"Smart contracts" e necessidade da garantia do equilíbrio da relação contratual

Recentemente, a série estrangeira "Black Mirror" (Netflix, 2023) adicionou, ao seu catálogo de episódios distópicos que versam sobre tecnologia e projeções de futuro, um episódio bastante interessante denominado "A Joan é péssima" (ou "Joan is awful", na língua original). Nele, conhecemos a personagem principal, chamada Joan, que se surpreende com a existência de uma série em uma plataforma de streaming sobre a sua vida, detalhando informações sórdidas e pessoais sobre seu dia a dia e fazendo-a perder seu emprego, casamento e sanidade mental.


O que acontece neste episódio é uma realidade em que, por meio de aparelhos eletrônicos que nos vemos rodeados ao longo do dia, esta empresa de streaming monitora a vida do aderente de seus serviços e, por meio de inteligência artificial, transforma esta vida em uma série de televisão a ser lançada em sua plataforma. Atordoada, a personagem principal recebe a informação, por parte de sua assessoria jurídica, de que nada poderia ser feito, pois todo este monitoramento foi devidamente acordado quando do momento da assinatura ao serviço de streaming em questão, dando-lhe aval para monitorar sua vida e transmiti-la ao grande público.


Por óbvio, a situação descrita trata-se de realidade bastante aumentada e pessimista de um futuro próximo em que estaremos sujeitos às grandes corporações e suas discricionaridades de forma irrestrita. Um contrato de adesão com essas características, aplicado à atual legislação brasileira, bateria de frente com uma grande gama de previsões legais que não permitiriam a perpetração de tais ações, tal qual a Lei Geral de Proteção de Dados e o próprio Código de Defesa do Consumidor.


No entanto, para questões não tão evidentes, fica o questionamento do limite da liberdade das relações contratuais, especialmente aquelas aplicadas dentro do ambiente digital, em que se utilizam, predominantemente, os chamados smart contracts.


Smart contracts nada mais são do que contratos utilizados digitalmente, objetivando a automação e facilitação da relação contratual. Em geral, são utilizados de maneira massificada por empresas de tecnologia, ou que propõem seus serviços de forma eletrônica (tais quais os serviços de streaming).


A grande questão destes contratos eletrônicos, principalmente os de adesão, é que eles retiram um elemento essencial da relação contratual: a pessoalidade. No momento que as partes formalizam uma relação contratual, configura-se uma pessoalidade entre ambos, contratante e contratado, em que se objetiva, primordialmente, o respeito ao acordado.


Ao se falar de uma demanda automatizada, utilizando-se elementos que se sustentam em inteligência artificial, precisa-se ter bastante cuidado no momento de aderência a estes tipos de contratação, especialmente naqueles que resultam no necessário fornecimento de dados pessoais. Estes procedimentos, por si só, devem ser observados à luz de padrões da legislação local, não somente para promover a segurança entre as partes, como a toda a coletividade - afinal, está a se falar de contratos utilizados em larga escala e acessíveis ao grande público.


A busca pelo equilíbrio da relação contratual, no entanto, deve ir além da regulação sob a ótica legislação local. Afinal, em que pese o largo caráter protecionista trazidos por legislações como as já anteriormente mencionadas, por vezes, necessário se faz observar com cautela o desenvolvimento e refinamento das tecnologias de inteligência artificial pois, em certo momento, o contrato pode preencher todos os requisitos legais de sua constituição, sem a existência de vícios, porém, não expressando exatamente o que uma das partes quis ao aderi-lo - essa parte, geralmente, sendo a hipossuficiente na relação.


Resta, portanto, a combinação da tecnologia que permitiu a utilização deste tipo de documento de aderência em larga escala em conjunto com a própria necessidade de preservação das partes na relação contratual, trazendo instrumentos tecnológicos que permitam a aferência da real vontade das partes. Não obstante, nada exime o próprio poder público, mediante seus instrumentos legislativos e regulatórios, de intervir nestas relações privadas e promover a preservação da coletividade.


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