A evolução do Direito de Família pelo mundo (parte 3): o poliamor, por Mário Luiz Delgado

Concluo hoje a série de colunas sobre o 18º Congresso Internacional da ISFL (International Society of Family Law), que ocorreu entre 12 e 15 de julho em Antuérpia, na Bélgica, sem esgotar sequer a menção a todos os temas tratados [1].

Por isso, inicio por convidar os nossos leitores, não apenas os interessados no Direito de Família e Sucessões transnacional, mas também aqueles que queiram conhecer a experiência e as vivências de nossa área em outros países, para se associarem à ISFL e participarem de seus próximos eventos. A ISFL promove conferências regionais abertas a não membros em várias partes do mundo e um congresso mundial a cada três anos. A próxima conferência regional ocorrerá nos EUA em 2024.

Na última coluna, aludi à tendência crescente, no cenário internacional, de inclusão, no Direito de Família e Sucessões, das entidades familiares não binárias, ou seja, grupos com mais de duas pessoas, independentemente de conjugalidade e de parentalidade, mas submetidos ao mesmo tipo de proteção legal dada aos relacionamentos conjugais de duas pessoas (casamento e união estável) ou às famílias monoparentais e anaparentais.

O chamado poliamor (polyamory) foi destaque em diversos painéis na Universidade de Antuérpia. Estou convicto de que a grande rejeição, no Brasil, à regulação e à formalização dessa modalidade de família, com recorrente invocação, por alguns autores e tribunais, de violação ao princípio da monogamia como óbice, se deve, muito mais, a um preconceito machista, e a uma curiosidade concupiscente, sobre a natureza das relações íntimas entre os seus membros, do que a qualquer outra razão jurídica [2].

Tanto é assim que, se apartarmos a discussão da questão sexual, focando, por exemplo, em uma comunidade de três amigas idosas, solteiras e sem filhos, que convivem juntas, em comunhão de vidas e de patrimônio, mas sem relações sexuais, poucos se oporiam à equiparação desse trio (e não trisal) às demais entidades familiares, em direitos e obrigações. Essa constatação me leva também a concluir pela necessidade de "dessexualização" da família, expressão inspirada nos estudos de Giselle Groeninga, sobre a qual certamente voltaremos a tratar.

O fato é que o reconhecimento dessas pessoas, como um "núcleo amoroso" e familiar, não pode estar condicionado à prática de relações sexuais entre elas. Independentemente do que ocorra entre quatro paredes, e que se acoberta sob o manto da garantia constitucional da inviolabilidade da vida privada, deve-lhes ser assegurado o direito de combinar sobrenomes, o direito aos vínculos legais de parentesco, direitos sucessórios, alimentos, regime de bens, e tudo o mais.

A professora Nausica Palazzo, da Faculdade Nova de Direito de Lisboa, comentando a decisão do tribunal de despejos da cidade de Nova York (New York City's eviction court) no caso West 49th St., LLC v. O'Neill , de 2022, objeto de nossa última coluna [3], apontou, em sua conferência, para "a inevitabilidade de expandir noções de família por meio de argumentos baseados em funções. Se o foco estiver na capacidade de um relacionamento funcionar exatamente da mesma forma que uma família tradicional, então um conjunto maior de famílias merece reconhecimento legal". O Direito de Família deve se preocupar com as características e funções reais dos membros da família, em ter pessoas cuidando e apoiando umas às outras de forma confiável e duradoura, demonstrando comprometimento e confiança. A decisão, segundo ela, considera irrelevante, para a concessão das proteções legais, a questão de saber se o relacionamento é "bom" ou mesmo "emocionalmente abusivo", muito menos se eles praticavam sexo entre si, acrescento eu. A pretendida proteção contra o despejo liminar, afirmou Palazzo, "não deve se basear em distinções jurídicas fictícias ou na história genética, mas deve encontrar seu fundamento na realidade da vida familiar".

Kaiponanea Matsumura, da Loyola Law School, de Los Angeles, observou que, se por um lado uma primazia cultural do casamento sobre outras molduras de família socialmente reconhecidas decorre de ser o casamento supostamente mais estável do que outras formas de relacionamento, e que as propostas para reconhecer relacionamentos não conjugais geralmente giram em torno do fator "estabilidade", não é menos verdade que relacionamentos poliamorosos ou plurais também podem se revelar bastante estáveis e persistirem, apesar das idas e vindas de parceiros individuais. Segundo Matsumura, "estudos sugerem que as pessoas em relacionamentos plurais não estão menos comprometidas, satisfeitas ou confiantes em seus parceiros. Na verdade, eles relatam níveis ainda mais altos de satisfação e qualidade no relacionamento[4].

Em outros termos, se a estabilidade foi um elemento importante na aceitação social de variadas formas de conjugalidade (como ocorreu com a união estável no Brasil), também é de ser levada em conta no reconhecimento de relacionamentos plurais, com ou sem coabitação.

Um relacionamento é considerado "estável", para Matsumura, quando é: respeitável (digno), altruísta (satisfaz as necessidades dos outros), exclusivo (sem parceiros externos) [5], financeiramente seguro, emocionalmente comprometido e longevo ou com expectativa de permanência.

A lei valoriza relacionamentos "estáveis", diz Matsumura, porque eles promovem dignidade, segurança jurídica, segurança financeira, ambiente de cuidado, conexões sociais e privatização da dependência econômica, pois o suporte material, em caso de dissolução, é devido pelos respectivos parceiros.

Se o Estado, por meio do Direito de Família, incentiva os relacionamentos estáveis em detrimento dos transitórios, negar a tutela estatal e condenar à invisibilidade as formações não binárias seria reconhecer que tais relacionamentos, entre mais de duas pessoas, são inerentemente instáveis, inferiores aos relacionamentos de duas pessoas e que não são dignos de respeito, restaurando, assim, uma inaceitável hierarquização das formas de constituição de família, há muito tempo banida pelo pergaminho constitucional.

A invisibilidade estatal no tocante a essas molduras não hegemônicas de família no Brasil, além de restringir a autonomia privada e a liberdade das pessoas que convivem dessa maneira, legitima uma indevida intervenção do Estado na vida privada, em clara violação à cláusula de barreira prevista no artigo 1.513 do CCB, segundo a qual é "defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família".

 

[1] A profusão de temas discutidos nos quatro dias do congresso da ISFL é digna de nota. Menciono, a seguir, apenas os títulos de alguns painéis, para que se tenha a dimensão da grandiosidade desse evento: Justiça algorítmica para disputas familiares; Prevenindo a violência de gênero e familiar por meio da Inteligência Artificial: uma perspectiva multidisciplinar; O caso do 'contato herdado’ entre o direito à privacidade e o direito ao sucesso; Inteligência Artificial e Algoritmos no Direito de Família; Famílias Queer; Maternidade, gravidez de substituição e as novas famílias decorrentes; O que é um Parceiro: Relações Platônicas; Vida Humana Não Nascida ; Aborto e Direitos Reprodutivos; Autodeterminação Reprodutiva; Lei e intimidade; Análise jurídica dos direitos reprodutivos do pai, especificamente em matéria de aborto; Biotecnologias e "crianças perfeitas": como proteger o melhor interesse da criança quando os pais querem escolher as características genéticas de seus filhos?; A justificativa das medidas de proteção à criança durante a gravidez; Os direitos das crianças são suficientes?; A autonomia parental e os direitos e interesses dos filhos à luz das responsabilidades parentais; O direito de brincar: um direito dos menores, mas não um direito dos menores; Repensando a responsabilidade parental à luz dos direitos fundamentais das crianças na era digital; Reprodução medicamente assistida e o direito de conhecer as próprias origens; O direito da criança a conhecer as suas origens — existe um fosso entre a legislação e a prática jurídica?; O significado dos genes ; Os significados interdisciplinares das origens genéticas na concepção dos doadores; Guarda Física Compartilhada e Alto Conflito Interparental; Compreendendo as obrigações alimentares dos filhos: uma perspectiva ética relacional; Alienação Parental: Efeitos de Longo Prazo de Ordens Judiciais. Entre muitos outros.

[2] Não se pode equiparar qualquer relação íntima entre várias pessoas com a figura da poligamia, que pressupõe a existência de vários casamentos (poly/gammus). O princípio da monogamia, por sua vez, está implícito no ordenamento e é extraído a partir da interpretação do art. 1.566, inc. I, do CC, ao consagrar o dever de fidelidade recíproca entre os cônjugesdurante o casamento e desde que não haja separação de fato, entendida como causa de rompimento dos deveres. Em outras palavras, a monogamia refere-se à proibição expressa ao segundo casamento de quem ainda não dissolveu o anterior e à proibição à constituição de união estável de quem já é casado e ainda não se separou de fato.

[4] Segundo o conferencista de Los Angeles, "o casamento não surgiu como resultado de um movimento político, uma doutrina religiosa ou qualquer outra força motriz da história mundial, mas para atender a uma necessidade vital: garantir que as crianças são concebidas por uma mãe e um pai comprometidos em criá-los nas condições estáveis de um relacionamento vitalício".

[5] A exclusividade aqui não se confunde com a monogamia, no sentido de relações exclusivas entre duas pessoas. Mas relações exclusivas entre aqueles que integram o relacionamento plural.

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