ANUÁRIO DA JUSTIÇA Apenas 27% das grandes empresas usam arbitragem com frequência, por Arthur Gandini

 A Justiça brasileira fechou o ano de 2022 com um acervo de 77,5 milhões de processos, 1,6 milhão a mais que em 2021. O número de casos novos no Judiciário subiu de 27,6 milhões para 30,1 milhões entre 2021 e 2022, de acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça. Diante desse cenário de congestionamento processual, os meios alternativos de solução de conflitos tinham tudo para se mostrar como opção para empresários encontrarem resoluções mais rápidas e mais especializadas no ramo do negócio.

A Lei da Arbitragem (Lei 9.307/1996) está em vigor há quase 30 anos, mas ainda enfrenta o desafio de se popularizar. Os altos custos envolvidos num processo arbitral, como os honorários dos árbitros e a taxa de administração de câmaras arbitrais, tornam o acesso restrito a grandes empresas. A falta de informação e de credibilidade do instituto também justificam a preferência dos empresários pela Justiça.

Pesquisa conduzida por este Anuário da Justiça Direito Empresarial (clique aqui para ler), com consultoria e análise feita pelo Instituto de Pesquisas Sociais, Políticas e Econômicas (Ipespe) e pela Fundação Getulio Vargas (FGV), revelou que, nas maiores empresas do país, a arbitragem é exceção e não regra como ambiente para resolução de conflitos.

Apenas 27% das corporações fazem com frequência (sempre: 4%; na maior parte das vezes: 23%) previsão de foro arbitral via termo compromissório em seus contratos. Parcela expressiva de 66% o faz com pouca frequência (na menor parte das vezes: 44%; só quando o contratante exige: 22%). E outros 4% nunca fazem essa previsão. A pesquisa ouviu 155 executivos de grandes empresas no Brasil entre 14 de março e 23 abril de 2023.

Buscando pistas sobre os motivos da preferência pela Justiça em relação à arbitragem, a pesquisa identifica duas questões que podem estar na base das motivações das empresas: baixa credibilidade e desinformação. Instados a comparar Justiça e arbitragem quanto ao atributo “isenção”, parcela expressiva dos executivos (35%) não soube opinar (ou preferiu não responder, dada a sensibilidade do tema).

Entre os que responderam, 30% declararam que ambas são igualmente isentas; 21% que a arbitragem é mais isenta que a Justiça; e 15% que a arbitragem é menos isenta. Vale registrar que somente uma em cada cinco empresas (20%) já participou de uma arbitragem cujo resultado foi levado à Justiça.

Passam da metade (53%) os executivos insatisfeitos com os custos da arbitragem (muito insatisfeitos: 19%; insatisfeitos: 34%), ao passo que os satisfeitos somam apenas 9% (muito satisfeitos: 1%; satisfeitos: 8%). Outros 10% declaram-se indiferentes.

Uma das controvérsias arbitrais recentemente tornadas públicas também foi objeto da pesquisa. A Câmara Arbitral do Mercado (CAM) é foro obrigatório da Bolsa de Valores (B3) para todos os investidores do Novo Mercado, o que suscita questionamentos sobre monopólio e parcialidade. Afinal, o órgão da casa é o único possível para julgar causas contra a própria casa.

Quanto a essa questão, chama a atenção o número de não resposta (45%), o que pode indicar desconhecimento ou inibição frente ao tema, reconhecidamente polêmico. Entre os que se posicionaram, 30% concordam total ou parcialmente com esse foro obrigatório; e 25% discordam total ou parcialmente.

Em nota, a B3 informa que criou a Câmara do Mercado “para que as companhias listadas nesses segmentos pudessem resolver eventuais litígios societários em um foro arbitral especializado em litígios societários e de mercado de capitais. A Câmara, então, atua na administração de procedimentos arbitrais originários de conflitos surgidos no âmbito das companhias comprometidas com a adoção de práticas diferenciadas de governança corporativa e transparência, cujas ações são listadas na B3, bem como em outros litígios entre pessoas físicas e jurídicas, desde que sejam referentes a Direito Empresarial”.

A B3 finaliza dizendo que a “a instituição oferece um ambiente independente, sigiloso e eficiente para a solução de controvérsias, pautado nas diretrizes da Lei de Arbitragem e pelas normas estabelecidas em seu Regulamento de Arbitragem”.

Em julho, processo de arbitragem de quase R$ 1 bilhão movido por acionistas minoritários contra a Petrobras, que corre na B3, travou após a estatal pedir a impugnação do árbitro que presidiria o caso, alegando conflito de interesses. O processo, que envolve 26 fundos estrangeiros que exigem indenização da estatal devido à investigação na operação “lava jato”, foi suspenso com a renúncia do árbitro.

Os custos do processo arbitral, outro fator responsável pela baixa adesão ao instituto, dependem da câmara em questão e do valor da causa. Na Câmara de Conciliação, Mediação e Arbitragem da Fiesp, por exemplo, a tabela de custas e honorários mostra que em São Paulo as taxas de administração podem variar entre R$ 30 mil e R$ 360 mil.

A menor taxa, de R$ 30 mil, pertence à faixa de causas com valores menores que R$ 400 mil. Já o honorário do árbitro pode variar entre R$ 20 mil e R$ 670 mil. Caso o procedimento seja conduzido por três árbitros, como ocorre em colegiados da segunda instância do Judiciário, o total de honorários pode chegar a R$ 1,6 milhão. O menor honorário, de R$ 20 mil, também pertence à faixa com valores discutidos de menos de R$ 400 mil.

Apesar da ainda baixa adesão, a arbitragem registrou crescimento entre 2010 e 2020, de acordo com a pesquisa Arbitragem em Números e Valores, conduzida pela professora e especialista no tema Selma Ferreira Lemes, que baseou o levantamento em oito câmaras – entre elas a Amcham, a B3, a da Câmara de Comércio Brasil-Canadá. Nesse período, saltou de 46 para 333 o número de novos casos julgados. De 2021 para 2022, houve uma retração no total de valores envolvidos nos casos, de R$ 64 bilhões para R$ 55 bilhões.

As câmaras analisadas na pesquisa levaram 18,4 meses em média para finalizar os procedimentos arbitrais em 2019. A menor média entre os órgãos foi de 9,4 meses. Já de acordo com a última edição do Justiça em Números do CNJ, o tempo médio do processo judicial até a sentença era de 26 meses naquele ano.

“O crescimento da arbitragem no Brasil tem sido significativo nos últimos anos, especialmente em relação às disputas comerciais e empresariais”, avalia Elias Mubarak Júnior, árbitro e presidente da Câmara Med Arb Rb. “Hoje o Brasil é reconhecido internacionalmente como importante sede arbitral. As câmaras brasileiras servem de exemplo de serviço para muitas câmaras internacionais”, afirma.

Para Gustavo da Rocha Schmidt, presidente Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CBMA) e professor da FGV-Rio, o aumento da procura pela arbitragem depende de uma mudança cultural. “É essencial popularizar o instituto, reduzir os custos financeiros envolvidos e desenvolver uma cultura extrajudicial de solução de conflitos mais harmônica e menos beligerante. O país precisa romper com essa cultura da judicialização”, avalia.

Schmidt defende que seja promovida uma discussão sobre a necessidade da popularização do uso da arbitragem para os pequenos e médios negócios. “Não podemos mais ofertar para essas empresas apenas a porta do Judiciário para resolução dos seus conflitos”, critica.

Na opinião de Guilherme Giussani, diretor técnico da Câmara de Mediação e Arbitragem da Associação Comercial de São Paulo, é preciso que o acesso ao instituto da arbitragem passe por uma democratização. “É necessário afastar do instituto o selo de que somente pode ser usado para grandes contratos ou contratos com valores vultuosos. Pensando dessa forma, automaticamente, existe uma exclusão dos pequenos e médios negócios”, critica.

Elias Mubarak Júnior analisa que optar pela arbitragem passa por uma avaliação de custos e dos benefícios para os empresários. “As principais vantagens são a rapidez, especialidade e eficiência na solução de conflitos, além da possibilidade de escolher um árbitro especializado no tema em disputa. A arbitragem pode oferecer sigilo, local mais conveniente para manter segredos industriais e empresariais. É preciso ter o cuidado de escolha de câmaras privadas com custos compatíveis com o tipo de contrato para trazer um benefício econômico e para que não seja mais onerosa do que um processo no Judiciário”, pondera.

Na pesquisa conduzida pelo Anuário da Justiça, os empresários também foram questionados se a arbitragem teria um nível maior ou menor de isenção no comparativo com a via judicial. Entre os respondentes, 30% declararam que ambos os caminhos são isentos da mesma forma; 21% disseram que a arbitragem é mais isenta que a Justiça; e 15% dos executivos apontaram que a arbitragem é menos isenta. Uma parcela de 35% não soube opinar sobre o tema.

Toda decisão arbitral está sujeita a revisão por parte do Judiciário por meio de ação anulatória do resultado do procedimento. Ao juiz compete analisar a legalidade do procedimento arbitral, e não o mérito da decisão. A Lei de Arbitragem estabelece que a Justiça pode invalidar a sentença arbitral quando for nula a convenção de arbitragem; a decisão ter sido proferida por quem não podia atuar como árbitro ou ter extrapolado os termos da convenção; quando a sentença não decidiu todo o conflito que foi levado à arbitragem; quando ocorrer corrupção passiva no procedimento; entre outros critérios.

Entre 2017 e 2021, 19% das sentenças arbitrais questionadas na Justiça foram anuladas, de acordo com a Arbipedia, empresa de pesquisa em doutrina e jurisprudência.

No Brasil, a arbitragem é regulamentada pela Lei 9.307/1996 e pelo Código de Processo Civil, além de normas específicas para disputas em determinadas áreas.

A Constituição Federal em seu artigo 114, parágrafo 2º, cita a existência do instituto da arbitragem ao determinar que “recusando-se qualquer das partes à negociação coletiva ou à arbitragem, é facultado às mesmas, de comum acordo, ajuizar dissídio coletivo de natureza econômica, podendo a Justiça do Trabalho decidir o conflito, respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente”.

No caso de conflitos trabalhistas coletivos, o uso está previsto na Lei de Greve (Lei 7.783/1989). O seu artigo 3º dispõe que “frustrada a negociação ou verificada a impossibilidade de recursos via arbitral, é facultada a cessação coletiva do trabalho”.

Já nos conflitos individuais, a reforma trabalhista (Lei 13.467/2017) passou a permitir a via arbitral desde que a iniciativa parta do trabalhador ou que haja concordância expressa. A remuneração do empregado também deve superar em duas vezes o teto da aposentadoria do INSS, valor em 2023 de R$ 15 mil.

A Convenção 154 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), assinada pelo Brasil, também prevê o mecanismo da arbitragem nas relações de trabalho. A Lei 12.815/2015, relacionada à atividade portuária, diz em seu artigo 37 que as partes devem recorrer à arbitragem quando houver impasse na solução de conflito pela comissão paritária criada no âmbito de órgão de gestão de mão de obra. E a Lei da Participação nos Lucros e Resultados (Lei 10.101/2000) é expressa em seu artigo 4º ao permitir o uso da arbitragem no caso de impasse na negociação coletiva.

Tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 3.293/2021 com alterações na Lei da Arbitragem, que ainda aguarda análise da Comissão de Constituição e Justiça. Uma das alterações propostas visa a ampliar o dever de revelação, não apenas antes da instauração do procedimento, mas durante todo o processo. A obrigação, no texto da lei, também passaria a ter como condição existir uma “dúvida mínima” ao invés de uma “dúvida justificada”.

Previsto no artigo 14, parágrafo 1º, da lei o dispositivo diz que os árbitros “têm o dever de revelar, antes da aceitação da função, qualquer fato que denote dúvida justificada quanto à sua imparcialidade e independência”. Tramita no STF a ADPF 1.050 em que o partido União Brasil pede que os ministros definam critérios para o dever de revelação.

O projeto de lei busca instituir o total de 10 causas para um árbitro ficar responsável ao mesmo tempo. O objetivo seria garantir a celeridade dos procedimentos. Outra mudança proposta é acabar com a confidencialidade das sentenças arbitrais, que passariam a ser públicas. A intenção seria dar publicidade aos procedimentos e criar uma jurisprudência arbitral.

“A confidencialidade é reconhecida como uma das grandes vantagens do uso da arbitragem porque protege segredos comerciais, informações confidenciais e estratégicas para as companhias”, pondera Gustavo da Rocha Schmidt. “Não se pode ignorar que as arbitragens, em geral, envolvem valores milionários. O resultado de uma arbitragem, se chegar ao público de forma descontrolada, pode levar uma empresa sólida à bancarrota. O mercado de ações é, por natureza, especulativo”, acrescenta.

Em nota, a OAB-SP criticou o projeto. “Alterações legislativas desnecessárias, principalmente quando fruto de iniciativas que não envolvam a comunidade jurídica atuante na área, só servem para fulminar o princípio basilar da autonomia da vontade das partes na contratação e condução da arbitragem como método eficiente de solução extrajudicial de conflitos. A comissão conclama os ilustres parlamentares para o arquivamento do PL”, afirma em nota a Comissão Especial de Arbitragem da OAB-SP.

Em meio ao debate sobre a confiança na via arbitral, especialistas apontam que é importante distinguir o papel das câmaras arbitrais em relação ao dos árbitros. Guilherme Giussani diz que os órgãos não têm responsabilidade direta pelo julgamento dos casos.

“A câmara será única e exclusivamente responsável pela administração do processo, disponibilizando estrutura física, tecnológica, emissão de notificações, intimações e prazos. Seria como se fosse o cartório de uma Vara do Judiciário”, defende.

Para Gustavo da Rocha Schmidt, o fato de o árbitro ser escolhido pelas partes também impediria que ocorra parcialidade no julgamento dos casos. “A câmara pode ser acusada de ineficiência, de ser cara, de ser lenta, jamais de ser parcial. É possível debater se o monopólio instituído em favor da CAM é eficiente e saudável para o mercado”, pontua.

ANUÁRIO DA JUSTIÇA DIREITO EMPRESARIAL 2023
1ª edição
Número de Páginas: 156
Editora: Consultor Jurídico
Versão impressa: R$ 40, na Livraria ConJur
Versão digital: É gratuita, acesse pelo site https://anuario.conjur.com.br ou pelo app Anuário da Justiça

Anunciaram nesta edição
Advocacia Del Chiaro
Arruda Alvim & Thereza Alvim Advocacia e Consultoria Jurídica
Ayres Britto Consultoria Jurídica e Advocacia
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