Doação gestacional de corpo inteiro: o que é isso? — (parte 1). Por Éverton Willian Pona

 A filósofa Anna Smajdor, professora associada do Departamento de Filosofia, da Universidade de Oslo, na Dinamarca, publicou um artigo na revista Theoretical Medicine and Bioethics defendendo uma ideia, no mínimo, controversa [1].

Ela propôs um meio alternativo de gestação para casais que desejam filhos, porém não podem (ou não querem) gestar: whole body gestational donation (doação gestacional de corpo inteiro).

Trata-se de método mediante o qual uma pessoa doa seu corpo para ser utilizado, após sua morte cerebral, para fins gestacionais. O organismo seria mantido artificialmente com as funções somáticas e biológicas em funcionamento e um feto concebido in vitro seria implantado e gestado. E não apenas corpo de mulheres. A autora sugere que mesmo corpos masculinos possam ser utilizados.

Esta coluna se dedicará a explorar as ideias propostas no referido artigo. E o fará em duas partes: a primeira exporá os argumentos empregues pela autora; a segunda abordará a perspectiva ético-jurídica da proposta à luz do ordenamento jurídico brasileiro. Uma ideia original?

O ineditismo da ideia de Smajdor é apenas parcial. Ela dialoga com a proposta de Rosalie Ber [2], a qual sugeriu que pacientes femininas em estado vegetativo persistente (EVP), as quais tenham antecipadamente consentido por escrito, poderiam figurar como doadoras de útero para gestação em substituição (no Brasil conhecidas como barrigas de aluguel). Os embriões fertilizados in vitro seriam implantados no útero da paciente em estado vegetativo persistente e gestados até o nascimento.

Anna Smajdor propõe que, ao invés de pacientes em estado vegetativo persistente, os doadores sejam pacientes diagnosticados com morte cerebral. Isso porque Rosalie Ber não justificou o critério utilizado para a eleição do EVP em sua proposta, ainda que a exigência de ventilação artificial para pacientes com morte cerebral tenha sido mencionada (o que tornaria o procedimento mais complexo e mais caro).

Por outro lado, Ber propôs a redefinição de morte cerebral para incluir pacientes em estado vegetativo persistente, o que, por si só, já se apresenta bastante problemático. A despeito das críticas, lembra Smajdor, há razoável consenso no meio médico acerca da morte cerebral. Já o estágio vegetativo persistente trata-se de situação clínica controversa, especialmente em relação ao prognóstico.

Por isso, Smajdor acredita que sua proposta atinge a finalidade que Rosalie Ber pretendia, afastando-se dos problemas relativos ao EVP. Além disso: 1) estado vegetativo persistente é menos comum que morte cerebral; 2) o critério da morte cerebral já é utilizado para a doação de órgãos; 3) a incerteza sobre a recuperação de pacientes em estado vegetativo persistente é superada pela certeza da impossibilidade de recuperação de pacientes com morte cerebral.

A autora afirma que, se a morte cerebral é aceita como critério para a doação de órgãos, pela mesma lógica, deve ser aceita para permitir a doação gestacional.

E o consentimento?
Segundo Smajdor, o consentimento se apresenta como uma variável facilitada pela utilização do sistema de doação de órgãos.

A filósofa menciona que seria muito improvável uma mulher pensar em consentir antecipadamente a uma situação de estágio vegetativo persistente com a possibilidade de ser barriga de aluguel.

Já quanto à doação gestacional de corpo inteiro, existem específicos meios de consentir por antecedência ou de presumir a decisão caso não haja evidência da escolha, utilizando-se o próprio sistema utilizado para a doação de órgãos.

Um procedimento medicamente viável?
Dada o incomum aspecto das propostas, tanto de Rosalie Ber, quanto de Anna Smajdor, natural o questionamento acerca da viabilidade médica de uma gestação ser levada a termo no útero (ou ainda, fora dele) de uma paciente em EVP ou em morte cerebral.

Atenta a essa preocupação, Smajdor destaca o aumento significativo de evidências da possibilidade de uma gravidez ser levada a termo em mulheres que sofreram hemorragias cerebrais ou outros problemas médicos resultantes em morte cerebral.

E há, pelo menos, dois registros de gravidezes resultantes de estupro de pacientes já em EVP, confirmando que a condição clínica é compatível com a gestação e que o estado vegetativo permite o normal desenvolvimento dos processos hormonais e biológicos.

Apesar de não haver registros de início da gestação em pacientes com morte cerebral, a literatura retrata a ausência de determinação do mínimo tempo de gestação necessário para um feto sobreviver no útero de uma paciente com morte cerebral. Igualmente, escreve-se que a pouca idade gestacional do feto não é mais um fator limitante em termos de prognóstico.

Smajdor, à vista de posicionamentos apontando como inapropriado o prolongamento de gravidez em paciente com morte cerebral em casos de fetos de menos de 16 semanas de gestação, argumenta que não há dado suficiente para uma conclusão sobre o assunto e que a linha estabelecida resulta mais da incorporação de preocupações morais sobre o status do feto do que sobre a probabilidade de sucesso.

Pesquisadores que acompanharam diversos casos de gestações durante as quais sobreveio a morte cerebral e houve prolongamento das funções somáticas da gestante e, ainda, assim, chegaram a termo, observaram, anota Smajdor, que os filhos se desenvolveram normalmente, com exceção de um caso no qual se constatou que a criança nasceu com anormalidades congênitas (porém causadas por um medicado usado pela gestante, e não pela situação superveniente da morte cerebral).

Para a filósofa, uma gravidez havida a partir da doação gestacional de corpo inteiro teria mais chances de sucesso pois seria acompanhada e performada somente quando alcançado o equilíbrio das funções somáticas da gestante e não haveria qualquer conflito de interesses entre gestante e feto, uma vez que a primeira estaria em estado de morte cerebral e, por definição, não poderia ter qualquer interesse.

Por isso, Smajdor defende que a doação gestacional de corpo inteiro não está fora do reino das possibilidades abertas pelo estágio atual da medicina.

E o problema da experimentação com fetos?
Para que a proposta de Anna Smajdor avance em termos práticos, em determinado momento será necessário realizar procedimentos experimentais com embriões fetos humanos e, em último caso, com bebês.

Algumas jurisdições permitem a manipulação de embriões até 14 dias; nesses casos, a autora não percebe qualquer razão para que os testes não sejam levados adiante.

Questão mais delicada precisa ser enfrentada quando se avança além desse período e Smajdor anota que parte da comunidade científica tem pressionado para a extensão desse limite. Ela registra, ainda, a permissão do aborto nas jurisdições que permitem a pesquisa com embriões; e as bases legais do aborto nessas localidades inclui, normalmente, deficiências ou doenças do feto. E no caso da doação gestacional de corpo inteiro evita-se o trauma à gestante inerente ao procedimento do aborto.

Considerando que a medicina da fertilidade se trata de área do conhecimento na qual se admite que embriões e fetos sejam lesados ou destruídos deliberadamente, a autora não vê razão para invocar as incertezas da doação gestacional de corpo inteiro para repudiá-la, mesmo porque ela oferece um benefício quando comparadas às gestações naturais: será monitorada todo o tempo, incessantemente, com controle médico que em nada afetará a vida da gestante.

A quem se destina o procedimento de doação gestacional de corpo inteiro?
Quanto ao ponto, Anna Smajdor discorda de Rosalie Ber. A primeira acredita que qualquer casal pode se valer do procedimento. A última, advoga em defesa de casais em real necessidade dessa modalidade de gestação.

Segundo Smajdor, não há riscos para o doador ou para o receptor e, além disso, há benefícios clínicos para a mulher que não se submete à gestação, pois, como sabidamente conhecido, a gravidez submete a gestante a consideráveis riscos de saúde.

Levantado o argumento de ausência de necessidade da doação gestacional de corpo inteiro, Smajdor confronta com o aumento de transplantes em situações sem risco de morte, mas apenas de melhoria da qualidade de vida. Se essa modalidade de transplante é admite e incentivada, não haveria razão para obstar o desenvolvimento de sua proposta.

Apenas mulheres seriam doadoras?
A autora apresenta sua proposta incluindo não apenas doadores do sexo feminino. Ela defende que homens podem ser doadores a partir de pesquisas concluindo que o embrião humano consegue se desenvolver em outras partes do corpo além do útero, como o fígado, por exemplo.

Esse argumento Anna Smajdor invoca para se opor às críticas feministas de que a mulher estaria sendo tratada como uma espécie de commoditie reprodutiva, um recipiente para armazenar o feto.

Há evidências, segundo a filósofa, de que a gravidez humana é possível e o seu problema reside não em seu início, porém no parto. Para doadores em estado de morte cerebral, entretanto, o parto representaria risco algum e, admita a viabilidade da gestação extra-útero, não haveria razão para limitar o procedimento às mulheres.

Continua...
A proposta da filósofa Anna Smajdor revela-se inquietante e desperta inúmeros questionamentos de ordem médica, moral/ética e jurídica.

Quantos às questões médicas, não seria aqui o local adequado para abordá-las. Admitindo-se que a proposta seja factível, advém, então, os problemas morais/éticos e jurídicos, tais como: 1) qual é o, efetivamente, o critério para a definição da morte de uma pessoa? 2) a quem pertence o corpo morto? 3) pode um indivíduo dar a destinação que desejar para seu corpo após sua morte? 4) as disposições a respeito ao destino do corpo são vinculantes? 5) pode-se prolongar as funções biológicas de uma pessoa em estado de morte cerebral exclusivamente para utilizar o corpo como barriga de aluguel?

A questionamentos como esses de dedicara a parte 2 desta coluna.

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