950, que regulamentam a habilitação prévia, nem nos artigos 4º ao 6º da Lei supra, que regulamentam a habilitação posterior, não há qualquer tipo de prazo legal para registro do casamento religioso no cartório competente, para atribuir-lhe efeitos civis. Na Constituição Federal de 1967, mantendo a normativa constitucional anterior, ao dizer que o casamento religioso celebrado sem as formalidades terá efeitos civis se, a requerimento do casal, for inscrito no Registro Público mediante prévia habilitação perante a autoridade competente (art. 167, § 3º, da CF/1967). Após a publicação da nova Lei de Registros Públicos, a Lei n.º 6.015, de 31 de dezembro de 1973, alterada pela Lei n.º 6.816/1975, foram incluídas as disposições sobre o registro do casamento religioso para efeito civil (capítulo VII), correspondendo 4 aos arts. 71 até 75, ambos da Lei n.º 6.015/73, e do Casamento em Iminente Risco de Vida (capítulo VIII), correspondendo ao art. 76 da Lei n.º 6.015/73, os quais não foram alterados até o presente momento. Na Constituição Federal de 1988, entretanto, não há previsão sobre o casamento religioso, deixando expresso apenas que o casamento religioso terá efeito civil (art. 226, § 2º), cuja regulamentação encontra-se nos arts. 1.515 e 1.516 do Código Civil de 2002, com natureza de norma geral2, que não revoga as disposições nos arts. 71 até 75, da Lei n.º 6.015/73. Embora o Código Civil de 2002 diga apenas que o registro de casamento religioso com prévia habilitação produza efeitos a partir da data de sua celebração (caput do art. 1.515 do Código Civil), não regulamentou igualmente ao de habilitação posterior (art. 1.516, § 2º, do Código Civil), sendo suprida essa lacuna pelo art. 75 da Lei n.º 6.015/73, ao dizer que “registro produzirá efeitos jurídicos a contar da celebração do casamento”. 2.1 - Análise jurídica do casamento religioso desse período histórico “A Constituição imperial tratou dos cidadãos brasileiros, seus direitos e garantias, mas nada de especial sobre a família e o casamento, salvo sobre a família imperial e sua sucessão no poder”3. Assim, a Igreja Católica determinava, por meio do Concílio Tridentino e pela Constituição do Arcebispado da Bahia, as normas sobre a validade o casamento religioso católico, sendo regulamentado posteriormente a união de pessoas que professavam outras religiões, demonstrando a simbiose entre a Igreja Católica e o Estado. Essa ruptura da Igreja com o Estado foi tão violenta com a Proclamação de República em 1891, que somente era válido o casamento civil, deixando apenas as formalidades e celebrações do casamento religioso, sem qualquer efeito civil. A Constituição Federal de 1934, ao revés, mitigou a rigidez do casamento civil, atribuindo efeitos civis ao casamento religioso, após inscrição no cartório competente. Dessa maneira, o casamento religioso equipara-se ao casamento civil, desde que inscrito no registro civil, retroagindo esses efeitos à data da celebração e dispensando a celebração civil. Ressalte-se que, a partir da Constituição Federal de 1946 até a Emenda Constitucional n.º 01/1969, sempre houve duas alternativas ao casamento eclesiástico equiparado ao civil4: a primeira foi com a prévia habilitação anterior à celebração religiosa; e a segunda, com a habilitação posterior à celebração religiosa, cujos efeitos civis ficam suspensos até sua inscrição no cartório competente. 2Cf. o art. 2º, § 2º, da Decreto-Lei n.º 4.657/1942 - Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro. 3COSTA, Dilvanir José da. A família nas Constituições. Revista de informação legislativa, v. 43, n. 169, jan./mar. 2006, p. 14. Disponível em https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/92305. Acesso em 23 de dezembro de 2023. 4Lei n.º 379/37 (regulamenta o casamento religioso para os efeitos civis); Decreto-Lei n.º 3.200/1941 (Dispõe sobre a organização e proteção da família); Lei n.º 1.110/1950 (Regulamentava o reconhecimento dos efeitos civis ao casamento religioso); Lei n.º 6.015/73 (Lei de Registros Públicos) e Lei n.º 10.406/2002 (Código Civil). 5 Em relação à primeira parte do art. 3º da Lei n.º 1.110/1950, que dispõe sobre o reconhecimento dos efeitos civis ao casamento religioso, cujo texto diz que “dentro nos três meses imediatos à entrega da certidão [de habilitação]”, deve ser lido obrigatoriamente com sua referência expressa ao § 1º do art. 181 do Código Civil de 1916, ao dizer que “se, decorrido esse prazo, não aparecer quem oponha impedimento, nem lhe constar algum dos que de ofício lhe cumpre declarar, o oficial do registro certificará aos pretendentes que estão habilitados para casar dentro nos três meses imediatos”. Aquele dispositivo legal simplesmente dispõe de um prazo decadencial ao certificado de habilitação, e não de um prazo de validade ao casamento religioso. Nesse sentido, afirmava o saudoso jurista Miguel Maria de Serpa Lopes5: Prazo para a inscrição do casamento religioso, com efeitos civis (art. 3.º, da Lei 1.110/50): Esse prazo é de decadência. Decorrido que se encontra, a inscrição não mais pode ser promovida. O único recurso, então, será promover nova habilitação para efeito posterior, como o permite o art. 4.º [da Lei supra]. Ademais, o registro de casamento religioso não é pressuposto de eficácia do ato, mas necessário à sua publicidade6. Ou seja, o casamento religioso é válido e eficaz, ficando suspensa a publicidade de seus efeitos civis até sua inscrição no cartório competente7. Ademais, aquela lógica do art. 3º da Lei n.º 1.110/1950 aplica-se ao art. 73 da Lei n.º 6.015/73, cujo texto diz que “no prazo de trinta dias a contar da realização”, que foi aumentado pelo § 1º do art. 1.516 do Código Civil de 2002, ao dizer que “o registro civil do casamento religioso deverá ser promovido dentro de noventa dias de sua realização”. Ou seja, realizado o casamento religioso com prévia habilitação, o celebrante ou qualquer interessado poderá, apresentando o assento ou termo do casamento religioso, requerer-lhe o registro ao oficial do cartório que expediu a certidão (art. 73 da Lei n.º 6.015/73 c/c o § 1º do art. 1.516 do Código Civil de 2002). No tocante à casamento religioso sem prévia habilitação, note-se que não há previsão de prazo decadencial para inscrição no cartório de registro civil, embora os impedimentos do casamento sejam analisados no momento da apresentação ao oficial de registro civil de pessoas naturais – RCPN. Noutros termos, uma vez realizado o casamento eclesiástico, e não tendo havido anulação judicial ou pela Santa Sé e nem tenha outro tipo impedimento para casar, entende-se possível o registro de casamento 5 SERPA LOPES, M. M. de. Tratado de Registros Públicos. 5ª edição. Livraria Freitas Bastos, 1962, vol. I, p. 271. 6 STF, RE 83859 EDv, decisão plenária, rel. Min. Cunha Peixoto, publicado no DJ 03/07/1979: “O casamento religioso, desde que feita a habilitação prévia, para efeitos civis, no cartório competente, não está sujeito, para sua inscrição, ao prazo de três meses, nem depende, para esse ato, da autorização de ambos os cônjuges. embargos no recurso extraordinário conhecidos, mas rejeitados”. 7Aliás, foi espancado qualquer dúvida desse prazo decadencial de outrora, na parte final do § 1º do art. 1.516 do Código Civil de 2002, ao dizer que, “após o referido prazo [de realizado o casamento religioso], o [seu] registro [no cartório] dependerá de nova habilitação”. 6 religioso a qualquer tempo8, para lhe atribuir efeito civil, sem prejuízo da verificação dos requisitos da inscrição do casamento religioso no momento do pedido ao oficial de RCPN. Assim, é da tradição normativa brasileira que o registro de casamento religioso – com prévia habilitação ou habilitação posterior – terão iguais efeitos civis retroativos à data da celebração, conforme consta desde o § 5º do art. 4º da Lei n.º 379/37, alterado pelo inciso II do art. 4º do Decreto-Lei n.º 3.200/1941, passando pelo art. 7º da Lei n.º 1.110/1950, até o art. 75 da Lei n.º 6.015/73 c/c o art. 1.515 do Código Civil de 2002. Nesse contexto, quando a prova da celebração legal do casamento resultar de processo judicial, deverá ser relido os art. 1.545 do Código Civil de 20029 e o art. 205 do Código Civil de 191610, cujos textos podem levar a uma erronia interpretativa, em razão da seguinte expressão legal: “todos os efeitos civis desde a data do casamento”. Na realidade, como se demonstrou, os efeitos civis encetam a partir da data da celebração, e não da data do registro de casamento. O efeito civil do casamento religioso não é diferente de casamento civil, pois ambos terão a mesma natureza constitutiva ex tunc, pelos seguintes motivos: i) termo inicial dos referidos casamentos é sempre a partir da “data da celebração” (art. 70, 4º, da Lei n.º 6.015/73); ii) a “data da celebração” dos referidos casamentos é sempre anterior à “data de registro de casamento”; e iii) ambos decorrem apenas da vontade dos nubentes, configurando um contrato bilateral especial do direito de família, cujos efeitos são tutelados pelo normas direito público. Por fim, é importante ressaltar a importância do Decreto-Lei n.º 3.200, de 19 de abril de 1941, que dispõe sobre a organização e proteção da família, ao regulamentar situações que ainda hoje são objeto de intenso debate jurisprudencial: i) casamento de colaterais do terceiro grau (arts. 1º ao 3º)11; i) casamento religioso com efeitos civis (arts. 4º e 5º) e bem de família (arts. 19 ao 23). 8STF - RE 88.324/ RJ – Casamento religioso. Inscrição no registro civil. Precedido de habilitação perante oficial do registro civil, não há prazo para qualquer dos cônjuges proceder a sua inscrição, segundo recente decisão do plenário do STF, ao emprestar exegese aos art. 3.º da Lei 1.110/50, orientação que se mantem, mesmo após o advento da Lei 6.105/73, arts. 74 e 75, em harmonia com o disposto na Constituição, art. 175, §§ 2 e 3. Recuso Extraordinário conhecido pelo dissídio pretoriano, mas não provido. Min. Thompson Flores – Relator - 27/11/1979. 9“Art. 1.546 [do Código Civil de 2002]. Quando a prova da celebração legal do casamento resultar de processo judicial, o registro da sentença no livro do Registro Civil produzirá, tanto no que toca aos cônjuges como no que respeita aos filhos, todos os efeitos civis desde a data do casamento”. 10 “Art. 205 [do Código Civil de 1916]. Quando a prova da celebração legal do casamento resultar de processo judicial, a inscrição da sentença no livro do registro civil produzirá, assim no que toca aos cônjuges, como no que respeita aos filhos, todos os efeitos civis desde a data do casamento.” 11 Embora o inciso IV do ar.t 1.521 do Código Civil de 2002 impeça o casamento de colaterais até o terceiro grau, indicando uma aparente antinomia com o arts. 1º e 2º do Decreto-Lei n.º 3.200/1941, que permite o casamento de colaterais, ambos devem ser interpretados harmonicamente, sugerido pelo Enunciado 98 da I Jornada de Direito Civil, uma vez que o decreto-lei trata de casamento avuncular entre tio(a) e sobrinho(a), nos termos da doutrina de Rolf Madaleno: “O impedimento de casamento na linha colateral até o segundo grau é absoluto, e alcança os irmãos bilaterais, quando têm o mesmo pai e a mesma mãe, ou unilaterais, quando descendem de um mesmo pai ou de uma mesma mãe. A cultura social, com forte influência do cristianismo, reputa a união entre irmãos como imoral, incestuosa e contrária à natureza, afrontando a pureza que deve reinar nas famílias. Essa proibição também é de ordem genética, mas encontrou um lenitivo, entre tios e sobrinhos, ao permitir o Decreto-Lei nº 3.200, de 7 Analisada a fase histórica do direito do casamento religioso, será possível responder algumas questões práticas atuais. 3 – A posse de estado de casado no casamento religioso De fato, o sistema normativo brasileiro reconhece apenas 05 (cinco) estados civis: solteiro(a), casado(a), divorciado(a), viúvo(a) e separado(a) judicial, sendo que esta figura jurídica não subsiste mais no ordenamento jurídico brasileiro a partir da decisão do Recurso Extraordinário (RE) 1167478 (Tema 1.053)12, em sede de repercussão geral, embora essa decisão manteve preservado o estado civil das pessoas que já estão separadas por decisão judicial ou escritura pública, por se tratar de um ato jurídico perfeito. Ocorre que o comportamento público e notório do casal eclesiástico, como se fossem marido e esposa, configura uma “posse de estado de casado”, a fim de ser utilizada no cartório de RCPN, quando o casal eclesiástico não possa manifestar vontade ou tenha falecido13, em benefício da prole comum, nos termos do art. 1.545 do Código Civil de 2002. Por outro lado, essa restrição aos casais com prole comum indica ausência de razoabilidade, à luz da evolução do “direito das famílias”14, já que a vontade é o elemento essencial à formação matrimonial civil – entre outros –, concluindo-se, portanto, que a natureza jurídica do casamento é potestativa e incondicional, a despeito da existência de filhos. Aliás, é possível encontrar o conceito de direito das famílias no sistema normativo brasileiro, a exemplo do art. 5º, inciso II, da Lei n.º 11.340/2006, que dispõe sobre a Lei da Maria da Penha, ao definir família como uma comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa. 19 de abril de 1941, o casamento entre colaterais de terceiro grau, uma vez comprovada que a sua relação não será nociva para a prole porventura gerada” (MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 111). 12 STF decide que exigência de separação judicial não é requisito para divórcio. Para os ministros, a previsão do Código Civil perdeu validade com entrada em vigor de emenda constitucional. Disponível em https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=518572&ori=1#:~:text=A%20tese%2 0de%20repercuss%C3%A3o%20geral,figura%20aut%C3%B4noma%20no%20ordenamento%20jur%C3 %ADdico. Decisão publicada no DJe em 09/11/2023. 13 Em sentido contrário, mesmo com filhos conhecidos, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo decidiu da seguinte forma: TJ/SP - Ap. n° 318.030.4/5-00 – 10.ª Câmara de Direito Privado - REGISTRO CIVIL - Pedido do autor de registro, no ofício competente, do casamento religioso de seus avós paternos, já falecidos - Inadmissibilidade — Ato religioso que não foi precedido de processo legal de habilitação - Efeitos civis, com o necessário registro, que dependeria, destarte, da livre expressão da vontade uniforme dos nubentes, de que desejam assumir os direitos e obrigações consequentes - Exegese que se extrai da evolução legislativa a contar de 1934 (Lei n° 1.110/50, Lei n° 6.015/73, arts. 1.516, § 2o e 1.525 do CC vigente) - Apelo não provido - Des. Paulo Dimas Mascaretti – Relator - São Paulo, 20 de abril de 2004. 14 Para um estudo mais aprofundado: DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 8ª. Edição, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2022; e MADALENO, Rolf. Direito de Família. Rio de Janeiro: Forense, 2017. 8 Outrossim, não se olvide que, conquanto a formalização do casamento religioso decorra de junção de manifestação dos nubentes + do pároco, nos termos do cânone 1108 do Código de Direito Canônico15, a continuidade desse casamento não decorre de vontade do pároco, mas unicamente dos nubentes16. Outrossim, a mesma lógica ocorre no casamento civil, pois, embora o matrimônio dependa da junção de manifestação dos nubentes + da autoridade civil (Juiz de Paz ou Juiz de Direito), nos termos do art. 1.535 do Código Civil de 2002, a continuidade desse casamento não decorre de vontade da autoridade civil, mas unicamente dos nubentes. Ademais, e à luz do Código Civil de 2002, é possível entender o casamento religioso como uma posse de estado de casados, em razão de convivência prolongada, independente do direito de filiação, especialmente quando as pessoas de boa-fé acreditam regularizadas a sua vida matrimonial pelo casamento religioso, a ponto de o Supremo Tribunal Federal considerar, nos autos do RE 51905, 1ª Turma, DJ 17-12 1962, que “o estado prolongado de casado, prestigiado pela boa-fé e pelo casamento religioso, é de ser considerado como de direito”. Nesse contexto, e fazendo uma releitura do art. 1.545 do Código Civil de 2002, à luz da evolução conceitual do direito das famílias17, tudo indica que a posse de estado de casado não se restringe aos casais com prole comum18. Pois bem, considerando o movimento de desjudialização impulsionado pelo sistema de multiportas de solução de conflitos19, tudo indica que o casamento religioso se configura uma posse de estado de casado, nos moldes do art. 1.545 do Código Civil 15 Para melhor compreensão do tema, transcreve-se integralmente o cânone 1108 do Código de Direito Canônico: “Cân. 1108 – § 1. Somente são válidos os matrimónios contraídos perante o Ordinário do lugar ou o pároco, ou o sacerdote ou o diácono delegado por um deles, e ainda perante duas testemunhas, segundo as regras expressas nos cânones seguintes e salvas as excepções referidas nos câns. 144, 1112, § 1, 1116 e 1127, §§ 1-2”. Disponível em https://www.vatican.va/archive/cod-iuris canonici/portuguese/codex-iuris-canonici_po.pdf. Acessado em 25 de dezembro de 2023. 16 “§ 2 [do Cân. 1057 do Direito Canônico]. O consentimento matrimonial é o acto da vontade pelo qual o homem e a mulher, por pacto irrevogável, se entregam e recebem mutuamente, a fim de constituírem o matrimónio” e “Cân. 1096 — § 1 [do Direito Canônico]. Para que possa haver consentimento matrimonial, é necessário que os contraentes pelo menos não ignorem que o matrimónio é um consórcio permanente entre um homem e uma mulher, ordenado à procriação de filhos, mediante alguma cooperação sexual.” Disponível em https://www.vatican.va/archive/cod-iuris canonici/portuguese/codex-iuris-canonici_po.pdf. Acessado em 25 de dezembro de 2023. 17 “O que é família? O mundo moderno trouxe tantas mudanças nas relações sociais e particulares que algumas pessoas talvez digam que é mais fácil viver em uma família do que conceituá-la. A visão clássica de entidade familiar, baseada em vínculos biológicos e matrimoniais – na perspectiva adotada pelo Código Civil de 1916, por exemplo –, foi substituída, gradativamente, pelo reconhecimento de novos laços familiares, mais relacionados à afetividade e à ideia de pertencimento entre as pessoas”. Disponível em https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2023/08102023-Familias-e familias-consequencias-juridicas-dos-novos-arranjos-familiares-sob-a-otica-do-STJ.aspx. Acessado em 23 de dezembro de 2023. 18 A ideia de prole comum também é discriminatória em relação ao direito de filiação, uma vez que – apesar de estas ocorrem de três formas (adotiva, presuntiva e natural – art. 1.596 do Código Civil) –, os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação (art. 227, § 6º, da Constituição Federal de 1988). 19 COELHO, Marcus Vinicius Furtado. O sistema de Justiça Multiportas no novo CPC. Disponível em https://www.migalhas.com.br/coluna/cpc-marcado/330271/o-sistema-de-justica-multiportas-no-novo-cpc. Acessado em 23 de dezembro de 2023. 9 de 2002, passível de servir como prova no cartório extrajudicial, quando não possa manifestar sua vontade ou tenha falecido, independente de prole comum, para obtenção dos efeitos civis decorrente do registro de casamento (patrimonial e filiação). Portanto, os casais eclesiásticos são realmente solteiros, conquanto configurada a posse de estado de casado, cuja situação jurídica é um meio de prova no extrajudicial, para solicitar o registro de casamento religioso, mesmo com o decesso dos nubentes, a fim de obter os efeitos civis retroativos. 4 – Do regime de bens no casamento religioso Um dos efeitos do registro de casamento religioso será o regime de bens, nos termos do caput do art. 1.639 do Código Civil de 2002, uma vez que deve observar os requisitos do casamento civil, nos termos do caput do art. 71 e art. 74, parágrafo único, ambos da Lei n.º 6.015/73. Dessa maneira, é deveras importante conhecer os marcos temporais de regime de bens de casamento. No caso, até 26 de dezembro de 1977, época inicial de publicação do art. 50 da Lei n.º 6.515/77, conhecida como Lei do Divórcio, alterou o art. 258 do Código Civil de 1916, cujo regime legal de bens passou da comunhão universal para comunhão parcial de bens, foi mantido no art. 1.640 do Código Civil de 2002. Por exemplo, quando um casal eclesiástico solicita em 2023 o registro a posteriori de casamento religioso celebrado em 1976, sem constatação de anulação judicial ou da Santa Sé desse matrimônio no procedimento de habilitação, inclusive com apresentação de certidão atualizada de nascimento demonstrando o estado civil de solteiros, o regime de bens legal dos consortes será a comunhão universal, e desde que ausente pacto antenupcial lavrado em 2023. Assim, é muito importante conhecer os marcos temporais de regimes de bens de casamento (comunhão universal ou parcial), a fim de explicar aos nubentes o tipo de regime de legal ou a possibilidade de alterá-lo por meio de pacto antenupcial. 5 – A data de registro de casamento religioso e sua importância prática Quando se trata de escolher entre a data da celebração ou a data de seu registro na certidão de casamento, há divergência no tocante ao preenchimento do modelo padrão de certidão previsto no Anexo II do Provimento n.º 63/2017, do Conselho Nacional de Justiça, mantido pelo art. 472 do Provimento 149/2023, do Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça – Foro Extrajudicial (CNN/CN/CNJ-Extra). Essa divergência foi causada pelo próprio provimento do Conselho Nacional de Justiça, pois, enquanto o art. 70, número 4º, da Lei n.º 6.015/73 determina “a data (...) da celebração do casamento” no assento de casamento; o anexo II do Provimento n.º 63/2017 do Conselho Nacional de Justiça, ao revés, determina exatamente o contrário: a “data de registro de casamento (por extenso)”, informando a “data de celebração” do casamento religioso no campo de “averbações/anotações a acrescer”, conforme imagem abaixo: 10 Com efeito, apesar dessa aparente divergência, é tradição de nosso direito brasileiro registrar a data da celebração [de casamento]20, encetada pelo § 5º do art. 4º da Lei n.º 379/37, alterado pelo inciso II do art. 4º do Decreto-Lei n.º 3.200/1941, passando pelo art. 7º da Lei n.º 1.110/1950, até o vigente art. 75 da Lei n.º 6.015/73 c/c o art. 1.515 do Código Civil de 2002. Aliás, e considerando esse contexto normativo, será necessária uma releitura do art. 1.639, § 1º, do Código Civil de 2002, ao dizer que “o regime de bens entre os cônjuges começa a vigorar desde a data do casamento”, em vez de a “data da celebração do casamento”. Portanto, não se deve colocar a data do registro de casamento na certidão de casamento. Ademais, é importante a data da celebração na certidão de casamento porque, entre os diversos efeitos jurídicos, há os efeitos patrimoniais e de filiação presumida. Por exemplo, a celebração do casamento religioso foi em 1976, quando o regime de bens legal era comunhão universal. No interregno de 1976 até 2023, o casal obteve propriedades urbanas e rurais, registrados nos cartórios de imóveis. Ocorre que, em 2023, os consortes eclesiásticos resolveram dar efeito civil ao seu casamento religioso. Neste caso, uma vez inscrita a data da celebração no campo de data de registro de casamento (por extenso), conforme consta no modelo padrão de certidão de casamento, do anexo II do Provimento n.º 63/2017 do CNJ, os efeitos civis serão a partir da data da celebração, implicando, por conseguinte, a comunicação retroativa de bens de 2023 até 1976, independente de registro de imóveis, por força do regime de bens. Não obstante, é sempre recomendável averbar tal situação no cartório de imóveis, em razão da Lei n.º 13.097/2015, que alterou diversas leis tributárias, financeira e civil, cujo art. 54 dessa Lei determina que “os negócios jurídicos que tenham por fim constituir, transferir ou modificar direitos reais sobre imóveis são eficazes em relação a atos jurídicos precedentes, nas hipóteses em que não tenham sido registradas ou averbadas na matrícula do imóvel” (grifos nosso). No tocante à filiação presumida nos 180 (cento e oitenta) dias após convivência conjugal (art. 1.597, inciso I, do Código Civil de 2002 e art. 338, inciso I, do Código Civil de 1916), também reflete diretamente no efeito civil retroativo do registro da data de celebração de casamento religioso. 20 Cf. p parágrafo único do art. 74 da Lei n.º 6.015/73 que determina a observância do art. 70 da Lei n.º 6.015/73. 11 Por exemplo, a celebração de um casamento eclesiástico ocorreu em 1976, sendo que tiveram quatro filhos, dos quais somente tiveram a maternidade no registro de nascimento deles, em razão de o pai nunca estar presente no momento do registro, por causa de trabalho fora do convívio conjugal. Em 2023, resolveram registrar o casamento religioso no cartório de RCPN, dando efeito civil retroativo à data da celebração, inclusive no tocante ao direito de filiação. Nesse sentido, há previsão no art. 488, § 3º, do Prov. 149/2023, que dispõe sobre Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça – Foro Extrajudicial (CNN/CN/CNJ-Extra), ao dizer que “A paternidade ou a maternidade também poderá ser lançada no registro de nascimento por força da presunção estabelecida no art. 1.597 do Código Civil, mediante apresentação de certidão do casamento com data de expedição posterior ao nascimento.” Entretanto, se o casal tiver filho maior, deverá o oficial providenciar a assinatura dele, com o reconhecimento de firma, no preenchimento de termo de paternidade, nos termos do art. 498 do Prov. 149/2023, do CNN/CN/CNJ-Extra. Verifica-se, portanto, o quão é importante coloca a data de celebração na certidão de casamento por causa dos diversos efeitos jurídicos, em especial o patrimonial e de filiação presumida, bem como em observância ao princípio da legalidade, que é uma tradição no direito brasileiro, exigir a data da celebração no registro de casamento religioso. 6 – É possível registrar o casamento religioso quando falece os nubentes? Em relação ao casamento religioso sem prévia habilitação, o art. 74 da Lei n.º 6.015/73 exige, entre outros documentos, o requerimento dos nubentes, por se tratar de um ato personalíssimo, cuja principal finalidade será a verificação de inexistência de impedimentos (parágrafo único do art. 74 da Lei n.º 6.015/73 c/c o art. 1.521 do CC/02) e também de causas suspensivas (art. 1.523 do CC/02), além da identificação dos nubentes, de sua aptidão jurídica para o casamento, definição do regime de bens, nome que passaram a usar. No casamento civil, há quatro fases sequenciais e obrigatórias: i) a primeira é a declaração dos nubentes, no momento do requerimento de habilitação (art. 1.525 do CC/02); ii) a segunda, a verificação dos impedimentos (art. 1.521 do CC/02) e de causas suspensivas (art. 1.523 do CC/02); iii) a terceira, a celebração perante autoridade civil ou religiosa (art. 1.535 do CC/02); e por fim, a quarta, o registro do casamento civil. No casamento religioso com habilitação posterior, também há quatro fases: i) a primeira é o pedido à autoridade ou ministro religioso; ii) a segunda, a celebração de casamento com esta autoridade ou ministro; iii) a terceira, o registro dessa celebração em termo ou assento de casamento eclesiástico; e por fim, iv) o pedido de registro desse casamento na serventia de RCPN, para lhe atribuir efeito civil retroativo à data da celebração. Nesse contexto, fica evidente a manifestação expressa dos nubentes do deseja de constituir uma união, consubstanciada em um documento oficial de instituição religiosa, 12 a qual tem validade e eficácia, demonstrada pela origem e evolução normativa do casamento religioso no direito brasileiro. Dessa maneira, quando o art. 1.516 do Código Civil de 2002 diz que “o registro do casamento religioso submete-se aos mesmos requisitos exigidos para o casamento civil”, entende-se que o requerimento do casal, exigido nos termos do § 2º do art. 1.516 do CC/2002, pode ser substituído por outro interessado, nos moldes do § 1º do art. 1.516 do CC/2002, quando um dos nubentes faleceram, uma vez que essa vontade já foi documentada de maneira oficial pela autoridade ou ministro religioso, sob pena de negar a própria validade e eficácia do casamento religioso. No caso, se a declaração dos nubentes já consta em documento da Igreja Católica reconhecido pelo direito brasileiro21, bem como não há declaração de invalidade pela Santa Sé22 e nem mesmo anulação pelo Judiciário, então, tudo indica que a exigência de requerimento dos nubentes, nos termos do art. 74 da Lei n.º 6.015/73, poderá ser substituída por outros interessados, a exemplo dos nubentes sobrevivente, dos filhos e netos. Entretanto, essa interpretação é minoritária, pois ainda não se encontra abrigo na jurisprudência23. Ademais, o comportamento público e notório do casal eclesiástico, como se fossem marido e esposa, configura a “posse de estado de casado”, passível solicitação no cartório de RCPN, quando não possam manifestar vontade ou tenham falecido (art. 1.545 do Código Civil de 2002). Nesse contexto, e conquanto seja uma posição minoritária, entende-se perfeitamente possível o registro de casamento religioso com o decesso de uma das partes, em razão dos seguintes motivos: i) o casamento religioso é válido e eficaz independente de registro no cartório de civil de pessoas naturais; ii) as partes devem estar solteiras, demonstrando pela certidão de nascimento atualizada; iii) as normas sobre a união eclesiástica são reconhecidas pelo Brasil (art. 12 do anexo do Decreto Federal n.º 7.107/2010 c/c o Decreto Legislativo n.º 698/2009); e, por fim, iv) não poderá haver declaração de invalidade desse casamento pelo órgão de controle superior da Santa Sé. 7 - Conclusão 21 Cf o art. 12 do anexo do Decreto Federal n.º 7.107/2010 c/c o Decreto Legislativo n.º 698/2009. 22 “O art. 12 do Decreto Legislativo n. 698/2009, bem como o art. 12 do Decreto Federal n. 7.107/2010 (ambos com a mesma redação) dispõem que a homologação de sentenças eclesiásticas em matéria matrimonial será realizada nos termos da legislação brasileira atinente a matéria, de modo que, confirmadas pelo órgão superior de controle da Santa Sé são consideradas sentenças estrangeiras e deverão ser homologadas de acordo com a legislação brasileira vigente. Arguição de inconstitucionalidade que se rejeita (emenda de acórdão do STJ, SEC n. 11.962/EX, rel. Min. Felix Fischer, Corte Especial, DJe de 25/11/2015). 23 Em sentido contrário, mesmo com filhos conhecidos, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo decidiu da seguinte forma: TJ/SP - Ap. n° 318.030.4/5-00 – 10.ª Câmara de Direito Privado - REGISTRO CIVIL - Pedido do autor de registro, no ofício competente, do casamento religioso de seus avós paternos, já falecidos - Inadmissibilidade — Ato religioso que não foi precedido de processo legal de habilitação - Efeitos civis, com o necessário registro, que dependeria, destarte, da livre expressão da vontade uniforme dos nubentes, de que desejam assumir os direitos e obrigações consequentes - Exegese que se extrai da evolução legislativa a contar de 1934 (Lei n° 1.110/50, Lei n° 6.015/73, arts. 1.516, § 2º e 1.525 do CC vigente) - Apelo não provido - Des. Paulo Dimas Mascaretti – Relator - São Paulo, 20 de abril de 2004. 13 Portanto, tudo indica ser imprescindível conhecer a evolução jurídica sobre o casamento religioso do Império até a República Federativa do Brasil, a fim de defini-lo válido e eficaz, independente do registro em cartório. Mas somente após inscrição no cartório competente, a publicidade do casamento religioso tinha o força para alterar o estado civil dos consortes, a partir do efeito civil retroativo, contado a partir de celebração. Em razão desse efeito civil retroativo do casamento religioso refletir no direito intertemporal, o oficial deverá ficar atento ao tipo de regime legal de bens de casamento do Código Civil de 1916 (comunhão universal) e da Lei de Divórcio de 28 de dezembro de 1977 (comunhão parcial de bens). Por fim, e conquanto não seja permitido legalmente, adota-se um entendimento não aceito jurisprudencialmente, qual seja, a possiblidade de registro de casamento religioso com habilitação posterior, por apenas de um dos consortes, em razão do falecimento do outro, pelos seguintes motivos: i) o casamento eclesiástico válido e eficaz, por si só; ii) ausência de sua anulação pelo Judiciário ou Santa Sé; e iii) comprovação de estado civil de solteiros pela certidão de nascimento atualizada. Do contrário, quando se nega o pedido de registro de casamento religioso simplesmente por um dos consortes faleceu, por ausência de manifestação prévia, é negar a própria vigência das normas canônicas sobre casamento eclesiásticas, reconhecidas pelo Estado brasileiro. REFERENCIAS COELHO, Marcus Vinicius Furtado. O sistema de Justiça Multiportas no novo CPC. Disponível em https://www.migalhas.com.br/coluna/cpc-marcado/330271/o-sistema-de-justica-multiportas-no-novo-cpc. Acessado em 23 de dezembro de 2023. COSTA, Dilvanir José da. A família nas Constituições. Revista de informação legislativa, v. 43, n. 169, jan./mar. 2006, p. 14. Disponível em https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/92305. Acesso em 23 de dezembro de 2023 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 8ª. Edição, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2022. MADALENO, Rolf. Direito de Família. Rio de Janeiro: Forense, 2017. SERPA LOPES, M. M. de. Tratado de Registros Públicos. 5ª edição. Livraria Freitas Bastos, 1962, vo. I.

EEA85D71F0FF30_casamentoreligioso.pdf (migalhas.com.br)

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