Já ouviu falar no rompimento da solidariedade familiar?

 Olá colegas Migalheiros!


O artigo de hoje trata de uma dúvida que surgiu em um dos casos que acompanho como psicóloga assistente técnica: um pai/mãe que abandona física e emocionalmente o filho na infância e adolescência, privando-o das necessidades materiais e afetivas, tem o direito (ou "moral") de, anos depois, na velhice, exigir que esse filho lhe preste assistência?


Antes, então, vamos esclarecer alguns pontos da questão do abandono afetivo: o processo busca indenização por danos morais, mediante sanção pecuniária indenizatória, para compensar a ausência, a carência afetiva e material, a sensação de abandono, em casos extremos existe o bullying de outras crianças, familiares e amigos, porque aquele pessoa não tem o nome do pai no registro, surgem dúvidas sobre os motivos do abandono.


"Ninguém é obrigado a amar" (Ministra Nancy Andrighi, STJ), mas o amor é fonte de sofrimento (pelo abandono, carência), e por isso os Tribunais Superiores entendem a necessidade de sanção pecuniária indenizatória ao causador do sofrimento;


KAROW (2012): na reparação civil por abandono afetivo, o autor responderá tanto na forma dolosa como culposa (por inexistência de distinção entre essas modalidades no art. 186 do Código Civil/2002) - ou seja, não é somente quando o agente age com dolo que é obrigado a indenizar -, o que irá refletir no critério de fixação da quantia indenizatória.


Precisamos aqui fazer uma diferenciação importante:


Abandono afetivo: afastamento emocional entre o genitor e o filho.

Demissão parental: completa supressão da convivência entre genitor e o filho.

Só há dano quando, mesmo havendo uma pessoa, ela não consegue suprir a carência afetiva que a criança sente pelo(a) genitor(a) ausente, ou que, pelo contrário, essa pessoa tornou mais latente e evidente a ausência do(a) genitor(a).


E quais os critérios?


Conduta ativa ou omissiva;

Imputação a qualquer dos genitores, ou a ambos, inclusive adotivos;

Causar dano intenso nas fases iniciais do desenvolvimento infantil: necessário comprovar o nexo causal;

Nem todo sintoma ou sequela pode ser tão grave a ponto de prejudicar a personalidade e ser passível de indenização por abandono afetivo.

 Analisar o contexto familiar, para identificar se não houve episódios de afastamento do(a) outro(a) genitor(a), que podem caracterizar Alienação Parental.

Distorções do uso da lei da alienação parental:


Genitor(a) que efetivamente abandonou o lar e agora alega que o afastamento do filho é decorrente de atos de Alienação Parental do(a) outro(a) genitor(a);

Auto-alienação parental, ou alienação parental autoinfringida;

Rivalidade e disputa de afeto entre genitor(a) e atual cônjuge do(a) outro(a) genitor(a);

Dificuldades financeiras do(a) genitor(a) guardião(ã) e/ou do próprio filho, que resolve procurar o(a) genitor(a) afastado(a) para exigir a indenização.

ATENÇÃO: A falsa acusação de alienação parental (para encobrir um abandono real), além de CRIME (denunciação caluniosa, art. 339 CP) também é um ato de alienação parental!!!


Aspectos importantes a serem observados na avaliação psicológica do abandono afetivo:


Nem sempre (ou quase nunca) é possível pensar na bateria de testes logo de imediato. É importante que se faça(m) entrevista(s) (por vezes, mais de uma!) para se observar elementos específicos de cada entrevistado e do contexto familiar. Ex.: postura, discurso, expressões faciais, comunicação não-verbal, descrição das relações, etc. Daí o(a) psicólogo(a) terá informações que embasem a seleção de testes a serem utilizados;

Validade do teste, conforme sistema SATEPSI-CFP;

Pertinência com a demanda;

Adequação com as características de cada examinando: idade, escolaridade, aspecto psicopatológico (ex.: depressão, ansiedade, agressividade), suspeito ou confirmado que seja decorrente do alegado abandono afetivo, não pode ser anterior, pois aí o nexo causal não se estabelece com segurança.

Mas, e quando o pai/mãe abandona o filho na infância, causando abalo emocional na fase sensível de desenvolvimento, tem direito (ou "moral") de exigir assistência desse filho, na velhice?


Esse é um ponto polêmico, pois muita gente associa a velhice com fragilidade, doenças, vulnerabilidade. A sociedade constrói o estereótipo da "vovó" (estilo "Dona Benta" do "Sítio do Pica-pau Amarelo", de Monteiro Lobato). Temos a representação social de que todo idoso é "sábio", vira "santo", inclusive porque está mais próximo da morte e pode "ver Deus", já "cumpriu sua missão na Terra".


Mas nem todos são assim. Existem idosos que continuam imaturos, perversos, arrogantes, preconceituosos. Até porque não foram idosos para sempre, tiveram suas escolhas na juventude, e alguns deles, por vontade própria, ou por circunstâncias externas, abandonam os filhos. Por vezes, se recusam a registrar o nome no documento da criança, ou deixam deliberadamente de prover as necessidades materiais, ou humilham, discriminam, isolam a criança, não oferecem afeto, atenção, cuidados, preocupação com transmissão de valores educacionais e culturais, etc.


De qualquer forma, essas situações acabam abalando a fase mais sensível do desenvolvimento infantil, que é a fase do estabelecimento de vínculos (BOWLBY, 1979). Daí a necessidade de reparação indenizatória pecuniária, que não "paga" a carência afetiva, mas traz a "punição" necessária àquele(a) genitor(a) que abandonou. Mesmo sob alegação de ser em decorrência da alienação parental (afastamento compulsório), a tese é que esse(a) genitor(a) deveria ter se esforçado mais para lutar contra os atos de alienação parental do(a) outro(a) genitor(a), e cedeu à pressão, à custa de abandonar o filho.


E, no caso do pai/mãe que abandona deliberadamente o filho, tem o direito de procura-lo, na velhice, para exigir a assistência, invocando o Estatuto da Pessoa Idosa? Existem teses que entendem que, em que pese a obrigação dos filhos de cuidarem dos pais na velhice, como disposto no referido Estatuto, ele não se aplica quando houve esse abandono, pelo princípio do rompimento da solidariedade familiar. Isso mesmo: se aquele(a) genitor(a) não prestou assistência afetiva e/ou material ao filho na fase mais necessária, perde o direito de exigir que o filho lhe preste assistência. Já existe também jurisprudência a respeito:


Apelação cível. ação de alimentos ajuizada pelo ascendente em desfavor de seus filhos. Pedido amparado no compromisso de solidariedade familiar. Exegese do art. 1.696 do código civil. Improcedência na origem. Ausência de demonstração do binômio necessidade/possibilidade. ônus que competia ao autor da demanda, por força do art. 373, inc. i, do código de processo civil. inexistência de vínculo afetivo entre os litigantes. sentença mantida. recurso conhecido e desprovido. O pedido alimentar formulado pelo ascendente ao descendente com fundamento no art. 1.696 do CC exige demonstração inconcussa da necessidade alimentar e da capacidade financeira do alimentante de prestar auxílio ao genitor. Em face do caráter solidário da obrigação alimentar, inacolhe-se pleito formulado por genitor contra filho maior de idade se este não recebeu por ocasião de sua menoridade os cuidados paternos inerentes ao pátrio poder a que tinha direito (apelação cível n. 2013.035033-8, de Camboriú, rel. des. monteiro Rocha, j. 10-10-2013).


(TJ-SC - AC: 20150612454 CRICIÚMA 2015.061245-4, RELATOR: STANLEY BRAGA, DATA DE JULGAMENTO: 14/04/2016, QUARTA CÂMARA DE DIREITO CIVIL)


Apelação. Ação de fixação de alimentos. Propositura de ascendente contra descendente (pai contra filho), postulando alimentos em benefício próprio. Sentença de improcedência. Inconformismo da parte autora. Não provimento. Sentença mantida por seus próprios fundamentos (artigo 252, RITJSP). 1. Inexistência de preenchimento dos requisitos legais para filho pagar obrigação alimentar em favor do pai (art. 1.694, 1.696, 1.699, CC/02, Estatuto do Idoso, arts. 226, 229 e 230, CF/88), seja em virtude da ausência de demonstração necessidade em receber os alimentos, seja pela falta de condições financeiras confortáveis do filho, assim como pelo rompimento da solidariedade familiar, por conduta imputável ao genitor-autor, quando deixara, por tempo significativo, de prover sustento ao filho enquanto este era menor de idade. Ausência de comprovação, pelo genitor autor (art. 373, I, CPC/15) de miserabilidade ou submetido a vida indigna inevitável, aferindo-se dos documentos juntados que sua subsistência e dignidade humana estão preservadas com o valor que percebe de proventos de aposentadoria, assim como de acesso a serviços públicos de saúde. 2. Recurso de apelação da parte autora desprovido.


(TJSP; Apelação Cível 1019953-95.2020.8.26.0562; Relator (a): Piva Rodrigues; Órgão Julgador: 9ª Câmara de Direito Privado; Foro de Santos - 3ª Vara de Família e Sucessões; Data do Julgamento: 10/09/2021; Data de Registro: 10/09/2021)


AÇÃO DE ALIMENTOS. (Genitor x Filhos) I. Demanda de fixação de alimentos movida pelo genitor contra as duas filhas. Binômio necessidade-possibilidade, contudo, não verificado. Autor que recebe benefício previdenciário e auxílio de sua companheira, bem como de uma filha que com ele reside. Tratamento de saúde realizado pela rede pública. Ausência de despesas extraordinárias ou de situação de miséria e indignidade. Filhas, por seu turno, que não possuem larga capacidade contributiva, estando, ao contrário com renda familiar em situação semelhante àquela do genitor. Existência, ainda, de filhos menores, que delas dependem. Possibilidades não demonstradas. II. Situação, ainda, de rompimento dos laços afetivos. Genitor que deixou de prover as filhas na infância, as quais passaram por privações. Dever de solidariedade familiar que possui mão dupla, não lhe competindo agora demandar as filhas para receber o auxílio material que ele não ofereceu oportunamente. Precedente. III. Binômio necessidade-possibilidade não caracterizado. Revogação da obrigação alimentar fixada na origem que se impõe, prejudicado o apelo do autor, voltado à fixação dos alimentos em relação a uma das filhas e majoração do valor então devido pela outra. SENTENÇA REFORMADA. RECURSO DAS RÉS PROVIDO, PREJUDICADO O APELO DO AUTOR.


(TJSP; Apelação Cível 1014936-19.2021.8.26.0344; Relator (a): Donegá Morandini; Órgão Julgador: 3ª Câmara de Direito Privado; Foro de Marília - 1ª Vara de Família e Sucessões; Data do Julgamento: 27/10/2022; Data de Registro: 27/10/2022)


Por sua vez, nós pais, profissionais de psicologia e direito, sociedade em geral, precisamos orientar nossos filhos a valorizarem a importância dos vínculos. Cultivar o ódio e o rancor, e negar assistência ao(à) genitor(a) idoso(a) só porque ele(a) abandonou aquela pessoa, não importa sob qual circunstância, é nivelar-se ao mesmo patamar de desenvolvimento moral, é vingança e humilhação. A assistência agora oferecida pode ser a oportunidade de conscientizar aquele(a) genitor(a) de que todo vínculo importa. Conforme os ensinamentos de DOLTO (2003, p.72-73):


Qualquer que seja o ato cometido na realidade por um adulto que é responsável por um filho - seja ele seu pai ou sua mãe -, esse filho tem em si uma reserva preciosa de perdão, desde que lhe sejam dados meios para admirar seu genitor, não no erro deste, mas no ser que sofre dentro dele. Com muita frequência, inclusive, não há erro algum, sendo o ato uma resultante de circunstâncias, e não de uma vontade deliberada. De qualquer maneira, ninguém podem jamais ser identificado com o ato que praticou, quer se trate de um ato valoroso ou de um ato delinquente.


Com isso, quer a autora expor que a criança não deve ser ensinada a estigmatizar aquele(a) genitor(a) concentrando-se unicamente no abandono, mas sim, oferecer a ele(a) a oportunidade de aprendizado e redenção. Não sabemos como será o nosso futuro, e o que fizermos hoje se refletirá nos acontecimentos de amanhã, Se desprezarmos o(a) genitor(a) idoso(a) porque ele(a) nos abandonou na infância, correremos o risco de nossos filhos aprenderem esse exemplo e nos abandonarem. Se mostrarmos aos nossos filhos a importância do acolhimento, eles aprenderão a acolher.


Então, colega migalheiro, qual o seu posicionamento?


Era o que pretendia expor, disponibilizando-me ao debate saudável.


Espero que aprecie a leitura, e nos encontramos nos próximos artigos.


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BOWLBY, J. Formação e rompimento dos laços afetivos. São Paulo: Martins Fontes, 1979.


BRAGA, J.C.O.; FUKS, B.B. Indenização por abandono afetivo: a judicialização do afeto. Tempo Psicanalítico, Rio de Janeiro, v. 45, n.1, p. 303-321, 2013.


COLTRO, B.P.; GIACOMOZZI, A.I.; PEIXOTO, K.E.B.G. Avaliação psicológica em processos judiciais de abandono afetivo: conflitos familiares e as demandas do judiciário. Quaderns de Psicología. v. 19, n.3, p.287-298, 2017.


COPETTI, L.; BARBIERO, P.C. A autoalienação parental sob a perspectiva da doutrina da proteção integral e do dever-ser parental. In: WAQUIM, B.B.; SALZER, F.; COPETTI, L. Alienação parental. Aspectos multidisciplinares. Curitiba: Juruá, p.45-59, 2022.


DOLTO, F. Quando os pais se separam. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2023.


KAROW, A.B.S. Abandono afetivo. Valorização jurídica do afeto nas relações paterno-filiais. Curitiba: Juruá, 2012.


MOREIRA, L.E.; TONELI, M.J.F. Abandono afetivo: afeto e paternidade em instâncias jurídicas. Psicologia: Ciência e Profissão. Brasília: Conselho Federal de Psicologia, v.35, n. 4, p.1257-1274, 2015.


SILVA, D.M.P. Psicologia Jurídica e os aspectos processuais da perícia em Varas de Família. 5.ed. Curitiba: Juruá, v. 01, 2021.


SILVA, D.M.P. Psicologia Jurídica e os litígios em Varas de Família. 5.ed. Curitiba: Juruá, v. 02, 2021.


SILVA, D.M.P. Desafios da Pós-graduação lato sensu em Psicologia jurídica: estrutura, coordenação e pesquisa acadêmica. Curitiba: Juruá, 2019.


SOARES, L.C.E.C.; MOREIRA, L.E. Contornos da judicialização: reflexões sobre famílias recasadas e abandono afetivo. Psicologia em Estudo, v. 21, n.3, p.497-508, 2016.


Epa! Vimos que você copiou o texto. Sem problemas, desde que cite o link: https://www.migalhas.com.br/depeso/388940/ja-ouviu-falar-no-rompimento-da-solidariedade-familiar

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