Revisão da Doutrina Chevron e o (des)equilíbrio entre os Poderes nos EUA, por Natasha Schmitt Caccia Salinas e Luiz Guilherme Cantarelli
Recentemente, repercutiu nos Estados Unidos e internacionalmente, inclusive no Brasil, manifestações recentes de juízes da Suprema Corte norte-americana, indicando uma possível revisão do precedente de Direito Administrativo mais citado da história dos Estados Unidos: Chevron U.S.A. v. Natural Resources (“Chevron”).Chevron, que neste ano completa 40 anos, nada mais é do que uma doutrina acerca da atividade de interpretação promovida pelas agências americanas das leis que lhes são pertinentes. Estabelece um modelo deferente de controle judicial, compelindo o Poder Judiciário a aquiescer ao entendimento das agências em caso de ambiguidade dos textos legais, desde que a interpretação possa ser compreendida como “permissível”, ou em outras formulações, “razoável”.
Em dois casos recentes envolvendo a regulação de atividades de pesca — Relentless Inc. v. Department of Commerce e Loper Bright Enterprises v. Raimondo —, alguns dos juízes da ala conservadora da Suprema Corte se manifestaram dispostos a limitar ou até mesmo derrubar o referido precedente. Embora não seja claro ainda qual será o posicionamento da corte como ente colegiado, é certo que a superação do Chevron pode impactar significativamente a estrutura atual do Estado Administrativo americano, afetando os poderes das agências nacionais para a regulação dos mercados.
O caso Chrevron U.S.A v. Natural Resources Defense Council referia-se, incialmente, a uma controvérsia sobre a interpretação de disposições do Clean Air Act que ficou conhecida como a “bubble controversy”. Em resumo, discutia-se qual seria a interpretação correta do conceito de “fontes estacionárias de poluição do ar” (stationary sources of air pollution) para fins de implementação da regulação ambiental por parte da Agência de Proteção Ambiental americana, a EPA.
Isso porque a lei não deixava claro se por “fonte estacionária” ela estaria se referindo a cada equipamento emissor de poluição, como por exemplo a chaminé de uma fábrica ou usina, ou ao estabelecimento inteiro (daí a ideia de uma “bolha”). Dado que o conceito possuía relevância significativa para fins da incidência de obrigações regulatórias sobre as empresas, o tema foi objeto de disputa entre grupos ambientalistas e representantes da indústria, em uma série de controvérsias que se desenvolveram entre o final dos anos 70 e o início dos anos 80.
Caso o contrário, passar-se-ia à segunda etapa, onde seria analisado se o entendimento da agência poderia ser considerado uma interpretação “permissível” da lei. Um de seus grandes atrativos é a aparente simplicidade do seu teste bifásico, permitindo-a orientar a decisão sem a necessidade de análises casuísticas acerca da “intenção do legislador” na lei em disputa.
Embora a “Doutrina Chevron” não tenha feito sucesso inicial na Suprema Corte, sua aplicação se popularizou nas cortes de apelação, em especial no DC Circuit. Foi com a nomeação do conservador Antonin Scalia que a aplicação de Chevron gradativamente se expandiu no tribunal constitucional. Sendo um dos grandes entusiastas da Doutrina, Scalia a defendeu em artigo publicado em 1989, justificando que a sua implementação substituía a avaliação casuísta das leis (statute-by-statute evaluation), fonte de incerteza e litigância, por uma presunção de que, em caso de ambiguidade, haveria discricionariedade por parte da agência.
Não obstante, os comentários aqui apresentados são suficientes para permitir inferências sobre alguns dos efeitos do precedente e do porquê da discussão em torno da sua revisão. Em artigo sobre o tema, o professor da Universidade de Yale Donald Elliot reporta-se a Chevron como um caso que alterou o equilíbrio de Poderes entre as cortes e as agências.
Isso porque, através do discurso de deferência, a doutrina promoveu um deslocamento do poder de interpretar as leis para o Poder Executivo, tornando as agências capazes de realizar reformas substantivas em sua política regulatória sem a necessidade de maiores alterações legislativas. Por si só, essa pode ser considerada uma grande mudança na estrutura constitucional americana e na configuração do chamado “Estado Administrativo”.
No plano prático, o ambiente criado por Chevron, alega Elliott, teria criado também um ambiente favorável para a reformulação dos próprios processos decisórios das agências. Desloca-se, com isso, o foco das decisões regulatórias em problemas estritamente de interpretação jurídica e passa-se a focar em aspectos substantivos da política, como as suas consequências no mundo real.
Por esse motivo, as iminentes decisões da Suprema Corte norte-americana devem ser vistas em um contexto de permanente questionamento e evolução do Estado Administrativo norte-americano. No âmbito judicial, vale citar aqui o caso United States v. Mead Corp, cuja principal alteração foi a introdução de uma etapa zero (step zero) no teste bifásico que corresponde à formulação original de Chevron. Com a introdução do step zero, ficou assentada a existência de dois parâmetros de deferência no Direito americano: o parâmetro instituído pela doutrina Chevron e aquele correspondente ao precedente Skidmore, menos exigente em relação ao controle judicial.
Com isso, a aplicação de Chevron se limitaria aos casos em que houvesse a intenção do legislador em atribuir poderes à agência, o que seria identificado quando fosse delegada autoridade para interpretar a lei num formato que carregasse “força de lei”.
É interessante perceber que, a despeito de suas origens obviamente conservadoras – o que fica evidenciado pelo apoio ao precedente promovido pelo ex-juiz Antonin Scalia – é hoje defendido pelos progressistas e criticado pelos conservadores. Dois dos juízes da atual composição da Suprema Corte, Neil Gorsuch e Brett Kavanaugh, já se pronunciaram publicamente em tom crítico a Chevron, demonstrando posicionamento contrário à doutrina. Ambos foram recentemente nomeados, durante o governo de Donald Trump.
Como sugerido por Merril, essa mudança de posicionamento em relação ao precedente parece estar relacionada às alterações no comando da presidência dos Estados Unidos, visto que, durante os governos Reagan e Bush, foram os democratas a criticar e os conservadores a apoiar a doutrina Chevron. De maneira mais cínica, se poderia questionar mesmo se a decisão não seria também influenciada pela composição da Suprema Corte, que atualmente conta com maioria conservadora e que, na eventual revogação de Chevron, veria estendidos os seus poderes para rever a atuação do poder executivo.
Ao final, a discussão acerca do precedente Chevron nos remete a um dilema que é relativamente comum nos debates acerca de temas como o ativismo judicial no Brasil: quem deve ter a última palavra em matéria de política regulatória (ou política pública em geral) quando o Direito não define com exatidão aquilo que deve ser feito? O Poder Executivo, diretamente ou por meio de suas agências técnicas, ou o Judiciário, se utilizando de métodos de interpretação e tomada de decisão tipicamente jurídicos? A escolha por um ou por outro é, certamente, permeada por custos e benefícios que deveriam, sob condições ideais, orientar essa escolha. Nisso parece residir a real importância do caso Chevron – e de sua eventual reforma por parte da Suprema Corte.
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