A impossibilidade relativa pessoal configura onerosidade excessiva? Por Fernando Speck de Souza e Viviane Isabel Daniel Speck de Souza

No julgamento do REsp nº 1.930.085/AM, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) tratou da exata delimitação da impossibilidade relativa pessoal, indicando que a circunstância não configura a onerosidade excessiva do artigo 478 do CC.

No caso, o tribunal de origem considerou que o comprador de imóvel que teve orçamento familiar afetado em razão da necessidade de locar outro para se salvaguardar de ameaças constituiu impossibilidade de cumprir o contrato de compra e venda. O TJ-AM (Tribunal de Justiça do Amazonas) entendeu que as ameaças configuraram fato imprevisível e aplicou o artigo 478 do CC. O STJ reformou a decisão, afastando a ocorrência de fato extraordinário e imprevisível e a incidência da referida norma.

A resolução contratual por onerosidade excessiva é "posição intermediária"[1] entre o inadimplemento voluntário e o que decorre da impossibilidade da prestação. A onerosidade excessiva e a impossibilidade da prestação isentam o devedor da responsabilidade pelo inadimplemento. Mas é necessário compreender o alcance da impossibilidade da prestação, que não se confunde com a impossibilidade relativa pessoal.

A impossibilidade da prestação pode se dividir em objetiva e subjetiva. É objetiva se o objeto perece e ninguém pode cumprir a prestação. Será subjetiva quando se refere à impotência[2] do devedor, e unicamente dele, de cumprir a prestação, caso em que não haverá efeito liberatório da obrigação[3]. Estar sem meios não se confunde com estar impossibilitado, diferença relevante dadas as repercussões jurídicas de cada cenário.

A impossibilidade que afeta o devedor pode, em alguns casos, também acometer o objeto. É o que ocorre quando a obrigação só pode ser cumprida pessoalmente pelo devedor, que está impedido de fazê-lo. A inaptidão acarreta a impossibilidade do próprio objeto[4]. Mas, podendo o devedor ser substituído por outra pessoa no cumprimento da prestação (obrigação de fazer fungível), há mera impossibilidade do devedor, que não extingue a obrigação. Apenas sendo a obrigação personalíssima — hipótese em que a impossibilidade subjetiva se equipara à objetiva — estará o devedor exonerado[5] e o requisito da exterioridade é mitigado[6], pois, sendo a prestação infungível, a doença do devedor — fato interno e não externo — o desobriga.

A possibilidade de exonerar ou não o devedor está, então, vinculada à natureza da obrigação. Se infungível, a impossibilidade objetiva e a subjetiva levarão à extinção da obrigação. Se a obrigação é fungível, só a impossibilidade objetiva — que afeta a todos — conduzirá à exoneração[7].

Classificação diversa cataloga a impossibilidade em absoluta e relativa e, por vezes, gera confusão[8]. Será absoluta quando afetar qualquer indivíduo; será relativa quando atingir apenas o devedor, que não dispõe de meios de prestar, o que indica sua insolvência (Unvermögen no Direito alemão), havendo uma difficultas praestandi [9]-[10].

Impossibilidade não se confunde com mera adversidade econômica, não tendo amparo a teoria do limite do sacrifício[11], para a qual a mera impossibilidade relativa ou econômica tem efeito liberatório. Para a doutrina do limite do sacrifício (der Opfergrenze), surgida no período pós-primeira guerra, o dever de prestar tem um limite: o sacrifício razoavelmente exigível do devedor.

Ultrapassado tal limiar, surge a impossibilidade[12]. Embora "perigosa, por falta de critério seguro de limitação", Pontes de Miranda diz que "há casos em que outra solução seria impraticável". O autor indica um contrato com preço vinculado à moeda estrangeira (do país onde uma das partes reside) que, diante da variação cambial, se tornou excessivamente elevado, cabendo ao devedor provar que o pagamento exigir-lhe-ia um sacrifício de grande monta, como vender a indústria de onde tira seu sustento[13]. Não obstante, em casos de oscilação de preço por flutuação monetária, o STJ definiu que variação cambial não é fato imprevisível[14], entendimento hoje contido na Lei n. 14.010/2020 (artigo 7º).

Embora as impossibilidades objetiva e absoluta, e subjetiva e relativa, sejam, às vezes, tratadas como sinônimas, a doutrina portuguesa predominante enfatiza que há distinções entre as categorias. Assim, a impossibilidade subjetiva pode ser classificada como absoluta ou relativa e a impossibilidade objetiva também pode sê-lo[15].

A exemplo do que ocorre nos Direitos francês e italiano, a interpretação do art. 790.1 do CC português indica que só a impossibilidade absoluta exonera o devedor. A relativa (difficultas praestandi), tida como mera dificuldade ou maior onerosidade para cumprir a prestação, financeira, pessoal ou moral, não gera o efeito liberatório. Rejeita-se, portanto, a aplicação das doutrinas da impossibilidade econômica e do limite do sacrifício, segundo as quais a mera impossibilidade relativa ou econômica daria azo à liberação do devedor[16]. Mesmo na Alemanha, as referidas teorias têm opositores por acarretarem risco e insegurança às relações contratuais.

A ocorrência de impossibilidade superveniente pode configurar duas hipóteses: a) surge a impossibilidade absoluta da prestação, exigindo a análise da ocorrência do caso fortuito ou de força maior; b) circunstâncias posteriores alteram a base factual da época da contratação, ocorrendo a ruptura do equilíbrio contratual — sem gerar a impossibilidade de prestar — e permitindo a revisão contratual[17].  No primeiro caso, sendo a base da relação jurídica destruída[18], o caso fortuito e a força maior não geram apenas onerosidade maior da obrigação, mas sua impossibilidade[19].

Logo, a exoneração do devedor só se dá quando a impossibilidade é absoluta (ou objetiva, como visto). Não bastam a maior onerosidade, ainda que excessiva e imprevisível; ou a impossibilidade relativa, pessoal do devedor, independentemente de seus meios de ação particulares [20].

Deve ser considerada a impossibilidade que atingiria qualquer indivíduo, à vista de fatores objetivos (tempo, lugar, meio, objeto da prestação), de modo abstrato, sem análise subjetiva. Porém, a impossibilidade deve ser aferida na hipótese em concreto, não sendo adequado fixá-la a priori[21].

O exame da possibilidade de superar deve ser feito com a mesma ponderação que se avalia a inevitabilidade do evento fortuito. Não é razoável adotar rigor exacerbado sobre o que poderia ser vencido, devendo-se considerar o que poderia ser suportado por qualquer indivíduo em análogo cenário. As condições pessoais do devedor não devem, portanto, ser relevantes, devendo seus meios de ação, inclusive econômicos, ser abstraídos, salvo se diretamente vinculados à prestação [22].

Embora com traços comuns (ambas exoneram o devedor de indenizar perdas e danos e não abrangem em seu suporte fático a dificuldade econômica pessoal), impossibilidade absoluta e onerosidade excessiva não se confundem. Na onerosidade excessiva, a prestação ainda é possível, apesar de extremamente difícil de ser realizada[23].

A excessiva onerosidade "dependerá de um fato objetivo, não sendo este considerado o que derivou da inexecução voluntária do devedor, ou do agravamento da prestação por força de sua mora ou de sua negligência"[24]. "A onerosidade há de ser objetivamente excessiva, isto é, a prestação não deve ser excessivamente onerosa apenas em relação ao devedor, mas a toda e qualquer pessoa que se encontrasse em sua posição", conforme Orlando Gomes[25] em trecho citado no acórdão em comento.

A "ruína pessoal ou societária" não é alcançada pela teoria da imprevisão. Ela configura risco inerente às atividades negociais[26] e tem remédios próprios (execução por quantia certa contra devedor insolvente, falência, recuperação judicial ou extrajudicial, liquidação extrajudicial, processos de repactuação de dívidas ou de revisão e integração de contratos por superendividamento).

Otavio Luiz Rodrigues Jr. afasta impossibilidade econômica pessoal como causa de onerosidade excessiva "por absoluta contrariedade ao sistema obrigacional vigente", sendo o uso da teoria da imprevisão "temerário", pois seria "instrumento de subversão do contrato e do princípio pacta sunt servanda", violaria a segurança das relações jurídicas e beneficiaria a inadimplência de devedores mal-intencionados.

Com apoio em Karl Larenz, o autor diz que, como a liberdade, que traz riscos, a liberdade contratual também inclui riscos contratuais. Para que se aplique a teoria da imprevisão, a prestação deve ser excessivamente onerosa "por si mesma" (critério objetivo), não por dificuldade "de um determinado devedor" (critério pessoal)[27].

Arnoldo Medeiros da Fonseca, invocando autores estrangeiros, critica a teoria da impossibilidade econômica pessoal como fundamento para revisão ou resolução contratual. Embora a doutrina pareça justa e humanitária, o devedor que assume voluntariamente a obrigação deve garantir seu cumprimento. Demais disso, a teoria é obscura, não fornece elementos seguros para o juiz decidir casos concretos e privilegia apenas o interesse do devedor em detrimento daqueles do credor e da coletividade, não considerando as exigências do crédito[28].

Agostinho Alvim diz que o devedor, em princípio, é obrigado a cumprir a obrigação, ainda que com sacrifício ou aumento de ônus. Ele só será exonerado na impossibilidade de prestar. Embora a dificuldade seja tão intensa que possa ser considerada impossibilidade, não se pode confundi-la com caso fortuito. Mesmo diante de crise econômica, o devedor deve cumprir a obrigação[29], pois "diminuição da renda com a perda do emprego", por exemplo, "não pode ser considerado como um evento extraordinário"[30].

Em suma, para aplicar a teoria da imprevisão de modo justo e equilibrado, os critérios utilizados devem ser objetivos e baseados em fatos que possam afetar qualquer pessoa na mesma posição do devedor. Sua incidência não pode se amparar na impossibilidade econômica pessoal do devedor. Isso garante que a teoria seja aplicada somente em situações que justifiquem a revisão ou a resolução do contrato em busca do equilíbrio contratual (situações extraordinárias e imprevisíveis que onerem excessivamente uma parte com vantagem para a outra), acautelando os contratantes contra o uso abusivo desse remédio legal.

A decisão do STJ no REsp n. 1.930.085/AM, segundo a qual "não se justifica a resolução do contrato por onerosidade excessiva em virtude da mudança na capacidade financeira dos adquirentes, causada por fatos que não se relacionam com as circunstâncias que envolveram a conclusão do contrato e que tampouco alteraram a onerosidade da prestação inicialmente assumida"[31], está em consonância com a exata compreensão dos conceitos de onerosidade excessiva e impossibilidade da prestação.

 

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).

 

[1]     RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Revisão judicial dos contratos: autonomia da vontade e teoria da imprevisão. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 90.

[2]     FONSECA, Arnoldo Medeiros da. Caso fortuito e teoria da imprevisão. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1958. p. 154.

[3]     GOMES, Orlando. Obrigações. 18. ed. rev. e atual. por Evaldo Brito. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 150.

[4]     PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado, t. 23, cit., p. 104.

[5]     COSTA, Mariana Fontes da. Da alteração superveniente das circunstâncias: em especial à luz dos contratos bilateralmente comerciais. Coimbra: Almedina, 2017. p. 211.

[6]     MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao novo Código Civil: do inadimplemento das obrigações. Coord. Sálvio de Figueiredo Teixeira. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. v. 5, t. 2, p. 299.

[7]     ANTUNES VARELA, João de Matos. Das obrigações em geral, v. 2, cit., p. 74.

[8]     MARTINS-COSTA, Judith; SILVA, Paula Costa e. Crise e perturbações no cumprimento da prestação, cit., p. 163, nota 352.

[9]     COUTO E SILVA, Clóvis Veríssimo do. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. p. 98. FULGÊNCIO, Tito. Manual do Código Civil Brasileiro: do direito das obrigações, da modalidade das obrigações. Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro dos Santos, 1928. v. 10, p. 60. ANTUNES VARELA, João de Matos. Das obrigações em geral, v. 2, cit., p. 68.

[10]   FULGÊNCIO, Tito. Manual do Código Civil Brasileiro, v. 10, cit., p. 60.

[11]   AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor: resolução. Rio de Janeiro: Aide, 2003. p. 99.

[12]   ANTUNES VARELA, João de Matos. Das obrigações em geral, v. 2, cit., p. 68-69.

[13]   PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado, t. 23, cit., p. 113.

[14]   STJ, REsp 1321614/SP, rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, rel. p/ acórdão Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, j. 16/12/2014, DJe 03.03.2015.

[15]   PIRES, Catarina Monteiro. Contratos: perturbações na execução. Coimbra: Almedina, 2019. v. 1, p. 25.

[16]   COSTA, Mário Júlio de Almeida. Direito das obrigações. 12. ed. Coimbra: Almedina, 2016. p. 1075.

[17]   SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso de direito civil: obrigações em geral. 3. ed. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1960. v. 2. p. 457.

[18]   PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado, t. 23, cit., p. 108.

[19]   FONSECA, Arnoldo Medeiros da. Caso fortuito e teoria da imprevisão, cit., p. 152.

[20]   RUGGIERO, Roberto de. Instituições de direito civil: direito das obrigações, direito hereditário. Trad. Ary dos Santos. 3. ed. rev. por Antônio Chaves e Fábio Maria da Mattia. São Paulo: Saraiva, 1971-1973. v. 3. p. 101-102.

[21]   FONSECA, Arnoldo Medeiros da. Caso fortuito e teoria da imprevisão, cit., p. 45, 46 e 48.

[22]   FONSECA, Arnoldo Medeiros da. Caso fortuito e teoria da imprevisão, cit., p. 154-155.

[23]   SCHREIBER, Anderson. Equilíbrio contratual e dever de renegociar. 2. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. p. 449.

[24]   RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Revisão judicial dos contratos, cit., p. 90, f.

[25]   GOMES, Orlando. Contratos. 26. ed. rev. e atual. por Antonio Junqueira de Azevedo e Francisco Paulo de Crescenzo Marino. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 214-215.

[26]   RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Revisão judicial dos contratos, cit., p. 129.

[27]   RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Revisão judicial dos contratos, cit., p. 129-131.

[28]   FONSECA, Arnoldo Medeiros da. Caso fortuito e teoria da imprevisão, cit., p. 111-112.

[29]   ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas consequências. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1972. p. 328.

[30]   STJ, AgInt no REsp n. 1.514.093/CE, rel. Min. Marco Buzzi, 4.ª T., j. 25.10.2016, DJe 07.11.2016.

[31]   STJ, REsp n. 1.930.085/AM, rel. Min. Nancy Andrighi, 3.ª T., j. 16.08.2022, DJe 18.08.2022.


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