As teorias da causalidade e suas aplicações nos tribunais brasileiros

O nexo de causalidade é elemento indispensável na formação do dever de reparar no âmbito da responsabilidade civil. Afigura-se na demonstração de uma relação de causa e efeito entre o ato ilícito e o dano. O que é simples, no entanto, em determinadas circunstâncias, torna-se complexo. A dificuldade se encontra, especialmente, quando há variadas condições ou causas que se articulam e se interlaçam na produção de um resultado (evento danoso).


No afã de solucionar a questão sobre a imputação de autoria e a atribuição de danos surgiram, historicamente, uma série de formulações teóricas aplicáveis aos casos judiciais, como as mais conhecidas, teoria da "equivalência das condições", da "causalidade adequada", e do "dano direto e imediato".1 O propósito é o de individualizar a causa juridicamente relevante e estabelecer um elo, de um lado, entre o ilícito e o dano-evento, e, de outro, entre o dano-evento e as consequências que serão objeto de reparação., cumprindo assim a sua dupla função.2


As teorias causais assumiriam a tarefa de prover critérios etiológicos de ligação, qualificando condições como causas relevantes à produção de danos. Oriundas das ciências naturais migraram ao direito penal3, e dele ao direito civil, ganhando um campo fértil na responsabilidade civil.4


A referência e utilização das teorias na prática judicial, no entanto, não é isenta de dificuldades; são comuns os desacordos semânticos e conceituais, a incompreensão e a confusão a respeito das diversas elaborações apresentadas pela doutrina. A crítica é ainda mais drástica quando se vislumbram decisões que, ao fim e ao cabo, recorrem à regra de "bom senso"; o julgador decide tendo como critério a "razoabilidade", ou seu "senso de justiça", apontando uma elaboração teórica apenas para satisfazer o juízo dado.5


Apesar disso, as teorias podem servir como chaves de compreensão e aplicação normativa, contribuindo para assentar conceitos6 e para a hermenêutica das regras aplicáveis.7 Má aplicadas, ou dissociadas das suas elaborações discursivas, afastadas de rigor científico e da esperada comunicabilidade intersubjetiva que suas definições e acordos semânticos propiciam, é porta de entrada para a incerteza, à falta de coerência, e ao alargamento das hipóteses de dano, muitas vezes calcado em paradigmas morais.8


As dificuldades enfrentadas na coordenação e no domínio conceitual das teorias da causalidade, e a incompreensão de suas bases discursivas, são empecilhos à aplicação funcional na prática judiciária. E nesse ponto é importante dizer que, no ato decisório, a escolha por uma ou outra proposição teórica importa obter soluções distintas; o que reforça a importância do estudo analítico e a necessidade do debate quando da utilização pelos tribunais. E do imprescindível esforço por parte da doutrina em definir e elaborar conceitos coerentes a propósito da aplicação das teorias da causalidade, ou mesmo na justificação do seu fenômeno na perspectiva jurídica.


A escolha, por exemplo, da teoria da equivalência das condições (ou conditio sine qua non) para a resolução de um caso concreto resulta em admitir que múltiplos eventos são capazes de produzir o dano, e dele se ampliar as consequências, alargando a zona de indenização. É o caso da situação em que o agente responde pelos eventos mais graves, independente da interposição de novas causas, pressupondo que o desencadear causal que dá início aos eventos subsequentes é condição para o fenômeno como um tudo, é conditio sine qua non do resultado.


Na teoria causalidade adequada, por sua vez, o parâmetro de aferição das consequências está no critério de verificação dos acontecimentos segundo o curso ordinário das coisas; isto é, na máxima da experiência humana. Para essa vertente teórica, é causa de um determinado evento a que normalmente o produz, segundo a regularidade dos acontecimentos. Vale dizer: a teoria da causalidade adequada passou ao longo do tempo por um processo de elaboração e reelaboração, resultando em diferentes compreensões sobre o seu conteúdo. A multiplicidade de perspectivas sobre o que se entende por "causa adequada" torna a tarefa de utilizá-la ainda mais complexa.


Em tese de doutoramento sobre o tema, este autor filiou-se à utilização dessa proposição teórica, da causa adequada, procurando nela identificar elementos de distinção entre causas. A tese propôs a utilização de um referencial de observação, tendo como parâmetro o nominado observador experiente, um standard de observação dos acontecimentos na ótica da regularidade, referenciada no conjunto da experiência humana. Utiliza-se aí o critério de previsibilidade objetiva.9


Nos tribunais brasileiros, mesmo diante de um posicionamento errático nos diversos julgados que abordam as teorias causais, vislumbra-se, a partir de decisões da Corte Suprema, a adoção explícita de um critério de aferição da causalidade jurídica a segundo uma teoria em particular: a que remete a locução "dano direto e imediato", extraída do artigo 403 do Código Civil - destinada ao incumprimento de obrigações contratuais e, por extensão, aplicada à responsabilidade extracontratual.10


O precedente histórico sobre o tema é julgado de 1992 no STF sob a relatoria do Ministro Moreira Alves (RE n.º 130.764-PR). Nele, apreciou-se a responsabilidade civil objetiva do Estado em circunstância que foragido do sistema prisional cometera o crime de assalto e causara danos a terceiros. O relator aponta em seu voto a doutrina de Agostinho Alvim, na obra Da inexecução das obrigações (1949), discorrendo sobre o que seria uma subteoria da causalidade que tem como elemento central a exigência de um liame de necessidade.11 O julgado parte do artigo 1.060 do CC de 16 (atual 403), que estabelece a responsabilidade pelos danos que decorrem de forma direta e imediata da inexecução de uma obrigação, sustentando que a chave de leitura para essa locução estaria na comprovação de um nexo de necessariedade que ocorre de forma ininterrupta (por isso também referir-se a ela como "teoria da interrupção causal"). O fato novo que se interpusesse na relação causal iniciada instauraria nova cadeia de acontecimentos distintos, portanto, não imputáveis à primeira causa verificada.12


O acórdão do STF se tornou leanding case sobre a matéria. A autoridade da Corte Suprema trazia argumentação de caráter persuasivo sobre como identificar a relação de causalidade e qual seu fundamento jurídico e teórico.13


Em 2020, em acórdão que julgou tema de repercussão geral14, em situação idêntica, fuga de presídio (omissão do Estado) e ocorrência de danos (causados pelo foragido), a questão volta à baila, e ganha o status de tese.15 O Ministro Alexandre de Moraes, em idêntica ratio decidendi, traz em seu voto a fonte doutrinária indicada no acórdão anterior.


Em ambos, foi afastada a responsabilidade do Estado considerando que entre a fuga e a conduta criminosa que resultou nos danos teriam se interposto novos fatos, interrompendo o nexo causal. A temporalidade (considerada no caso o período entre a fuga e o dano) e a inserção de eventos independentes (como formação e quadrilha, por exemplo), conjuntamente verificados, ao teor da decisão, teriam rompido a cadeia causal iniciada com a omissão do Estado. O dano havido não ocorrera em ordem direta e imediata (necessária e não interruptiva), excluindo a responsabilidade estatal.


A base discursiva aqui, e a possibilidade de sua eficácia vinculante (art. 985, CPC), na moldura fática apresentada, passa a oferecer um critério de interpretação que se associa à lógica da teoria causal do dano direto imediato, em sua vertente da necessariedade, de modo extensivo aos casos futuros.


Não se tem dúvida de que há muito o que dizer e analisar sobre o tema da causalidade e o desenrolar de suas proposições teóricas, sendo também indiscutível que na atividade jurisdicional existe a necessidade de coordenar conceitos, apoiados na clareza e no debate que é fornecido também pela doutrina, evitando a multivocidade, ambiguidade semântica, incoerência discursiva.16 E, que, num processo continuum, podem ser superados na própria elaboração discursiva e devidamente justificada.


O fenômeno da causalidade, em si, é um desafio à percepção; vislumbrá-lo sob a ótica do Direito, em sua ficcionalidade jurídica, pressupõe tomar decisões que atendam aos princípios da responsabilidade civil. A escolha teórica e sua adequada fundamentação jurídica é um permanente desafio que implica o esforço analítico e a cooperação entre doutrina (produção científica) e a atividade jurisdicional (interpretativa e hermenêutica) para a resolução de casos e da reparação de danos.


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1 Outras teorias começam a surgir na doutrina tratando da causalidade sob a perspectiva estatística, em substituição a substituição da lógica da certeza para a da probabilidade, vide: FACCHINI NETO, Eugênio. Julgando sob o signo da incerteza: os novos ventos da responsabilidade civil sopram a favor das vítimas de danos. RJLB - Revista Jurídica Luso-Brasileira, [s.l.], v. 5, p. 839-878, 2020. Ainda, Luiz Otavio Rodrigues Jr. apresenta uma crítica sobre o desenvolvimento de novas "espécies de causalidade", como a "probabilística", baseada em fundamentos matemáticos, referindo que não se deve confundi-la com os conceitos de "causalidade alternativa" e "presuntiva", examinadas pela doutrina brasileira desde a década de 1950; aponta, em conclusão, que o discurso da flexibilização do nexo de causalidade não deve conduzir a transformação da responsabilidade civil em instrumento de justiça distributiva. RODRIGUES, Luiz Otavio. Nexo causal probabilístico: elementos para a crítica de um conceito. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 8. ano 3. p. 115-137. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2016.


2 A causalidade possui uma dupla função: de um lado, identificar a autoria do evento danoso, e de outro, estabelecer a extensão das consequências indenizáveis. Adriano de Cupis refere que a causalidade possui um papel na determinação do "conteúdo do dano" (in: DE CUPIS, Adriano. Il danno. Teoria Generale della responsabilità civile. Milano: Giufffré, 1946, p. 105.)


3 ANTOLISEI, Francesco. Il rapporto di causalità nel diritto penale. Torino: Giappichelli, 1934, p. 29-135.


4 HART, H.L.A.; HONORÉ, Tony. Causation in the law (1959), Oxford: Claredon, 2ª ed, 2002, 431-498.


5 Tepedino afirma que os "Tribunais fixam o nexo causalidade de forma intuitiva" que assim o fazem "de modo eclético e atécnico", que em suas motivações as Cortes estariam na realidade m busca de um "liame de necessariedade" (in: TEPEDINO, Gustavo.  Notas sobre o nexo de causalidade. Revista Jurídica, n.º 296, Junho, 2002, p. 11. O autor ressalta, ainda, em artigo sobre o nexo causal na jurisprudência do STJ, que "a jurisprudência do STJ procurou, em faces de situações de difícil solução no campo da responsabilidade civil, adotar critérios para delimitar a verificação do nexo de causalidade, a obstar que, no louvável intuito de assegurar a efetividade da reparação, se abandonem os pressupostos técnicos indispensáveis ao dever de reparar, notadamente o dano e o nexo de causalidade. Impede-se, assim, a adoção de soluções que no afã de assegurar a reparação, ameaçam a segurança jurídica e a iniciativa econômica privada, além de banalizar a responsabilidade civil" (in TEPEDINO, Gustavo. O nexo de causalidade na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça., p. 485, in FRAZÃO, Ana; TEPEDINO, Gustavo (coord.). O Superior Tribunal de Justiça e a Reconstrução do Direito Privado. São Paulo: Editora Revista do Tribunais, 2011). Gisela Sampaio da Cruz, sobre o nexo causal na jurisprudência, em obra de 2005, elenca julgados de diferentes Tribunais de Justiça, concluindo que a teoria do dano direto e imediato prevalece, no entanto concorda com Tepedino a respeito da atecnia na aplicação teórica dos casos. (in: CRUZ, Gisela Sampaio da. O problema do nexo causal na Responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 122 e ss.).


6 Judith Martins Costa afirma que na responsabilidade civil estão sujeitas a plurivocidade as palavras "ilícito", "dano", "nexo causal", "indenização", sendo necessário, por isso, buscar um "critério de identificação". p. 392, in: MARTINS-COSTA, Judith. A linguagem da responsabilidade civil. In: BIANCHI, José Flávio; MENDONÇA PINHEIRO, Rodrigo Gomes de; ARRUDA ALVIM, Teresa (Coord.). Jurisdição e Direito Privado: Estudos em homenagem aos 20 anos da Ministra Nancy Andrighi no STJ. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, p. 389-418.


7 A definição de conceitos permite a apreensão e o controle racional da própria linguagem utilizada em seu respectivo regime jurídico, vide: MARTINS-COSTA, Judith. A linguagem da responsabilidade civil, ob. cit., p. 389-418.


8 É importante distinguir, e não se está tratando aqui, os casos que envolvem a responsabilidade do grupo, ou da chamada causalidade alternativa ou suposta (cf. COUTO E SILVA, Clóvis. Responsabilidad alternativa y acumulativa. In: FRADERA, Vera (org.). O direito privado brasileiro na visão de Clóvis do Couto e Silva. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 1997, 235-242.), que estabelece uma presunção causal, ampliando a responsabilidade, por ato de membro não identificado, a um grupo determinado (tema que já era objeto da obra de Vasco Della Giustina (in: GISUTINA, Vasco Della. Responsabilidade Civil dos grupos. Rio de Janeiro: Aide Editora., 1991).


9 MAGADAN, Gabriel de Freitas Melro. Responsabilidade civil extracontratual. A causalidade jurídica na seleção das consequências do dano. Rio de Janeiro: Editora dos Editores, 2016, p. 65-78.


10 A regra tem sua origem no Code Civil (art. 1.150) francês e encontra transcrição idêntica, não sé entre nós, mas no Código Italiano (de 1865, no art. 1.228, e no de 1942, art. 1.223). A mesma situação de extensão aos casos de responsabilidade civil é verificada na análise comparatista da jurisprudência desses países. A fonte histórica da locução, e sua indicada chave, baseada na necessidade, é extraída das passagens da obra de Pothier. A ilustração do jurista francês para a necessidade de selecionar as consequências do dano (e limitar a extensão da indenização) é o da "vaca pestilenta". O animal adquirido por um fazendeiro contamina o seu rebanho, e traz uma cascata de consequências prejudiciais. Destacadas: (i) a morte dos demais animais do rebanho, (ii) a perda de colheita pela impossibilidade de arar as suas terras e (iii) a bancarrota do fazendeiro que não fica inadimplente em relação as suas obrigações financeiras. Nas palavras de Pothier o devedor não deve responder pelas consequências qui non seulement n'en sont qu'un suíte éloignée, mais qui n'en sont pas une suíte nécessaire et qui peuvent avoir d'autre causes (POTHIER, Traité des obligations, Ouvres I, Bruxelles, MDCCCXXXI, n. º 67, p. 45). Giovana Visintini, a propósito do dispositivo no ordenamento italiano, refere que a "finalidade perseguida" pelo legislador foi de excluir o ressarcimento das consequências que se apresentassem como "anormais" em relação ao incumprimento obrigacional, "e quindi espresisione di um rischio, che non è necessariamente ínsito nela mancata esecuzione della prestazione" (in VISINTINI, Giovana. Cos'è la responsabilità civile. Fondamenti della disciplina dei fatti illeciti e del inadempimento contrattuale. Edizione Roma: Scientifiche Italiane, 2ªed., 2014, p. 293.


11 A subteoria da necessariedade teria sido concebida, em uma das suas justificativas, visando eliminar a incoerência que a locução direto e imediato poderia trazer para as hipóteses de indenização ao dano por ricochete (art. 948, II, CC). A exigência causal se baseou na verificação de uma relação de necessidade, nesse caso, segundo Agostinho Alvim, mesmos as causas remotas poderiam ser indenizadas, pois "é indenizável todo o dano que se filia uma causa" desde que ela lhe seja "necessária" (ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas consequências, Rio de Janeiro: Editora Jurídica e Universitária, 3ed.,1965, p. 339). Rafael Pettefi e Otávio Luiz Rodrigues, em artigo que trata dos danos reflexos, em perspectiva comparatista, apontam que o direito brasileiro adotou a solução francesa que recorre ao critério de uma "relação direta e imediata" para fins de estabelecer os limites da indenização (in: SILVA, Rafael Peteffi da; RODRIGUES, Otavio Luiz. Daño reflexo o por rebote: pautas para un análisis de derecho comparado. Revista de Direito Civil Contemporâneo, n.º 7, ano 3, p. 205- 238. São Paulo: Ed. TR, abr-jun. 2016; p. 221).


12 ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas consequências, Rio de Janeiro: Editora Jurídica e Universitária, 3ed.,1965, p. 338.


13 Essa posição não im'pediu que julgados subsequentes associassem direto e imediato com causa adequada.


14 STF, RE n.º 608880/MT, Tribunal Pleno, Rel. Min. Alexandre de Moraes, j. 08/09/2020, p. 01/10/2020.


15 Tema n.º 362: "Responsabilidade civil do Estado por ato praticado por preso foragido." Tese: Nos termos do artigo 37, § 6º, da Constituição Federal, não se caracteriza a responsabilidade civil objetiva do Estado por danos decorrentes de crime praticado por pessoa foragida do sistema prisional, quando não demonstrado o nexo causal direto entre o momento da fuga e a conduta praticada.


16 Segundo Judith Martins Costa, "o cuidado conceitual é relevante, uma vez que a possibilidade de comunicação intersubjetiva é pressuposto da ordem jurídica", in: MARTINS-COSTA, Judith. A linguagem da responsabilidade civil., p. 393, in: BIANCHI, José Flávio; MENDONÇA PINHEIRO, Rodrigo Gomes de; ARRUDA ALVIM, Teresa (Coord.). Jurisdição e Direito Privado: Estudos em homenagem aos 20 anos da Ministra Nancy Andrighi no STJ. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, p. 389-418.


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