Desmistificando o dever de revelação: importância da arbitragem no Brasil

 As manifestações recentes divulgadas pelos meios de comunicação acerca da implementação de cláusulas compromissórias por grandes empresas podem, à primeira vista, suscitar incertezas em relação à arbitragem como meio de solucionar litígios no cenário brasileiro. No entanto, as exceções não devem ser tomadas como regra e, assim, não devem macular um dos mais significativos avanços no campo do direito das últimas décadas.

Foi na terceira onda renovatória do acesso à Justiça em que houve enfoque aos métodos alternativos de resolução de disputas como uma alternativa ao monopólio estatal da jurisdição [1], inclusive por meio da arbitragem. No Brasil, a constitucionalidade da Lei de Arbitragem foi assentada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) ainda em 2001 [2].

Spacca

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A ex-ministra Ellen Gracie ressaltou que, antes da rejeição da tese de inconstitucionalidade da Lei de Arbitragem, o Brasil encontrava-se em atraso em relação ao cenário internacional de resolução de disputas. Esse atraso dificultava a conclusão de negócios devido à falta de mecanismos eficazes para promover soluções ágeis e especializadas, elementos cruciais na atual era do comércio globalizado. Isso frequentemente levava as empresas brasileiras a se submeterem à arbitragem em países estrangeiros, seguindo suas normas — realidade que apontava a necessidade de aprimorar o sistema de resolução de litígios no país [3].

Essas circunstâncias motivaram a transformação da percepção sobre a atividade do árbitro, que passou a ser vista como atividade tipicamente jurisdicional, apesar do entendimento inicial de que tinha natureza parajurisdicional. O professor Cândido Dinamarco, por exemplo, passou a reconhecer a mudança, especialmente devido à dispensa de homologação da sentença arbitral [4].  

Ao longo dos quase 30 anos desde a promulgação da Lei de Arbitragem, notamos inúmeros avanços na regulamentação deste instituto no Brasil. Esses progressos não se limitam à reforma legal de 2015, mas englobam diversas iniciativas da comunidade arbitral. Deve-se reconhecer o desenvolvimento dos regulamentos das principais Câmaras de Arbitragem do país e a crescente adesão às diretrizes de entidades internacionais, que operam como princípios não vinculativos (soft law).

Essas diretrizes abordam aspectos fundamentais, como a imparcialidade e o dever de revelação por parte dos árbitros, objeto deste artigo. Tais questões têm gerado intensos debates no âmbito da arbitragem e, como indicam as últimas notícias, promovem resistência,no mundo dos negócios à inclusão de cláusulas compromissórias em contratos.

O artigo 13 da Lei de Arbitragem estabelece que qualquer pessoa capaz e que tenha a confiança das partes pode atuar como árbitro. E, no desempenho dessa função, deve agir com imparcialidade, independência, competência, diligência e discrição (LArb, artigo 13, § 6º). Por sua vez, o artigo 14 versa sobre o impedimento e a suspeição dos árbitros, "aplicando-se-lhes, no que couber, os mesmos deveres e responsabilidades, conforme previsto no Código de Processo Civil". A esse respeito, cabe a observância às disposições dos artigos 144 e 145 do Código, em que pese a análise da imparcialidade do árbitro não fique sujeita apenas às hipóteses legalmente previstas [5].

Embora não disponha, como nem poderia, sobre as hipóteses específicas de conflito de interesses, a Lei de Arbitragem impõe ao árbitro o dever de revelação sobre "qualquer fato que denote dúvida justificada quanto à sua imparcialidade e independência" (LArb, artigo 14, §1º), em consonância com a Lei-Modelo da Uncitral sobre arbitragem comercial internacional.

Ao tratar do tema, não se pode deixar de citar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 1.050/DF, em trâmite perante o STF, de relatoria do ministro Alexandre de Moraes, recebida como Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI). Lá, questiona-se justamente o dever de revelação do árbitro e sua adequação aos preceitos do devido processo legal, do juiz natural e da imparcialidade do julgador. O autor pretende a declaração dos critérios/standards constitucionais do exercício do dever de revelação.

No entanto, o fato é que há, atualmente, critérios suficientes e seguros para a aferição da imparcialidade e do cumprimento do dever de revelação. Os parâmetros para avaliação dessas situações  certamente excepcionais  são comumente retirados das diretrizes da International Bar Association sobre conflito de interesses em arbitragens internacionais (IBA Guidelines on conflicts of interest in internacional arbitration[6].

De forma objetiva, o rol exemplificativo trata de situações concretas, divididas em três listas: a verde, a laranja e a vermelha. A lista verde diz respeito às situações de baixo risco em termo de conflitos e interesses; a laranja, às de grau moderado; e a vermelha, às situações graves e que comprometem a imparcialidade do árbitro. Essas situações são utilizadas como referência no gerenciamento de conflitos de interesses nos procedimentos arbitrais e, dessa forma, são de grande valia aos operadores do direito e às partes envolvidas.

De todo modo, em qualquer caso, o cumprimento do dever de revelação deve ser sempre avaliado aos olhos das partes, o que é bem aceito por toda a comunidade arbitral. Nessa senda, o professor Carlos Alberto Carmona pontua que, além das hipóteses previstas no Código de Processo Civil de impedimento e suspeição, "o árbitro deve revelar qualquer situação que, do ponto de vista das partes, possa gerar dúvida objetiva sobre sua capacidade de julgar com imparcialidade e independência" [7].

Tampouco se poderia entender que a eventual falha no exercício do dever de revelação pelo árbitro implicaria automaticamente a anulação da sentença arbitral[8]. É fundamental uma análise detalhada do contexto e das consequências do conflito de interesses para determinar se houve prejuízo efetivo às partes. A adoção de medidas precipitadas, sem consideração às nuances do caso, pode, aí sim, comprometer a eficácia e a justiça do sistema arbitral.

Nos últimos tempos, temos testemunhado notáveis progressos no que diz respeito ao cuidado e à fiscalização no exercício do dever de revelação dos árbitros. Esses avanços, aliados às ferramentas já existentes  tal como a possibilidade de impugnação à nomeação, anulação da sentença arbitral etc. , atestam que a arbitragem é um instituto sério e que adere aos princípios fundamentais do ordenamento jurídico, incluindo a imparcialidade do julgador.

Nesta toada, uma série de instituições oferecem formulários para avaliação da imparcialidade e independências dos árbitros e que se mostram muito úteis para análise do regular exercício do dever de revelação. A título de exemplo, o regulamento do CAM-CCBC determina o preenchimento do questionário de conflitos de interesse e disponibilidade (cf. item 11.3)[9]. Também o Comitê Brasileiro de Arbitragem (CBAr) publicou diretrizes sobre o dever de revelação do árbitro[10] em harmonia com a legislação brasileira e com as diretrizes internacionais sobre o tema.

Apesar da inegável qualidade das varas especializadas hoje existentes, é importante salientar que, na grande maioria dos litígios comerciais perante as varas empresariais de São Paulo, há uma tendência de se afastar a aplicação do segredo de justiça. Evidentemente, a tramitação pública dos autos pode se revelar bastante problemática em processos que envolvam questões comerciais sensíveis. Isso sem mencionar a considerável sobrecarga de demandas e os inúmeros recursos à disposição das partes, o que, inevitavelmente, prolonga excessivamente o tempo de tramitação de procedimentos empresariais.

Em contrapartida, a arbitragem continua a oferecer vantagens significativas, como a manutenção do sigilo, celeridade no processo, entre outros benefícios[11]. No ponto, vale citar a pesquisa "Arbitragem em Números", coordenada pela professora Selma Lemes[12]. Apurou-se que a média de duração dos procedimentos arbitrais nas câmaras participantes do estudo foi de 19,87 meses, e a câmara com menor tempo foi a Camarb, com a média de 13 meses, muito aquém do que se verifica em demandas judiciais.

Além disso, é digno de nota que algumas câmaras de arbitragem têm se esforçado para reduzir custos e simplificar os procedimentos, especialmente quando se trata de procedimentos que contam com árbitro único. O regulamento de arbitragem do Caesp prevê, por exemplo, que, aprovada a instauração do procedimento arbitral, a instituição indicará o árbitro (cf. item 12 do)[13]. Ademais, a modularização de procedimentos é uma iniciativa para tornar o instituto mais eficiente e acessível, como exemplificado pela publicação da Resolução Administrativa nº 3/2023 pelo Centro de Arbitragem e Mediação da Amcham [14], que trata do procedimento de produção antecipada de provas na arbitragem.

Em suma, uma ou outra insatisfação, bem como questionamentos pontuais e tirados de contextos, não devem obscurecer a sólida eficiência do sistema arbitral. Há décadas, o Brasil tem construído uma trajetória de sucesso na adoção da arbitragem como método confiável e eficaz para a resolução de disputas. Problemas isolados também podem surgir na jurisdição estatal e, como lá ocorre, devem ser tratados de maneira criteriosa. Nas palavras do professor Arnoldo Wald, "a arbitragem não é, portanto, uma mera alternativa ao recurso ao Poder Judiciário, nem, muito menos, a solução para todos os problemas de que este padece" [15].

Em última análise, a arbitragem no contexto jurídico brasileiro permanece como um alicerce sólido. Apesar dos debates e das pressões em busca de um full disclosure, é essencial manter um equilíbrio entre a busca por transparência e a manutenção de um ambiente favorável aos negócios e, por conseguinte, à arbitragem. A habilidade de avaliar, de maneira razoável, se o dever de revelação foi cumprido e se existem causas determinantes de impedimento ou suspeição serve como um indicador da maturidade do sistema de arbitragem brasileiro. A reflexão sobre tais questões é essencial para assegurar a perenidade deste método, em conformidade com a prática internacional e em atenção às expectativas e à confiança depositadas pelas partes envolvidas, e não deve servir de motivo para que se abandone a adoção da arbitragem.

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[1] "O novo enfoque de acesso à Justiça, no entanto, tem alcance muito mais amplo. Essa ‘terceira onda’ de reforma inclui a advocacia, judicial ou extrajudicial, seja por meio de advogados particulares ou públicos, mas vai além. Ela centra sua atenção no conjunto geral de instituições e mecanismos, pessoas e procedimentos utilizados para processar e mesmo prevenir disputas nas sociedades modernas. Nós o denominamos ‘o enfoque do acesso à Justiça’ por sua abrangência. Seu método não consiste em abandonar as técnicas das duas primeiras ondas de reforma, mas em tratá-las como apenas algumas de uma série de possibilidades para melhorar o acesso." (CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução: Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988, pp. 67-68).

[2] STF, Tribunal Pleno, SE nº 5.206 AgR, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 12.12.01.

[3] GRACIE, Ellen. A importância da Arbitragem. Revista de Arbitragem e Mediação, vol. 12, pp. 13-17, jan.-mar. 2007.

[4] “Andei inicialmente pensando em uma natureza parajurisdicional das funções do árbitro, a partir da ideia de que, embora ele não as exerça com o escopo jurídico de atuar a vontade da lei, na convergência em torno do escopo social pacificador reside algo muito forte a aproximar a arbitragem da jurisdição estatal.3 Hoje, todavia, não vejo razão para ficar assim a meio caminho. O árbitro exercia sim uma atividade parajurisdicional, ou seja, algo um pouco aquém da própria jurisdição, quando a eficácia de seu laudo dependia da homologação pelo Estado-juiz – sendo assim, mutatis mutandis, a posição do juiz leigo que atua nos Juizados Especiais Cíveis (art. 93, I, da CF/1988 (LGL19883) e arts. 7.º, 22, 37 e 40 da Lei dos Juizados Especiais).4 Eliminada a necessidade de homologação e portanto sendo a sentença arbitral eficaz por si própria, ela é, tanto quanto a do juiz, um ato de pacificação social e, portanto, jurisdicional – não havendo razão para ficar a meio caminho com a ideia da parajurisdicionalidade. Receba pois o Prof. Carmona, quanto a esse expressivo ponto de sua doutrina, minha integral adesão.” (DINAMARCO, Cândido Rangel. Possibilidade de emendas e alterações a pedidos e o princípio da estabilização no procedimento arbitral. Revista de Arbitragem e Mediação, vol. 35, pp. 227-276, out.-dez. 2012).

[5] “RECURSO ESPECIAL. DIREITO PROCESSUAL. AÇÃO DE EXECUÇÃO DE CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA. INSTITUIÇÃO DE ARBITRAGEM. REEXAME DE FATOS E PROVAS. INADMISSIBILIDADE. CAUSAS DE IMPEDIMENTO OU SUSPEIÇÃO. INVESTIDURA DO ÁRBITRO. PARCIALIDADE. CPC/73 E LEI 9.307/96. 1- Ação ajuizada em 13/11/2012. Recurso especial interposto em 23/6/2014 e atribuído ao Gabinete em 25/8/2016. 2- O propósito recursal é definir se o parentesco colateral em terceiro grau entre a árbitra indicada pela recorrente e um de seus advogados constitui causa de impedimento ou suspeição. 3- O reexame de fatos e provas em recurso especial é inadmissível. 4- A Lei 9.307/96 erigiu a imparcialidade em postulado fundamental do procedimento arbitral, de modo que o alcance de seu conteúdo normativo não fica restrito, unicamente, às hipóteses de impedimento ou suspeição expressamente listadas nos arts. 134 e 135 do CPC/73. 5- Constatada a ocorrência de violação de qualquer espécie aos atributos de independência e imparcialidade, deve ser obstada a investidura do árbitro. 6- Hipótese em que – apesar do não enquadramento específico da situação dos autos em alguma das hipóteses de impedimento constantes no art. 134 do CPC/73 – o TJ/SP reconheceu como evidente que a imparcialidade da árbitra estaria comprometida em razão do parentesco existente entre ela e o advogado da recorrente. RECURSO ESPECIAL NÃO PROVIDO.” (STJ, 3ª Turma, REsp nº 1.526.789/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 13.06.17).

[6] Disponível em: https://www.ibanet.org/MediaHandler?id=EB37DA96-F98E-4746-A019-61841CE4054C. Acesso em 26.10.23.

[7] CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e Processo – Um Comentário à Lei nº 9.307/96. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 254.

[8] "Nos termos do Comentário 5 da Aplicação Prática dos Princípios Gerais, o facto de um árbitro não divulgar certos factos ou circunstâncias que, aos olhos das partes, possam suscitar dúvidas quanto à sua imparcialidade ou independência, não resulta automaticamente na conclusão de que existe um conflito de interesses, ou de que a sua desqualificação deva ocorrer." (Diretrizes da IBA, Nota Explicativa ao Princípio Geral nº 3, alínea c).

[9] Disponível em: https://ccbc.org.br/cam-ccbc-centro-arbitragem-mediacao/wp-content/uploads/sites/10/2023/05/Regulamento-de-Arbitragem-2022.pdf. Acesso em 26.10.23.

[10] Disponível em: https://cbar.org.br/site/diretrizes-do-comite-brasileiro-de-arbitragem-cbar-sobre-o-dever-de-revelacao-doa-arbitroa/. Acesso em 26.10.23.

[11] "Não será exagero dizer que, dentre vários, o principal motivo determinante do uso da arbitragem, em qualquer parte do mundo, é a morosidade dos feitos judiciais. Afinal, para repetir Tomaz Antônio Gonzaga, 'a glória que vem tarde já vem fria.'. Outros fatores pesam no recurso a essa instituição. Destaque-se, por exemplo, o fato de que a solução das lides pela arbitragem entrega o julgamento a pessoas familiarizadas com a questão a ser decidida, cumprindo lembrar que os árbitros não precisam, necessariamente, ter formação jurídica. A escolha de pessoas afeitas ao conflito avantaja os juízes do Estado. Fora dos casos rotineiros, os postulantes da jurisdição sentem-se na espinhosa contingência de ensinar o magistrado para obter dele o julgamento da causa. Acrescente-se aos motivos de eleição da arbitragem a irrecorribilidade das decisões proferidas pelo tribunal arbitral, que impede o desdobramento do processo em sucessivas instâncias, pela interposição de recursos (veja-se o art. 994 do CPC (LGL20151656)) que bem poderiam ser identificados pelo nome alongaderas, com que se rotulavam as exceções dilatórias, no processo espanhol medieval." (BERMUDES, Sergio. Arbitragem: um instituto florescente. Revista de Arbitragem e Mediação, vol. 50, pp. 387-389, jul.-set. 2016).

[12] LEMES, Selma (Coord.). Arbitragem em Números: Pesquisa 2021/2022. Canal Arbitragem. São Paulo, 2023.

[13] Disponível em: https://caesp.org.br/arbitragem/. Acesso em 26.10.23.

[14] Disponível em: https://estatico.amcham.com.br/arquivos/2023/resolucao-administrativa-n3-2023.pdf. Acesso em 26.10.23.

[15] WALD, Arnoldo. O Espírito da Arbitragem. Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo, vol. 23, pp. 22-35, jan.-jun. 2009.


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