Adaptação lato sensu de direitos estrangeiros com foco no Direito Privado - Parte II (espécies)

Damos continuidade ao tema tratado na coluna anterior https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-direito-privado-estrangeiro/393052/julgado-da-suprema-corte-da-holanda). 

Naquele caso, a Suprema Corte Holandesa adaptou a garantia flutuante instituída segundo a legislação da Tanzânia para o penhor silencioso da legislação holandesa. Expusemos que esse caso poderia ser estendido ao Brasil, com eventual adaptação lato sensu da garantia flutuante para a propriedade fiduciária em garantia.


No presente artigo, passaremos a tratar um pouco mais desse que é um dos principais institutos de Direito Internacional Privado: a adaptação lato sensu. E, nesse ponto, registramos nossos elogiosos à produção de um dos principais internacionalistas brasileiros atuais que se dedicam ao tema: o Professor Gustavo Ferraz de Campos Mônaco.


Em um primeiro momento, exporemos o tema de modo mais superficial para facilitar a compreensão de leitores de primeira viagem nesse tema. Em artigos futuros, aprofundaremos o instituto.


2. Noções gerais


Em situações jurídico-transnacionais, é comum ocorrer o problema de um direito de um país (país de origem) não ser conhecido total ou parcialmente em outro (país de destino[1]).


Por desconhecimento total, designamos a situação de o ordenamento do país de destino não admitir o direito do país de origem.


Por desconhecimento parcial, batizamos a situação em que o ordenamento do país de destino admite o direito do país de origem com ressalvas. Essas ressalvas referem-se a diferenças de regime jurídico ou a diferenças de nomen iuris.


Em sucessões mortis causa envolvendo bens situados em diferentes países, é potencial o problema de a lei do lugar do bem (lex rei sitae ou lex situs) não conhecer total ou parcialmente o direito real que a lei sucessória outorgue a um herdeiro. Lembramos que, na maioria dos países, a lex situs é o elemento de conexão adotado para disciplinar direitos reais sobre bens, especialmente no caso de imóveis.


Se, por exemplo, uma lei sucessória ou um testamento defere um direito real de habitação a um herdeiro, indaga-se: o que se fará se a lex rei sitae não conhecer total ou parcialmente esse direito real dentro de sua legislação? Seria viável onerar o bem com um direito real totalmente desconhecido pela lex rei sitae (desconhecimento total)? E como ficaria essa questão na hipótese de o direito real ser apenas parcialmente conhecido pela lex rei sitae, como na situação em que o direito real é sujeito a um regime jurídico diferente (com, por exemplo regras de transmissão e de extinção diversas)?


Para situações como essa, discute-se se seria ou não cabível a adaptação lato sensu do direito estrangeiro para sua admissão no país de destino.


3. Conceituação geral


O tema da adaptação de direitos estrangeiros é tratado pela doutrina do direito internacional privado. Hans Lewald é tido como um dos pais desse instituto por ter implantado a discussão sobre essa figura no seu artigo Règles générales des conflits de lois, na Recueil des cours de 1939 (Lewald, 1939). Outros juristas cuidaram do assunto a partir dessas reflexões de Hans Lewald[2].


 No presente artigo, tratamos da adaptação lato sensu, assim entendido gênero do qual são espécies a adaptação stricto sensu, a transposição e a substituição. Deixaremos para aprofundar cada uma dessas espécies em outro artigo posteriormente. Assim, quando nos referirmos ao termo "adaptação", estaremos fazendo alusão à adaptação lato sensu. A doutrina costuma seguir essa convenção taxonômica.


De um modo simples, mas bem impressivo, a adaptação de direito estrangeiro pode ser vista como uma tradução, nas palavras de Gustavo Ferraz de Campos Monaco[3].


Nas palavras de Afonso Patrão, é o "conjunto de mecanismos aptos a solucionar os problemas derivados da aplicação parcial de várias leis"[4]. É um expediente técnico para que o julgador possa resolver esses problemas.


Esses problemas ocorrem quando estamos diante de situações jurídicas plurilocalizadas, ou seja, de situações jurídicas transnacionais. Nesses casos, a adaptação é a técnica do direito internacional privado destinada a lidar com questões claramente sujeitas a distintas leis e a distintas normas de conflito[5].


A necessidade de resolver esses problemas por meio da técnica da adaptação decorre da ideia de unidade do sistema jurídico.


No plano internacional privado, há um vínculo natural entre as diversas regras jurídicas. Por vezes, esse vínculo natural pode ser abalado "no jogo das normas em conflito"[6]. Para dissolver esse abalo ao vínculo internacional das normas, pode ser necessário ajustar a própria solução material das leis em conflito[7].


A doutrina majoritária do direito internacional privado admite a figura, embora ainda esteja tateando na sua aplicação nos casos concretos.


Não há muitas normas chancelando expressamente a figura. As principais são em caso de adaptação de direitos reais. É o caso, por exemplo, do art. 31º do Regulamento Europeu das Sucessões[8] e também do art. 15 da Convenção de Haia de 1985 sobre a lei aplicável ao Trust e ao seu reconhecimento[9]. Este último estabelece a necessidade de o trust ser adaptado em outro direito admitido pelo ordenamento local com efeitos similares[10].


Mesmo sem previsão normativa expressa, entendemos que a adaptação pode ser admitida no Brasil com base nos princípios gerais de Direito Internacional Privado.


Em artigo posterior, aprofundaremos as espécies de adaptação lato sensu.


 



[1] Empregamos as expressões "país de origem" e "país de destino" para facilitar a compreensão.


[2] Entre outros, citamos: ROZAS, José Carlos Fernández. "Coordinación de ordenamientos jurídicos estatales y problemas de adaptación". In: Revista Mexicana de Derecho Internacional Privado y Comparado, nº 25, 2009, pp. 9-44; PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016; PATRÃO, Afonso. Reflexões sobre o reconhecimento de Trusts voluntários sobre imóveis situados em Portugal. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  87, 2011; MARQUES DOS SANTOS, António. Breves considerações sobre a adaptação em direito internacional privado. In: Estudos em Memória do Professor Doutor Paulo Cunha. Lisboa/Portugal: Faculdade de Direito de Lisboa, 1989, pp. 521-606; MACHADO, João Baptista. Problemas na aplicação do direito estrangeiro - adaptação e substituição. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 36, 1960, pp. 327-351; MACHADO, João Baptista. Contributo da escola de Coimbra para a teoria do direito internacional privado. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 61, pp. 159-176, 1985; MONACO, Gustavo Ferraz de Campos. Conflitos de leis no espaço e lacunas (inter)sistêmicas. São Paulo: Quartier Latin, 2019, pp. 121-160; FERRER CORREIA, Antonio. Considerações sorbe o método do direito internacional privado. In: Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor J. J. Teixeira Ribeiro (Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, número especial). Coimbra/Portugal, 1983, pp. 1-92; FERRER CORREIA, Antonio. Considerações sorbe o método do direito internacional privado. In: Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor J. J. Teixeira Ribeiro (Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, número especial). Coimbra/Portugal, 1983, pp. 1-92; ANCEL, Bertrand. Regards critiques sur l'érosion du paradigme conflictual. Disponível em: https://www.ehu.eus/documents/10067636/10730148/2005-bertrand-ancel.pdf. Acesso em 2 de fevereiro de 2022. Destaca-se também o jurista francês Henri Batiffol (1905-1989), que dominou a doutrina francesa de direito internacional privado e que é multicitado pelos demais internacionalistas privados também em matéria de adaptação de direitos estrangeiros (SOCIÉTÉ FRANÇAISE POUR LE DROIT INTERNATIONAL. Henri Batiffol. Disponível em: https://www.sfdi.org/internationalistes/batiffol/. Acesso em 4 de abril de 2022). Entre as diversas contribuições dele, destaca-se artigo sobre as contribuições das regras norte-americanas de soluções de conflitos para o direito francês (LEWALD, Hans. Règles générales des conflits de lois. In: Recueil des cours, Tome 69, III, 1939, pp. 48-74).


[3] MONACO, Gustavo Ferraz de Campos. Conflitos de leis no espaço e lacunas (inter)sistêmicas. São Paulo: Quartier Latin, 2019, pp. 121-159.


[4] PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 140.


[5] PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, pp. 139-140.


[6] MACHADO, João Baptista. Problemas na aplicação do direito estrangeiro - adaptação e substituição. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 36, 1960, p. 330.


[7] LIMA PINHEIRO, Luís de. Direito Internacional Privado, volume I: introdução e direito de conflitos - Parte Geral. Lisboa/Portugal: AAFDL, 2019, p. 541.


[8] Regulamento (UE) nº 650/2012 (Eur-lex, 2012-A). Confira-se o teor do dispositivo:


 


Artigo 31.º


Adaptac¸a~o dos direitos reais


 


No caso de uma pessoa invocar um direito real sobre um bem a que tenha direito ao abrigo da lei aplica'vel a` sucessa~o e a legislac¸a~o do Estado-Membro em que o direito e' invocado na~o reconhecer o direito real em causa, esse direito deve, se necessa'rio e na medida do possi'vel, ser adaptado ao direito real equivalente mais pro'ximo que esteja previsto na legislac¸a~o desse Estado, tendo em conta os objetivos e os interesses do direito real em questa~o e os efeitos que lhe esta~o associados.


[9] HCCH, 30: Convenção sobre a lei aplicável ao trust e a seu reconhecimento. Data: 1 de julho de 1985 (Disponível: https://www.hcch.net/pt/instruments/conventions/full-text/?cid=59#:~:text=para%20os%20prop%c3%b3sitos%20desta%20conven%c3%a7%c3%a3o,ou%20para%20alguma%20finalidade%20espec%c3%adfica. Acesso em 3 de fevereiro de 2022).


[10] Confira-se o dispositivo o art. 15 da Convenção de Haia de 1985:


 


Artigo 15


A Convenção não prevê a aplicação de disposições de direito designadas pelas regras de conflitos do foro, na medida que estas disposições não possam ser derrogadas por ato voluntário, relacionado em particular às matérias que seguem:


 


a) a proteção de menores e partes incapazes;


b) os efeitos pessoais e de propriedade do casamento;


c) direitos de sucessão, testamentária e não testamentária, especialmente a reserva a cônjuges e parentes;


d) a transferência do título de propriedade e garantias reais;


e) a proteção dos credores em questões de insolvência;


f) a proteção de terceiros de boa-fé.


 


Caso o reconhecimento do trust seja impossível pela aplicação do parágrafo precedente, a corte buscará dar efeitos aos objetivos do trust por outros meios jurídicos.


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4. Espécies de adaptação lato sensu


Em situações jurídico-transnacionais, é comum ocorrer o problema de um direito de um país (país de origem) não ser conhecido total ou parcialmente em outro (país de destino1).


Até o presente momento, empregamos a expressão "adaptação" em seu sentido amplo: a adaptação lato sensu. Há, porém, espécies desse tipo de adaptação, a saber:


a) adaptação stricto sensu2;


b) substituição; e


c) transposição.


Doutrina minoritária inclui a transposição dentro da substituição. Não é essa a melhor corrente Mais adequado é separar as figuras, apesar de haver certa proximidade entre elas3.


A adaptação4, em qualquer uma das suas espécies, é caracterizada por implicar uma aplicação parcial de uma lei estrangeira a uma situação plurilocalizada. Esse é o ponto em comum entre elas5. A diferença está nos tipos de problemas a serem enfrentados.


A adaptação lato sensu é empregada em situações de insuficiência das regras tradicionais de conflitos de normas em direito internacional privado. Estas não logram resolver todos os problemas conflituais. A adaptação é "o expoente paradigmático de algumas insuficiências do método conflitual"6. É uma amostra da necessidade de haver certa flexibilidade nas técnicas de soluções conflituais em direito internacional privado para obter resultados adequados.


5. Adaptação stricto sensu


A adaptação stricto sensu dá-se quando há um "acidente técnico", na expressão de João Baptista Santos (1960, p. 328). O acidente técnico ocorre quando, para uma situação transnacional, duas leis de países diferentes são consideradas competentes para regulá-la e entram em conflito a ponto de gerar resultados impossíveis ou inadmissíveis7.


A adaptação stricto sensu é a técnica do direito internacional privado para conciliar essas duas normas que foram convocadas para regular a questão privada internacional e que, por si sós, acarretariam contradições (lógicas ou teleológicas) ou incompatibilidades materiais.


O objetivo da adaptação stricto sensu é encontrar uma congruência lógica ou teleológica diante da insuficiência dos métodos tradicionais de conflitos de normas, como os elementos de conexão. É corrigir o resultado inadmissível ou impossível que o "jogo de normas de conflito"8 acarreta em um caso concreto.


As contradições (lógicas ou teleológicas) e as incompatibilidades materiais são resultados impossíveis ou inadmissíveis que a adaptação stricto sensu busca desmanchar.


Cabe ao jurista tal tarefa em respeito à necessidade de preservar o vínculo natural que há entre os diversos ordenamentos jurídicos, dentro de uma ideia de unidade do sistema jurídico mesmo no plano internacional9.


O fato de inexistir uma regra de conflito para essa situação específica é irrelevante: cabe ao jurista preencher essa lacuna, adotando, por vezes, uma postura de legislador para ajustar o conteúdo material das normas estrangeiras envolvidas.


O jurista, porém, precisa ter cautela para não subverter as normas envolvidas. Tem de ser minimalista e cauteloso no manuseio da técnica da adaptação stricto sensu no caso concreto, com a acuidade própria de um neurocirurgião na fase mais sensível de uma operação no cérebro. João Baptista Machado10 destaca, in verbis:


Ao juiz não será lícito aceitar de braços cruzados um tal resultado: terá de o corrigir, ao decidir a hipótese litigiosa, procurando guardar respeito, na medida do possível, àquela interconexão de sentido que solidariza e argamassa as normas no ordenamento respectivo. Tem de preencher as lacunas que apareçam - tal como se lhe impõe para hipóteses internas -, tem de eliminar os contrassentidos e ajeitar a coatuação das diferentes leis, por forma a obter um "mosaico ilacunar" (Wengler) e harmônico.


Por isso se reconhece hoje em geral a necessidade de recorrer, em certos casos, a um procedimento de adaptação das normas materiais aplicáveis. Na expressão de Wengler, o juiz terá de proceder como se se tratasse de construir um automóvel com peças de marcas diferentes: passando além da simples função "constatadora" de normas de conduta dadas, o juiz avançará no sentido de uma conformação concreta das relações jurídicas através da sua decisão, no uso de uma faculdade quase-legislativa. É caso para dizer-se que ele atua não só secundum legem mas também de legibus. Essa atividade requer, por parte do juiz, um bom conhecimento do direito estrangeiro a adaptar, e o interesse da segurança jurídica pede que se limite ao mínimo a alteração introduzida no conteúdo da lei estrangeira.


Tratemos das contradições e das incompatibilidades.


A rigor, contradição lógica e contradição teológica são diferentes, nas palavras de Antônio Marques dos Santos11, que se apoia em G. Kegel. Contradição lógica dizem respeito a casos "assim não pode ser". Contradição teleológica já aludem a casos "assim não deve ser". Apesar de ser didático pensar assim, temos por mais didático tratá-las em globo dentro do termo "contradições", pois o resultado de ambas é o mesmo: a utilização da técnica da adaptação stricto sensu.


Quanto às contradições lógicas ou teleológicas (também chamadas de contrassentidos lógicos ou teleológicos), elas ocorrem quando a aplicação das duas leis competentes para disciplinar o caso gera um resultado incompatível com a finalidade de ambas as leis. Dá-se quando a aplicação pura das regras tradicionais de conflito internacional de normas cria uma contradição teleológica: colide com a ratio de ambos os ordenamentos jurídicos envolvidos.


O exemplo clássico da doutrina é do pai biológico português em conflito com o pai adotivo marroquino12.


Suponha que A (português residente em Portugal) tenha um filho biológico C.


Suponha que C tenha sido adotado por B (marroquino residente em Marrocos) à luz da lei marroquina. A adoção em países muçulmanos não corresponde propriamente à adoção comum nos países ocidentais. É chamada de kafâla e acarreta consequências jurídicas diferentes13.


C, portanto, é filho biológico do português e filho adotivo de B.


A lei portuguesa exclui o filho biológico que foi adotado por outrem da herança do pai biológico. Pressupõe que o filho biológico, ao ser adotado por terceiro, participará da herança deste último. No caso acima, à luz da lei lusitana, se o pai português (A) morresse, o seu filho biológico (C) não seria seu herdeiro, pois já foi adotado por outrem.


Acontece que a lei marroquina parte de lógica diferente. Ela exclui o filho adotivo da herança do pai adotivo. Escora-se na premissa de que o filho adotivo se beneficiará da herança do pai biológico. Na hipótese em pauta, à luz da lei marroquina, se o pai marroquino (B) morrer, o seu filho adotivo (C) não lhe será herdeiro.


Pelas regras tradicionais de solução de conflito (especificamente a de elementos de conexão), a lei portuguesa disciplinará a sucessão mortis causa do pai português, e a lei marroquina, a do pai marroquino. É que, nesses casos, o elemento de conexão é a lex domicilli: aplica-se a lei do domicílio do falecido para disciplinar sua sucessão mortis causa.


Dado esse cenário, suponha que ambos os pais faleçam. Nessa hipótese, se aplicarmos isoladamente cada uma das leis em tela, C não receberá herança alguma: nem do pai português, nem do pai marroquino. Trata-se de uma contradição teleológica: a finalidade de cada uma das leis em conflito está sendo frustrada. Cada uma das leis colimava que o filho recebesse uma herança. Mas, na espécie, C não receberá herança alguma se aplicarmos as duas leis isoladamente.


No exemplo acima, percebe-se que a aplicação dos métodos tradicionais de solução de conflitos de normas estrangeiras desaguará em um resultado inadmissível diante da contradição teleológica.


A adaptação stricto sensu é a técnica de direito internacional privado destinada a dissolver essa contradição lógica.


Deixaremos para a próxima coluna o tratamento das hipóteses de incompatibilidades materiais.


__________


1 Empregamos as expressões "país de origem" e "país de destino" para facilitar a compreensão.


2 Há autores, como Luis de Lima Pinheiro, que adotam nomenclatura diferente: no lugar de "adaptação lato sensu" e "adaptação stricto sensu", emprega respectivamente os termos "adaptação-problema" e "adaptação-solução" (Lima Pinheiro, 2019, pp. 540-545; Patrão, 2016, p. 139). No mais, admitem os termos substituição e transposição. Preferimos, porém, as expressões mais tradicionais para evitar dispersões taxonômicas que mais confundem do que esclarecem. Melhor, portanto, é referir-se à adaptação stricto sensu. Embora não se encontre na doutrina a expressão adaptação lato sensu, utilizamo-la aqui por entendermos estar implícita na escolha da doutrina em empregar o termo "adaptação" como um grande gênero dentro do qual a "adaptação stricto sensu" é uma espécie (Monaco, 2019, p. 153). Há, ainda, autores, como Giorgio Cansacchi, que deram sentido muito mais amplo ao conceito de adaptação, mas é adequadamente criticado por misturar o tema com problemas diferentes de direito internacional privado, como qualificação e reenvio (PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 140).


3 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, pp. 126 e 146.


4 Quando utilizarmos o termo "adaptação", a referência é ao sentido amplo (lato sensu).


5 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 140.


6 ROZAS, José Carlos Fernández. "Coordinación de ordenamientos jurídicos estatales y problemas de adaptación". In: Revista Mexicana de Derecho Internacional Privado y Comparado, nº 25, 2009, p. 11.


7 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, pp. 140-142.


8 Expressão de João Baptista Machado (MACHADO, João Baptista. Problemas na aplicação do direito estrangeiro - adaptação e substituição. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 36, 1960, p. 338).


9 MACHADO, João Baptista. Problemas na aplicação do direito estrangeiro - adaptação e substituição. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 36, 1960, p. 330.


10 MACHADO, João Baptista. Problemas na aplicação do direito estrangeiro - adaptação e substituição. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 36, 1960, pp. 330-331.


11 MARQUES DOS SANTOS, António. Breves considerações sobre a adaptação em direito internacional privado. In: Estudos em Memória do Professor Doutor Paulo Cunha. Lisboa/Portugal: Faculdade de Direito de Lisboa, 1989, P. 570.


12 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 141.


13 Considerar a Kafâla como uma adoção nos países ocidentais é fruto de uma espécie de adaptação lato sensu: a substituição.


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