Na pauta do STJ: interpelação do devedor e resolução extrajudicial

 No REsp n. 2.044.407/SC, relatado pela Ministra Nancy Andrighi e julgado em novembro de 2023, discutiu-se a necessidade de manifestação judicial para a resolução de contrato de compra e venda de imóvel com cláusula resolutiva expressa.¹ A decisão referendou a alteração de entendimento que se iniciou em 2021 quando, no julgamento do REsp nº 1.789.863/MS, a Quarta Turma reconheceu a possibilidade de que a cláusula resolutiva expressa produza sua eficácia extrajudicialmente.

Há um pouco mais de dois anos, a AGIRE #1 era publicada com a notícia de decisão que entendera pela possibilidade de resolução de compromisso de compra e venda por inadimplemento do pagamento do preço sem a necessidade de manifestação judicial. Felizmente, este entendimento não foi fato isolado: não só o acórdão objeto da coluna “Em Pauta” de hoje como vários outros, havidos neste par de anos, confirmaram esse entendimento.²

A despeito de reconhecer essa possibilidade in abstracto, o STJ não julgou o caso concreto e determinou o retorno dos autos ao Tribunal de origem para que se verificasse como foi operacionalizada a interpelação extrajudicial do devedor. Assim se fez — e é esse o ponto da decisão que interessa à coluna “Em Pauta” de hoje — porque apontou para a pluralidade de regras e formas de notificação presentes na legislação. Após as analisar, o acórdão propôs oportuna sistematização sobre como deve se dar a operacionalização da resolução em contratos de compromisso de compra e venda.³

E, de fato, como a resolução, “opera-se mediante manifestação de vontade dirigida ao outro figurante”, seu estudo pressupõe conhecer a forma de comunicação de vontade eficaz para produção do pretendido efeito extintivo.

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Compromissos de compra e venda imobiliária: sistematização à luz das regras específicas de interpelação para resolução

O pano de fundo para a sistematização apresentada no acórdão foi o compromisso de compra e venda imobiliário, tema discutido no decisum.

Em um primeiro momento, a decisão consignou, na trilha do entendimento havido em 2021 pela Quarta Turma, que “inexiste óbice legal para a aplicação de cláusula resolutiva expressa em contratos de compromisso de compra e venda de imóveis, porquanto, após interpelado o compromissário comprador inadimplente e decorrido o prazo sem a purgação da mora, abre-se ao compromissário vendedor a faculdade de exercer o direito concedido pela cláusula resolutiva expressa para a rescisão do contrato.”

A decisão admitiu, porém, exceções à resolução extrajudicial, o que pode se dar, nos exemplos mencionados no acórdão, quando tenha operado o adimplemento substancial ou em situações que exijam tratamento diferenciado, hipóteses em que pode ser necessária prévia manifestação judicial para a resolução. Também admitiu que o devedor possa pedir tutela judicial, caso considere que a resolução não se deva operar. A qualificação de determinado contrato imobiliário como submetido ao Código de Defesa do Consumidor, entretanto, não basta para que se afaste a possibilidade de resolução extrajudicial.

Em um segundo momento, por sua vez, apontou para a existência de diferentes regimes legais a propósito do mecanismo resolutivo e sua operacionalização nos contratos imobiliários. Mais precisamente, afirmou a necessidade de se verificar a “forma que o comprador foi interpelado para purgar a mora, porquanto cada um dos regimes jurídicos dos contratos de compra e venda de imóveis exige uma formalidade para a intimação do devedor”. Há, com efeito, exigências distintas e específicas a depender do objeto contratual.

Para que se possa conhecê-las, convém distinguir entre contratos de imóveis loteados, não loteados e incorporados. Com base na decisão, e em algumas notas complementares a ela, a sistematização pode ser assim apresentada:

(i) Imóveis urbanos e loteados: nos termos do art. 32 da Lei 6.766/1979 (Lei do Parcelamento do Solo), vencida e não paga a prestação, o contrato é considerado “rescindido 30 (trinta) dias depois de constituído em mora o devedor”, o que se dará por intermédio do Oficial de Registro de Imóveis, que intimar o devedor “a satisfazer as prestações vencidas e as que se vencerem até a data do pagamento, os juros convencionados e as custas de intimação.”

(ii) Imóveis não loteados: nos termos do art. 1º  do DL 745/1969, na redação conferida pela Lei 13.097/2015, no caso de imóveis não loteados, uma vez vencida e não paga a prestação, “o inadimplemento absoluto do promissário comprador só se caracterizará se, interpelado por via judicial deixar de purgar a mora, no prazo de 15 (quinze) dias contados do recebimento da interpelação.” A redação faz referência à configuração do “inadimplemento absoluto” do comprador, sendo uma das poucas regras brasileiras que se utilizam da expressão, tão comum em lições doutrinárias sobre o inadimplemento contratual. Mais do que isso, o parágrafo único deixa claro que, constando cláusula resolutiva expressa do contrato, a resolução se dará de pleno direito;

(iii) Imóveis incorporados: no caso de imóveis incorporados, o art. 63 da Lei 4.591/1964 (Lei de Incorporação Imobiliária), a resolução dependerá da existência de previsão contratual e da concessão de prazo, após a notificação, de 10 (dez) dias. A regra dispõe que “é lícito estipular no contrato, sem prejuízo de outras sanções, que a falta de pagamento, por parte do adquirente ou contratante, de 3 prestações do preço da construção, quer estabelecidas inicialmente, quer alteradas ou criadas posteriormente, quando fôr o caso, depois de prévia notificação com o prazo de 10 dias para purgação da mora, implique na rescisão do contrato, conforme nêle se fixar, ou que, na falta de pagamento, pelo débito respondem os direitos à respectiva fração ideal de terreno e à parte construída adicionada, na forma abaixo estabelecida, se outra forma não fixar o contrato.”

Como se vê, em cada um destes grupos de casos, sobressai a existência de formalidades distintas para notificação ou interpelação (ora exigindo que se dê via Cartório, de Notas ou de Imóveis, ora silenciando a respeito da forma de envio), bem como sobre a necessidade de concessão de período de cura, antes do qual a notificação de resolução não produzirá seu efeito próprio (ou seja, aquele extintivo).

A partir deles, a Ministra Nancy Andrighi concluiu que a interpelação prévia é “pré-requisito para configuração da mora” quando estiver prevista na legislação regente daquele tipo específico de negócio e que ela levará à resolução extrajudicial após o transcurso do prazo para purgação da mora, sem sanação. Nestes casos, a resolução teria o condão de se operar “de pleno direito”, isto é, por força da comunicação de vontade de parte. A decisão não traça os parâmetros gerais aplicáveis aos casos em que inexistente regra legal específica.

Como no caso concreto julgado a Corte não conseguiu apurar qual era o objeto específico do contrato e, portanto, não soube dizer qual a legislação que deveria ser aplicada para o reger, o feito retornou à instância inferior para essa verificação. Assim se fez por considerar que tal “informação é essencial para o deslinde do julgamento, pois, se assim o for, nos termos legais, a interpelação feita pelo recorrente (...) somente seria válida se realizada por via judicial ou por intermédio de cartório de Registro de Títulos e Documentos”.

Interpelação premonitória e “constituição em mora”

A menção de que a notificação prévia à resolução é necessária para “constituir o devedor em mora” é encontrada na lei (vide o disposto no art. 32 da Lei 6.766/1979, antes referida) e, frequentemente, na jurisprudência. Mas, afinal, será mesmo que tal comunicação tem a finalidade a constituição em mora o devedor?

Se não há dúvidas de que ela é necessária para produção do efeito extintivo, especialmente quando prevista em lei e quando devida a concessão de prazo suplementar, não soa acurado afirmar que a mora do devedor somente se dá a partir da notificação.

Uma reflexão à luz do compromisso de compra e venda pode ser útil para ilustrar o raciocínio: vencida a prestação em data certa (ou seja, no termo) sem que haja pagamento da parcela contratada, os juros e as demais consequências pecuniárias da mora incidirão, ex vi art. 397, caput CC, desde a data do inadimplemento e independentemente de notificação (mora ex re). Nesse caso, a notificação somente é necessária se e na medida em que o credor tiver a intenção de converter o estado de mora (que já existe) em inadimplemento resolutivo (que existirá findo o prazo suplementar previsto na respectiva legislação aplicável). A notificação, por outro lado, servirá para constituir o devedor em mora quando não houver no contrato termo para pagamento (mora ex persona), nos termos do art. 397, parágrafo único CC. Nesse caso, produzirá duplo efeito, pois constituirá o devedor em mora e terá a função premonitória, de concessão de prazo suplementar findo o qual a resolução terá lugar.

Não é por outro motivo que, vencida e não paga a dívida no termo, os encargos moratórios já passam a incidir desde logo. A notificação premonitória – aquela que adverte o devedor de seu estado moroso e da possibilidade de resolução contratual – somente permitirá a purgação da mora se a prestação for cumprida com os encargos devidos desde antes dela.


Renata Steiner, FCIArb.
Professora de Direito Civil na FGV-SP. Doutora em Direito pela USP.
Árbitra independente e parecerista.
Conselheira do Conselho Administrativo da ARBITAC (Câmara de Mediação e Arbitragem da Associação Comercial do Paraná).

Como citar: STEINER, Renata. Na pauta do STJ: interpelação do devedor e resolução extrajudicial. In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 104, 2024. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/p/agire104>. Acesso em DD.MM.AA.

1

O outro ponto decidido dizia respeito aos efeitos do ajuizamento de ação revisional para afastamento da mora. Sobre ele, a coluna limita-se a noticiar que a Corte reforçou o entendimento, já longevo, de que o ajuizamento de ação revisional não basta para afastar a configuração da mora, especialmente quando iniciada para discutir a revisão de encargos moratórios. Vide, por todos, os julgados citados no acórdão: REsp 1.061.530/RS e REsp n. 607.961/RJ.

2

Vide, por todos, AgInt no REsp n. 1.966.946/MS e REsp n. 1.951.601/SP.

3

A sistematização operada pelo acórdão vem em boa hora. Como advertiu Luca Giannotti, em artigo recente, a compreensão das formas de notificação premonitória no caso de compromissos de compra e venda imobiliária ainda é mal articulada no Direito Brasileiro: “(...) cuja legislação esparsa estabelece uma série de regimes particulares de notificações premonitórias (prazos prudenciais) ainda mal articulados, mesmo existindo desde o Decreto-Lei 52/1937” (GIANNOTTI, Luca. Prazo suplementar, prudencial ou notificação premonitória (Nachfrist): contornos do instituto à luz da resolução por inadimplemento. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 12, n. 3, 2023. Disponível em: <https://civilistica.emnuvens.com.br/redc>. Acesso em 05.03.2024). A coluna anota que, para além do âmbito específico dos compromissos de compra e venda imobiliária, também se encontra cenário de falta de sistematização, que merece ser sanada.

4

PONTES DE MIRANDA, Francisco. Tratado de Direito Privado. Tomo XXV. São Paulo: RT, 2012, p. 406, § 3.088.

5

Lei 6.766/1979. Art. 32. Vencida e não paga a prestação, o contrato será considerado rescindido 30 (trinta) dias depois de constituído em mora o devedor. § 1o Para os fins deste artigo o devedor-adquirente será intimado, a requerimento do credor, pelo Oficial do Registro de Imóveis, a satisfazer as prestações vencidas e as que se vencerem até a data do pagamento, os juros convencionados e as custas de intimação. § 2o Purgada a mora, convalescerá o contrato.

6

Lei 6.766/1979. Art. 1o  Nos contratos a que se refere o art. 22 do Decreto-Lei no 58, de 10 de dezembro de 1937, ainda que não tenham sido registrados junto ao Cartório de Registro de Imóveis competente, o inadimplemento absoluto do promissário comprador só se caracterizará se, interpelado por via judicial ou por intermédio de cartório de Registro de Títulos e Documentos, deixar de purgar a mora, no prazo de 15 (quinze) dias contados do recebimento da interpelação. Parágrafo único.  Nos contratos nos quais conste cláusula resolutiva expressa, a resolução por inadimplemento do promissário comprador se operará de pleno direito (art. 474 do Código Civil), desde que decorrido o prazo previsto na interpelação referida no caput, sem purga da mora.           

7

Vide: AgInt no AREsp n. 2.385.125/MG; AgInt no REsp n. 1.924.556/MS, AgInt no AREsp n. 2.032.799/SP e; REsp n. 1.838.830/RS.

8

Art. 397. O inadimplemento da obrigação, positiva e líquida, no seu termo, constitui de pleno direito em mora o devedor. Parágrafo único. Não havendo termo, a mora se constitui mediante interpelação judicial ou extrajudicial.

Fonte:

https://agiredireitoprivado.substack.com/?utm_campaign=pub&utm_medium=web

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