Vitória dos consumidores nos embargos de declaração no ARE 766.618/SP

 Após mais de seis anos aguardando apreciação, no dia 30 de novembro de 2023, foram finalmente julgados os Embargos de Declaração opostos [1] em face de decisão prolatada nos autos do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) nº 766.618. Enfim mudou a Tese 210 do STF para ressalvar que as Convenções de Varsóvia e Montreal se aplicam apenas a danos materiais.

O Pleno, por 10 votos a 1 (o ministro Ricardo Lewandowski já havia votado anteriormente pela rejeição dos declaratórios), deu parcial provimento ao recurso, com efeitos infringentes, confirmando o atual entendimento do Supremo Tribunal Federal (Tese 1.240) no sentido de que as Convenções de Varsóvia e de Montreal não disciplinam danos extrapatrimoniais [2] e, com isso, ressalvou a aplicação plena do CDC a estes temas não regulados pelas Convenções. 

Realmente, as Convenções de Varsóvia e Montreal — como os títulos dessas afirmam — aplicam-se somente a alguns danos materiais que regulam especialmente. Estas convenções não se aplicam a danos morais, nem a overbooking, muito menos a cláusulas e práticas abusivas, temas  aos quais se aplica o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078,1990), assim como estão excluídas do campo de aplicação destas convenções comerciais as violações de direito humanos, como muito bem alertou o ministro Gilmar Mendes em sua decisão.

Se a mudança da Tese 210 não foi completa nestes Embargos de Declaração, que interpusemos pro bono em nome da consumidora de São Paulo, a decisão representa uma importante vitória para os consumidores:  os embargos impediram o trânsito em julgado da Tese 210 do STF e agora a mudança permite rescisórias nos casos que, como a da consumidora defendida, só tinha ganho danos morais no Tribunal de Justiça São Paulo. Com a decisão de 30 de novembro de 2023, o texto da Tese 210 ganhou segunda frase excluindo os danos morais. Justiça foi feita e a Tese 210 foi reduzida! Vejamos.

Retrospecto do caso
O ARE n.º 766.618, de relatoria do ministro Roberto Barroso, foi convertido em Recurso Extraordinário para que fosse submetido ao crivo do Plenário em conjunto com o RE n.º 636.661, de relatoria do Ministro Gilmar Mendes, leading case do Tema 210, cujo objeto girava em torno de indenização por danos morais e materiais decorrentes de extravio de bagagem em viagem internacional realizada pela Air France.

Em ambos os recursos, o cerne da questão era analisar a aplicabilidade dos limites indenizatórios preconizados pelas Convenções de Varsóvia e Montreal e do prazo prescricional bienal para interposição de ação indenizatória face às disposições do Código de Defesa do Consumidor (CDC), que preconiza o princípio da reparação integral (art. 6º, VI) e obsta a limitação de indenização nas relações de consumo em que o consumidor for pessoa física (art. 51, I, in fine).

De um lado, a argumentação era no sentido de que (i) o artigo 178 da Constituição estabelece que a ordenação do transporte aéreo deve observar os acordos firmados pela União, o que inclui as Convenções de Varsóvia e de Montreal, impondo a compatibilização entre a competência legislativa interna em matéria de transporte internacional e o cumprimento das normas internacionais adotadas pelo Brasil, bem como de que (ii) a Convenção de Montreal é diploma posterior ao CDC e especial quanto à matéria (critérios cronológico e de especialidade).

De outro lado, o argumento era no sentido de que (i) o CDC estabelece normas de ordem pública e interesse social (art. 1º) e consagra o dever constitucional do Estado de promover a defesa do consumidor (art. 5, XXXII); (ii) a reparação integral é a regra da responsabilidade civil do direito brasileiro (art. 5º, V e X, da CF/1988); e (iii) o art. 178 da Constituição está inserido no capítulo I do título VIII que trata da Ordem Econômica, a qual é fundada em certos princípios, dentre os quais está a defesa do consumidor (art. 170, V), devendo com ele ser compatível.

No dia 25 de maio de 2017, por maioria (vencidos os Ministros Marco Aurélio e Celso de Mello), o Pleno deu provimento ao recurso extraordinário interposto pela empresa Air Canada para, reformando o acórdão recorrido, julgar improcedente o requerimento de consumidora de indenização por danos morais decorrentes de atraso de 12 horas em voo internacional sob o argumento de que a pretensão indenizatória estava prescrita porquanto aplicável o prazo bienal disciplinado pelas convenções internacionais (artigo 35 (1) da Convenção de Montreal) em detrimento do prazo quinquenal constante no Código de Defesa do Consumidor (artigo 27).

Após julgamento conjunto, que culminou no provimento de ambos os recursos interpostos pelas transportadoras aéreas, o Tribunal fixou a seguinte tese de repercussão geral: “Nos termos do artigo 178 da Constituição da República, as normas e os tratados internacionais limitadores da responsabilidade das transportadoras aéreas de passageiros, especialmente as Convenções de Varsóvia e Montreal, têm prevalência em relação ao Código de Defesa do Consumidor”. A partir da formação do precedente, a tese teve de ser imediatamente aplicada pelos demais tribunais à luz do artigo 1.040 do Código de Processo Civil. [3]

Aplicação imediata do precedente e dúvidas acerca dos danos extrapatrimoniais
Apesar de rechaçar o argumento em prol da necessária aplicação das normas de ordem pública e de interesse social do CDC, os ministros, ao longo de seus votos proferidos em maio de 2017, pontuaram que as convenções internacionais não disciplinam danos extrapatrimoniais, de modo que a tese em repercussão geral teria de ser aplicável exclusivamente em relação aos pedidos de indenização por danos materiais. Todavia, a tese, tal qual firmada, nada mencionava a esse respeito, tampouco fazia qualquer ressalva nesse sentido. Ressalvadas também foram as violações a direitos humanos.

Considerando que o precedente teve de ser imediatamente aplicado por todos os tribunais brasileiros, dúvidas começaram a surgir acerca do seu alcance, mormente porque um dos paradigmas utilizados para firmar a tese (precisamente o ARE 766.618) tinha como objeto indenização por danos morais e foi reconhecida a prescrição da pretensão indenizatória ante o decurso do prazo de dois anos entre os fatos ocorridos e o ajuizamento da demanda.

No âmbito do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em 9 de junho de 2020, ao apreciar o REsp 1.842.066, a 3ª Turma reputou que os limites indenizatórios previstos nas convenções internacionais não englobam danos extrapatrimoniais. Em seu voto, o ministro Relator, Moura Ribeiro, ressaltou que a Convenção de Montreal representa mera atualização da Convenção de Varsóvia, de 1929, período em que sequer se cogitava a possibilidade indenização de danos de cunho extrapatrimonial. Outrossim, os prejuízos de ordem não patrimonial não admitem tarifação pela sua própria natureza. A partir desta decisão, consolidou-se o entendimento no âmbito da referida Corte no sentido de que deve ser observada a efetiva reparação do consumidor preceituada pelo CDC, consoante edição 164 da Jurisprudência em Teses — Direito do Consumidor VIII.

Por seu turno, no âmbito do STF, embora o Pleno tenha, no julgamento do AgRg nos EmbDiv no AgRg no RE 1.221.934 afastado por unanimidade a tese do Tema 210 relativamente aos danos extrapatrimoniais, inclusive no tocante ao prazo bienal, sucederam-lhe decisões que aplicaram o prazo bienal também para casos de danos extrapatrimoniais (vide AgRg nos EmbDecl no RE 1.158.691 e Ag no RE 1.213.708).

Tema 1.240
Em meio a decisões divergentes quanto ao alcance da tese no Tema 210, em sessão 16 de dezembro de 2022, o STF julgou o Recurso Extraordinário nº 1.394.401 em que a Lufthansa — empresa aérea que figurava no polo passivo de uma ação em que se pleiteou danos morais por falha na prestação de serviço de transporte aéreo internacional pela ocorrência de atraso de voo e extravio de bagagem — havia recorrido de acórdão que reformou a sentença e a condenou ao pagamento de indenização por danos morais. Na oportunidade, o STF rejeitou a argumentação da companhia aérea alemã, sustentando que os danos morais não se submeteriam ao teto indenizatório previsto na Convenção de Varsóvia e sua sucessora, aplicando-se, portanto, o CDC.

Por unanimidade, o Pleno firmou a seguinte tese de repercussão geral, dando origem ao Tema 1.240: “Não se aplicam as Convenções de Varsóvia e Montreal às hipóteses de danos extrapatrimoniais decorrentes de contrato de transporte aéreo internacional”.

Tema 210 e o objeto dos Embargos de Declaração
No caso da consumidora de São Paulo, que passara 12 horas no aeroporto pelo atraso e sem falar a língua, a justiça paulista condenara a companhia aérea a pagar R$ 6 mil de danos morais, mas considerara improcedente o pedido de danos materiais.

O nosso argumento nos Embargos de Declaração, opostos em face do acórdão prolatado no ARE nº 766.618, era no sentido de que haveria uma grave contradição entre (i) o entendimento dos Ministros exposto durante o julgamento em 2017 no sentido de afastar a aplicação das convenções internacionais aos danos morais, (ii) a escolha como paradigma para firmar a tese de um processo cujo requerimento era tão somente de danos morais, assim como obscuridade, (iii) uso da Convenção de Varsóvia, mesmo se a volta ao país coincidia com a entrada em vigor da Convenção de Montreal e (iv) o texto da Tese 210 nada mencionava sobre reciprocidade (critério limitador imposto pelo artigo 178 da CF/1988) e o fato da Convenção de Montreal se aplicar a apenas “alguns temas” do contratos de transporte aéreo (não se aplica a danos morais, nem a overbooking, nem a cláusulas e práticas abusivas, para dar alguns exemplos).

Após a prolação da tese no Tema 1.240, como os Embargos de Declaração do ARE nº 766.618 ainda aguardava julgamento, ganharam em relevância. Não é por outra razão que, onze dias antes de ser julgado o RE 1.394.401 (que deu azo à tese no Tema 1.240), a ministra então presidente, Rosa Weber, ao verificar que o Pleno, por maioria, havia rejeitado os Embargos de Declaração durante sessão virtual (vencidos os Ministros Edson Fachin e Luiz Fux), fez pedido de destaque, o que significa que teria de ser realizado um novo julgamento na modalidade presencial. [4]

E assim, finalmente, foi consolidado o entendimento de que as convenções internacionais não se aplicam aos danos de natureza extra ou não patrimonial,  e acresceu-se uma frase final o Tema 210, agora lido da seguinte forma: “Nos termos do artigo 178 da Constituição da República, as normas e os tratados internacionais limitadores da responsabilidade das transportadoras aéreas de passageiros, especialmente as Convenções de Varsóvia e Montreal, têm prevalência em relação ao Código de Defesa do Consumidor. O presente entendimento não se aplica às hipóteses de danos extrapatrimoniais”.

O provimento dos Embargos de Declaração, a partir do recente julgamento e por unanimidade dos Ministros votantes, e o consequente acréscimo à tese no Tema 210, finalmente retira da zona nebulosa a questão da inaplicabilidade dos limites indenizatórios das convenções internacionais e do prazo prescricional bienal aos danos de cunho extrapatrimonial, e representa significativo avanço na defesa dos interesses dos passageiros-consumidores. E esclarece que se aplica, em diálogo das fontes, para danos morais o prazo do Código de Defesa do Consumidor, de 5 anos!

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[1] Os Declaratórios estão disponíveis em: MARQUES, Claudia Lima; SQUEFF, Tatiana de A.F.R. Cardoso; TARGA, Maria Luiza Baillo. Embargos de Declaração no Recurso Extraordinário 766.618. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 115, p. 561-598, jan./fev. 2018.

[2] A decisão do STF: (processo destacado do Plenário virtual) O Tribunal, por maioria, deu parcial provimento aos embargos de declaração, com efeitos infringentes, e negou provimento ao recurso extraordinário, reconhecendo a inaplicabilidade do prazo prescricional das Convenções de Varsóvia e Montreal ao caso em julgamento, em que só houve condenação por danos morais, vencido o Ministro Ricardo Lewandowski, que votara em assentada anterior rejeitando os embargos de declaração. Em seguida, foi fixada a seguinte tese de julgamento: “Nos termos do art. 178 da Constituição da República, as normas e os tratados internacionais limitadores da responsabilidade das transportadoras aéreas de passageiros, especialmente as Convenções de Varsóvia e Montreal, têm prevalência em relação ao Código de Defesa do Consumidor. O presente entendimento não se aplica às hipóteses de danos extrapatrimoniais”. Tudo nos termos do voto do Relator, Ministro Luís Roberto Barroso (Presidente). Não votou o Ministro Cristiano Zanin, sucessor do Ministro Ricardo Lewandowski. Plenário, 30.11.2023. Veja: Ação por dano moral em voos internacionais pode ser ajuizada em até 5 anos, diz STF (conjur.com.br). 17.12.2023

[3] Destaque-se que prevalece, no âmbito do STF, entendimento no sentido de que a aplicação da tese de repercussão geral independe do seu trânsito em julgado, devendo ser aplicada desde logo, independente ainda de sua publicação (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamação n.º 30.996. Reclamante: União. Reclamado: Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Relator: Min. Celso de Mello. Brasília, 9 ago. 2018. DJe 13 ago. 2018; e ibidem. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n.º 612.375. Agravante: União. Agravado: Município de São José do Xingu. Relator Min. Dias Toffoli. Brasília, 21 ago. 2017, DJe 1 set. 2017).

[4] Vide artigo 4º da Resolução 642/2019 do STF.

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