Teorema de Coase, custos de transação e negociação entre as partes

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Em 1960, o renomado periódico acadêmico The Journal of Law and Economics, da Universidade de Chicago, publica o artigo "The problem of social cost", escrito pelo economista britânico Ronald Coase.[1] O texto abordou o impacto das externalidades no mercado, bem como o papel do Direito nessa questão.[2] Além de ser um dos trabalhos que levou o autor a ganhar o Nobel de Economia em 1991, trata-se um contributo importantíssimo para a ciência jurídica.

O momento da publicação coincide com as eleições presidenciais estadunidenses de 1960, tendo o democrata John F. Kennedy vencido o republicano Richard Nixon numa disputa acirrada e controversa. Na ocasião, Coase, que havia se mudado da Inglaterra para os Estados Unidos em 1951, exercia a docência na Universidade da Virgínia, sendo um homem de hábitos visivelmente tranquilos, mas de um pensamento que, obviamente, não era indene ao cenário de tensão político-econômica.

Aficionado pela economia no âmbito dos serviços públicos, Ronald Coase vinha estudando a Comissão Federal de Comunicações (FCC), órgão criado em 1934 durante a política do New Deal e que regula a indústria de telecomunicações e radiodifusão nos EUA. O resultado dessa pesquisa foi publicado em 1959 e enfatizou a alocação do espectro de radiofrequência com base no sistema de preços e na concessão do serviço ao maior lance. [3]

Inicialmente, uma parte dos economistas de Chicago considerou que o estudo se baseara em premissas equivocadas, pois, afinal, que espécie de direitos estaria sendo transferida ao licitante vencedor? Então, Ronald Coase reuniu-se com esses renomados economistas (entre eles, Milton Friedman, George Stigler e Aaron Director) e não somente provou a adequação de seus argumentos sob a perspectiva de um sistema de direitos de propriedade, como também recebeu um convite para publicar essas conclusões no "The Journal of Law and Economics". Surgiu, assim, o artigo "The problem of social cost", cuja aceitação foi instantânea e é, ainda hoje, o texto mais referido na teoria econômica, especialmente por conter o famoso Teorema de Coase.

Em demanda de atender àquele periódico de Chicago e de elucidar alguns pontos trabalhados pelo grande economista Arthur Pigou, da Universidade de Cambridge, "O problema do custo social" esclarece que não basta o standard segundo o qual certos tipos de imposições governamentais (por exemplo, os impostos) refrearão atores do mercado cujas ações tenham efeitos prejudiciais (fatores externos negativos) sobre terceiros.

Se os custos de transação forem zero (ou quase zero), as negociações entre as partes levarão a acordos que maximizem a riqueza, independentemente da atribuição inicial de direitos. Se houver liberdade de negociação entre as partes, se os direitos de propriedade estiverem bem definidos e os custos de transação forem zero ou muito baixos, o que importa realmente será a alocação ótima desses recursos. Essa é a base do Teorema de Coase, assim nomeado por George Stigler, já que nunca ocorrera a Ronald Coase emprestar seu próprio nome às suas deduções lógicas.

Observe-se o célebre caso Sturges v Bridgman, julgado em 1879 pela Court of Appeal da Inglaterra e País de Gales e de teor ainda contemporâneo, que foi analisado por Coase em "O problema do custo social". Em Westminster, mais especificamente na Wigmore Street, uma confeitaria funcionava há mais de seis décadas. O sr Bridgman, um dos herdeiros e confeiteiro, utilizava, como era usual nesse tipo de estabelecimento, moedores e pilões industriais para a feitura de pães, bolos e afins. Um dia o sr. Sturges, médico, adquiriu um imóvel na Wimpole Street, quase esquina com a Wigmore Street, passando este e aquele a serem confrontantes de fundos dos respectivos terrenos. Decorridos oito anos sem nenhuma intercorrência entre os vizinhos, o médico construiu um consultório no fundo do seu terreno, quando começou a se incomodar com o barulho produzido pelas máquinas e instrumentos da confeitaria.

Disposto a utilizar integralmente o seu espaço, o sr. Sturges ajuizou uma ação contra o confeiteiro, objetivando proteger seu direito ao silêncio. A defesa aduziu que a confeitaria estava em funcionamento há décadas, sem qualquer reclamação da vizinhança, e que o novo morador falhou ao não analisar as imediações antes de adquirir um imóvel no local. Nesse confronto entre o direito do sr. Bridgman usar as máquinas e o direito do sr. Sturges a ter silêncio durante as consultas, a Court of Appeal julgou procedente o pedido do médico, sob o fundamento de que o fato de a confeitaria ser mais antiga na localidade não mitigava o direito do médico invocar o uso e o gozo plenos de sua propriedade.

Ronald Coase é um crítico obstinado de decisões judiciais desse padrão, as quais implicam altos custos de transação e são insensíveis ao impacto econômico daquilo que foi decidido. O médico teve o seu silêncio respeitado, enquanto um estabelecimento tradicional foi obrigado a fechar as portas, a demitir empregados, a perder a clientela — ou, na melhor das hipóteses, a procurar outro local para instalar-se — tão somente porque alguém (sem a mesma função econômica na sociedade local) reclamou do barulho num determinado ponto do terreno.

Não seria mais vantajoso economicamente a confeitaria pagar uma quantia ao médico pelo silêncio turbado em alguns períodos do dia, construir uma parede com isolamento acústico ou comprar-lhe o terreno no todo ou em parte? Não seria mais simples o médico, mediante indenização, transferir seu consultório para a frente de seu terreno ou, talvez, pagar à confeitaria para que diminuísse o uso das máquinas durante o expediente das consultas? Em termos de zoneamento, o que seria mais apropriado para a região: uma confeitaria ou um consultório médico? O Judiciário cumpriria melhor sua função se estimulasse acordos economicamente benéficos entre as partes, e não se limitasse a aplicar a lei ao caso concreto?

Ronald Coase sustenta que "se as transações de mercado fossem sem custo, importaria apenas (sem considerar questões de equidade) que os direitos das várias partes sejam bem definidos e os resultados de ações judiciais fáceis de prever"; porém, "a situação é muito diferente quando as transações de mercado são tão dispendiosas que dificultam uma modificação do regime de direitos estabelecido pelo ordenamento jurídico".[4]

As consequências irrefletidas das decisões judiciais sobre pessoas estranhas à lide (externalidades) representam uma decorrência da utilização cada vez mais frequente e incompatível de recursos escassos. O embate entre a utilidade e o prejuízo da atividade empresarial é, todavia, inerente à vida contemporânea, devendo alguns desconfortos (como o barulho), desde que não excedam o razoável e não configurem grave dano, serem contornados em nome do bem comum, do proveito econômico e da melhor utilização possível do direito em questão —porque, quase sempre, há um ganho coletivo para compensar certas perdas, a exemplo da geração de empregos e da valorização imobiliária.

Postas essas primeiras questões sobre o pensamento de Coase, serão tratados, nos próximos dias, alguns desdobramentos dessa vertente, em particular os referentes aos danos ambientais, aos contratos de direito privado, aos direitos de propriedade e aos impactos econômicos das leis e decisões judiciais.

[1] Patrícia Cândido Alves Ferreira é pós-doutoranda em Direito Civil, doutora e mestra pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP).

 

[1] Para uma síntese da trajetória de Ronald Harry Coase, v.: FERREIRA, Patrícia Cândido Alves. Ronald Coase: a perspectiva de um economista sobre o Direito. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2023-mai-01/direito-civil-atual-ronald-coase-perspectiva-economista-direito>.  Acesso em: 13/05/2023.

[2] O artigo “The problem of social cost” (“O problema do custo social”) consta da tradução brasileira que abrange os principais textos de Ronald Coase. V.: COASE, Ronald H. A firma, o mercado e o Direito. Tradução: Heloísa Gonçalves Barbosa; revisão da tradução: Francisco Niclós Negrão; revisão final: Otavio Luiz Rodrigues Jr.; estudo introdutório: Antonio Carlos Ferreira e Patrícia Cândido Alves Ferreira. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária/GEN, Coleção Paulo Bonavides, 2022, p. 95-152.

[3] COASE, Ronald H. The Federal Communications Commission. The Journal of Law and Economics, v. 2, oct. 1959, p. 1-40.

[4] COASE, Ronald H. A firma, o mercado e o Direito..., op. cit., p. 119


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