O dia em que o STJ salvou o artigo 608 do Código Civil

 Algo notável na história das codificações civis é que a promulgação de um novo Código geralmente resulta em um texto bastante distinto do diploma que o precedeu. Pudera. Códigos civis não são leis descartáveis, a serem usadas e substituídas a cada solavanco da evolução social. Daí porque as propostas de recodificação são sempre eventos extremos, motivados pela percepção de que o Código em vigor se tornou a tal ponto anacrônico que não é mais capaz de dar conta da realidade que o cerca; que é preciso se desfazer das regras e da estrutura encapadas pelo Código e também dos valores que o norteiam. A completa renovação, refletiva, maturada, é uma forma de pavimentar o texto legal para resolver não só os problemas atuais, mas também aqueles que surgirão nas gerações futuras.

Não foi, todavia, o que ocorreu no Brasil. Por timidez de propósitos ou de espírito, a equipe de arquitetos do Código Civil de 2002 optou por manter as linhas do diploma anterior. "Foi fixado o critério de preservar, sempre que possível, as disposições do Código atual", afirmou Miguel Reale ao expor os objetivos do projeto, "porquanto de certa forma cada texto legal representa um patrimônio de pesquisa, de estudos, de pronunciamentos de um universo jurídico" 1. É por essa razão que a grande maioria dos dispositivos do Código de 1916 sobreviveu ao processo de recodificação, reencarnando em artigos equivalentes do diploma atual. As mudanças, no mais das vezes, buscaram restringir ou ampliar o sentido do texto, ou renovar-lhes a redação.

Essa escolha apresenta um grave inconveniente. Com a entrada em vigor do Código de 2002, regras que foram pensadas por Teixeira de Freitas e Bevilaqua com base nos valores da sociedade brasileira do século 19, para resolver problemas próprios daquela sociedade, receberam um novo verniz e, com isso, ares infundados de "modernidade". Escondidos em meio ao Código, esses dispositivos são verdadeiros neandertais adormecidos, prontos a acordar em um universo ao qual não pertencem.

Recentemente, o despertador tocou para o artigo 608 do Código Civil de 2002, quando do julgamento do REsp 2.023.942/SP pelo STJ 2. Tratava-se de um caso simples e midiático. Um famoso apresentador havia firmado um contrato com um canal de televisão para, durante dois anos, estrelar um novo programa. Eis que, diante do sucesso do quadro, e antes do término do contrato, um canal concorrente abordou o apresentador e lhe fez uma proposta mais atraente.

A oferta foi prontamente aceita pelo apresentador, que arcou com a multa de resilição prevista em seu contrato então vigente. Isso levou o canal preterido a ajuizar uma ação em face do canal concorrente, na qual pretendia a aplicação da sanção prevista no artigo 608 do Código Civil. De acordo com esse dispositivo, "aquele que aliciar pessoas obrigadas em contrato escrito a prestar serviço a outrem pagará a este a importância que ao prestador de serviço, pelo ajuste desfeito, houvesse de caber durante dois anos".

O pedido obteve êxito em primeira e segunda instâncias. Mas foi rejeitado pelo STJ. Para afastar a incidência do artigo 608, a Corte superior entendeu por bem conceder-lhe uma interpretação restritiva e analisá-lo à luz das regras de proteção da concorrência: essa sanção só seria aplicável nos casos em que o suposto aliciamento constitui um ato de concorrência desleal — algo que não estaria configurado no caso em comento. Para entender os contornos dessa solução inventiva (2) é preciso, antes, que nos debrucemos sobre os anacronismos do artigo 608 (1).

Um artigo anacrônico
Um primeiro passo para se compreender os problemas do artigo 608 é identificar suas raízes. Com efeito, esse dispositivo é herdeiro direto do artigo 1.235 do Código Civil de 1916, o qual afirmava que, em caso de aliciamento de pessoas obrigadas por contrato, escrito ou não, a prestar serviços agrícolas, o aliciador haveria de pagar ao antigo tomador do serviço o dobro do que o prestador receberia em quatro anos de contrato. Como se vê, o processo de modernização desse dispositivo se resumiu a três alterações: (i) a norma, que antes abrangia apenas os serviços agrícolas, passou a abarcar qualquer contrato de prestação de serviços; (ii) diminuiu-se drasticamente o valor da sanção; e (iii) o novo dispositivo, ao contrário do anterior, prevê que a sanção só será aplicável caso o antigo contrato de prestação de serviços tenha sido celebrado pela forma escrita.

Ocorre, contudo, que os problemas do artigo 608 não estão naquilo que se alterou, mas, antes, no que permaneceu. A começar pela própria existência o dispositivo. Note-se que a rigorosa vedação ao recrutamento de prestadores de serviço já empregados fazia todo sentido em uma sociedade oitocentista, anterior às conquistas proletárias e que não reconhecia o trabalho como um direito. Era natural, especialmente num país sub-capitalista e escravocrata como o Brasil do século 19, que o tomador dos serviços — que nada mais era do que o "empregador" de um tempo pré-legislação trabalhista — tivesse um poder de quase-propriedade sobre os indivíduos que para ele trabalhavam. É exatamente isso o que garantia o artigo 1.235 do Código Civil de 1916: consagrava-se, em favor do tomador de serviços, um direito de eficácia absoluta sobre seus serviçais, que haveria de ser respeitado por todos os membros da sociedade. A simples oferta de contratação dirigida a alguém já empregado representaria uma violação desse direito.

Ora, é evidente que esse tipo de poder não tem lugar na sociedade contemporânea. O mercado e as relações capital-trabalho passaram por transformações radicais de um século para cá, de tal sorte que a aplicação sem ressalvas do artigo 608 violaria, ao mesmo tempo, a liberdade laboral e a livre concorrência. Quanto ao primeiro desses valores, cumpre observar que a sanção prevista no dispositivo prejudica severamente os trabalhadores autônomos, pois cria dificuldades para que eles encontrem melhores condições de trabalho. Um grande cliente, por exemplo, pensaria duas vezes antes de contratar um advogado ao se dar conta que este profissional teria que renunciar ao patrocínio de antigos casos para atendê-lo. O que dizer, então, do mercado de jogadores profissionais, frequentemente assediados por equipes concorrentes dispostas a pagar o valor de sua multa rescisória?

Do ponto de vista da liberdade de iniciativa e do livre mercado, o artigo 608 é igualmente nefasto pois cria entraves à circulação de mão-de-obra. O tomador de serviços adquire uma espécie de monopólio sobre seus prestadores, que não poderão ser recrutados por concorrentes.

Nesse sentido, é comum que se aponte que o mencionado artigo 1.235 do diploma de 1916 teria como antecedentes os artigos 244 e 500 do Código Comercial brasileiro que, em sua redação original, puniam os empresários que aliciassem trabalhadores de fábricas concorrentes, e os capitães que seduzissem marinheiros de outras embarcações. Essa afirmação é verdadeira, porém, incompleta. A origem do revogado artigo 1.235 é bem mais nefasta: o dispositivo, em verdade, deita suas raízes no artigo 80 do Decreto 2.827 de 1879, que regulava a locação de serviços agrícolas.

Para entender essa norma, é preciso localizar seu contexto histórico: o Brasil vivia o fim anunciado do regime escravocrata e buscava substituí-lo pelo modelo da mão-de-obra imigrante. Editado nesse período de transição, o Decreto 2.827 procurava perenizar alguns traços da escravidão, garantindo que, mesmo sob o novo regime, os senhores continuariam a exercer um forte controle sobre aqueles que trabalhavam em suas fazendas 3. Nesse sentido, o decreto criminalizava a greve (artigo 78) e a conduta do empregado que se recusasse a trabalhar ou se ausentasse do trabalho (artigo 69); e instituía um regime de registro dos contratos de prestação de serviço (artigos 4º, 8º, e 22 a 24), de tal sorte que o prestador só estaria livre para procurar nova ocupação mediante atestado comprovando que o contrato anterior havia se encerrado (artigo 26).

Dentro dessa mesma perspectiva, o decreto punia com penas pecuniárias aquele que aliciasse para o seu serviço ou empregasse em sua fazenda trabalhador que estivesse vinculado a outrem por contrato de prestação de serviços vigente (artigo 80). Fechava-se o cerco sobre o prestador de serviços, que não poderia facilmente se libertar do jugo de seu senhor.

Compreende-se, então, a razão de ser do artigo 1.235: o dispositivo foi incluído no Código Civil de 1916 para garantir a continuidade, ainda que limitada, de preceitos do Decreto 2.827, que seria derrogado com a entrada em vigor do diploma civil. Esse artigo se insere num movimento de progressiva reconfiguração das relações de trabalho e representava um resquício do poder extravagante que os patrões exerciam sobre seus empregados. É lamentável que o legislador de 2002 tenha decidido dar sobrevida a essa norma em pleno século 21, e ainda por cima estendido a sua abrangência.

Uma solução inventiva
Como bem notou Adisson Leal em seu comentário ao REsp 2.023.942/SP 4, essa decisão é particularmente importante por se tratar da primeira ocasião em que o STJ se pronunciou sobre a aplicação do artigo 608 do Código Civil. Por certo, em precedentes anteriores o tribunal já havia se debruçado sobre o tema da responsabilidade do terceiro cúmplice no inadimplemento contratual 5, como no célebre caso do cantor Zeca Pagodinho 6 ou no litígio que envolveu o misterioso futebolista "N. da S. S. J." 7. Mas nenhum desses precedentes implicava a incidência do artigo 608.

Nesse julgado pioneiro, a solução encontrada pela Corte para contornar os problemas do artigo 608 foi tanto mais simples quanto perspicaz: ressignificar o termo "aliciar" à luz dos novos tempos. Note-se que, em seu sentido histórico, o verbo aliciar ostentava uma conotação ampla. O mero ato de contratar prestador de serviços já empregado bastava para configurar o aliciamento e, consequentemente, para a imposição da sanção. É exatamente o sentido que foi adotado pelo voto vencido no acórdão do STJ.

A maioria da 3ª Turma, contudo, seguiu outro rumo. "A responsabilidade civil de terceiro", afirmou o voto do relator, "não pode ser presumida pelo simples conhecimento de contrato de prestação de serviço em curso e oferecimento de proposta de negócio jurídico em condições mais vantajosas ao prestador". Para a incidência do artigo 608, o aliciamento só estaria configurado quando a oferta do terceiro se revestir de caráter reprovável, o que deve ser analisado de acordo com contexto das relações "entabuladas entre prestador de serviço e contratante, com especial destaque ao mercado envolvido". Em outros termos, a imposição de sanção ao terceiro só se justificaria nas hipóteses em que sua conduta viola a lógica do mercado em questão, constituindo também uma prática de concorrência desleal.

Ato contínuo, o tribunal observou que, no mercado televisivo, é natural que haja interesse de emissoras sobre artistas que estejam atuando em canais concorrentes. E que a empresa preterida era uma experiente emissora de televisão que tinha condições de se precaver, por meio de uma cláusula penal adequada, contra as consequências de eventual resilição prematura do contrato. Que, nesse sentido, não seria possível afirmar que a emissora concorrente teria agido de forma parasitária ou se aproveitado indevidamente dos investimentos do canal preterido, razão pela qual sua conduta não constituiria um ato de concorrência desleal.

A interpretação posta a cabo pelo STJ termina por aproximar funcionalmente o artigo 608 das regras de responsabilidade civil por ato anticoncorrencial, em especial, o artigo 209 da Lei 9.279 de 1996 que prevê a responsabilidade do concorrente por "atos tendentes a prejudicar a reputação ou os negócios alheios". E, de fato, a proposta hermenêutica concede um sentido adequado ao texto do Código Civil. No mercado contemporâneo, nem toda oferta de contratação dirigida a um prestador já empregado constitui um ato reprovável. Tudo vai depender do funcionamento do mercado e dos propósitos dessa oferta.

Seria possível, por exemplo, se vislumbrar a incidência do artigo 608 caso a oferta de trabalho tivesse por única finalidade encerrar a atração concorrente, sem que houvesse verdadeiro interesse do canal ofertante em empregar o artista em um novo programa — uma estratégia que, no passado, já foi muito utilizada por emissoras de televisão, que frequentemente contratavam apresentadores de canais concorrentes apenas para colocá-los "na geladeira".

Essa interpretação também contribui para o desenvolvimento da teoria da responsabilidade civil do terceiro cúmplice, na medida em que oferece um critério mais refinado para a sua aplicação. Ela é capaz de explicar, por exemplo, por que, no caso Zeca Pagodinho, a contratação do cantor por uma empresa concorrente merecia ser sancionada pelo Direito Civil. Diferentemente do que ocorreu no REsp 2.023.942/SP, naquele caso a proposta da concorrente tinha por propósito arruinar a campanha publicitária do antigo contratante e desabonar sua marca; uma atitude que violou os deveres de lealdade concorrencial, como bem reconheceu o próprio STJ.

O principal tema em aberto deixado pelo REsp 2.023.942/SP diz respeito à operabilidade da sanção prevista no artigo 608 — o pagamento, à vítima, de valor equivalente a dois anos de remuneração do prestador de serviços. Esse método de quantificação da punição era perfeitamente compatível com os propósitos do código anterior, que restringia a norma aos serviços agrícolas — nos quais, via de regra, o trabalhador prestava seu serviço por longo prazo e era remunerado periodicamente. Contudo, essa mesma regra será de difícil aplicação nos dias atuais, em que os serviços são frequentemente remunerados por evento e nem sempre têm duração determinada. Fica evidente, mais uma vez, a má-qualidade de nosso processo de recodificação, que aproveitou dispositivos do diploma anterior sem maiores reflexões.

A questão há de ser equacionada em julgados futuros. Mas fato é que, com REsp 2.023.942/SP, o STJ deu um importante passo para a aclimatação do artigo 608 ao mundo contemporâneo.

 


1 REALE, Miguel. O projeto do novo Código Civil. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 4.

2 STJ, REsp 2.023.942/SP, 3ª Turma, j. 25/10/2022.

3 A questão era antes regulada pela Lei 108 de 1837.

4 LEAL, Adisson. A responsabilização do terceiro interferente nas relações negociais na jurisprudência do superior tribunal de justiça: comentários ao Recurso Especial 2.023.942/SP. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 34, 2023, pp. 451-460.

5 Sobre o tema, cf. RODRIGUES Jr., Otavio Luiz. A doutrina do terceiro cúmplice. Revista dos Tribunais. vol. 821, 2004, pp. 80-98.

6 STJ, REsp 1.316.149/SP, 3ª Turma, j. 03/06/2014.

7 STJ, REsp 1.895.272/DF, 3ª Turma, j. 26/04/2022. O precedente faz prova da inventividade do STJ: a corte aplicou a responsabilidade do terceiro cúmplice pelo inadimplemento do contrato em um caso que não envolvia cumplicidade... tampouco inadimplemento!

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