Um pouco sobre o Direito Islâmico com olhos no Direito Privado

Para pesquisas de Direito Comparado Privado, é importante ter noções gerais sobre as principais famílias jurídicas. Trataremos hoje do direito islâmico para facilitar investigações de direito comparado, especialmente no âmbito do direito privado.


Na mesma linha do que sucede com direitos de origem religiosa (divina), a família do direito muçulmano é marcada por uma maior valorização do conteúdo das regras do que por um foco no procedimento.


Não que o procedimento seja desprezado.


O que sucede é que o direito muçulmano parte da lógica de que o direito já é dado pela divindade e, portanto, não precisa ser definido por meio de procedimentos.


O direito religioso dá forte atenção para a substância (o conteúdo normativo), e não para o procedimento. Há uma sacralidade no conteúdo normativo. O direito religioso é um direito mais substantivo e menos procedimental, ao contrário da concepção de direito dos países ocidentais (em que o mais importante é que as normas tenham sido fruto de um procedimento previamente estabelecido).


Nessa linha, o legislador por excelência, além de Deus, são os sábios religiosos, e não uma instituição legisladora que cria o direito por meio de procedimentos democráticos (como um Parlamento)1. Uma das consequências é que o direito religioso é mais difícil de mudar: não é fácil justificar a mudança de uma regra estabelecida por Deus.


Similar raciocínio vale para outros direitos religiosos, como o direito talmúdico, o direito hindu2 e o direito canônico3.


Potencialmente, o direito muçulmano não tem limitação geográfica. Não é o direito de um país. Ele pretende ser aplicável em todo lugar onde houver uma sociedade muçulmana. Daí decorre que cada Estado tem uma postura diante do direito islâmico.


Em Estados muçulmanos4, o direito islâmico pode ser adotado como oficial. Isso ocorre de modo diverso entre as nações que atualmente admitem a aplicação da Lei Sharia. Em alguns, o direito islâmico é uma entre outras fontes estatais. Em outros - de modo mais raro (como a Arábia Saudita5) -, todo o direito é islâmico: não haveria, em princípio, legislação, pois o direito islâmico é aplicado diretamente para todas as questões.


Nos Estados não muçulmanos, o Poder Público poderá ter de lidar com problemas decorrentes de um ordenamento jurídico paralelo vigente de fato, cultivado por minorias muçulmanas em seu território6.


Também pode haver, em contratos ou em arbitragem, a escolha do direito islâmico para disciplinar a relação jurídica.


De um modo geral, o direito islâmico possui maior incidência sobre o estatuto pessoal, ou seja, sobre regras que disciplinam pessoas, direito de família e direito das sucessões.


Em matéria contratual e em de direito das coisas7, apesar de se poder falar em aplicação do direito muçulmano, há uma tendência de ocidentalização jurídica, com incorporação de regras próprias das famílias do civil law ou do common law.


Tal justifica-se especialmente em razão do fato de o comércio internacional pressupor certo grau de harmonização jurídica. Além disso, o direito muçulmano preocupa-se, sobretudo, com a pessoa em si, ou seja, com o modo de viver de cada indivíduo8.


Além disso, em alguns países muçulmanos, há uma tendência de codificação do direito islâmico. Como vantagem desses trabalhos de codificação, a compreensão das regras jurídicas torna-se mais fácil. O aplicador do direito terá ganhos de sistematicidade. Reduzir-se-á o caos assistemático causado pela profusão de obras e textos (por vezes, confusos), escritos em idioma árabe (que nem sempre é o idioma do Estado).


Há, porém, resistência a esses trabalhos de codificação ou de consolidação, pois a racionalização própria desses trabalhos entra em conflito com os tradicionalistas muçulmanos por lhes subtrair o seu poder normativo.


Nesse contexto, houve trabalhos de codificação que permaneceram privados, apesar de seu reconhecido valor jurídico, a exemplo dos códigos de estatuto pessoal elaborados no Egito por Mohammed Pacha, na Tunísia por D. Santillana e na Argélia por M. Morand9. Na Arábia Saudita, em 2010, o governo anunciou a pretensão de codificar a Sharia. Em 2018, o Estado publicou um manual de princípios e preceitos legais10.


O direito muçulmano corresponde à aplicação da Sharia11 (Châr'ia, Charia ou Xaria12), a qual pode ser vista como o conjunto de leis islâmicas. Não se trata de um código ou de uma lei, e sim do conjunto de normas. Essencialmente, o direito muçulmano (a lei Sharia) consiste essencialmente na aplicação do Alcorão (Corão, al-Qur-ãn ou Qorân) e nas fontes jurídicas dele decorrentes.


Em suma, estas são as fontes do direito muçulmano: o Alcorão, a Suna (ou Sunna), o Idjmâ' (ou Ijmâ') e o Qiyâs13.


O Alcorão é o livro sagrado dos muçulmanos. Contém as revelações de Alá a Maomé, o último e o principal dos profetas para os muçulamanos. É a primeira e a mais importante fonte do direito muçulmano.


Como o Alcorão não dispõe sobre todas as questões sociais, ele é insuficiente enquanto fonte jurídico, razão por que o direito muçulmano socorre-se de outras fontes.


A Suna é a segunda fonte do direito muçulmano. Corresponde ao modo como Maomé vivia. Contém os atos, os comportamentos e os pensamentos de Maomé, ou seja, o h'adith.


Diante da insuficiência de o Alcorão e a Suna fornecerem respostas jurídicas a todas as relações sociais, o direito muçulmano vale-se de uma terceira fonte: o Idjmâ'. Trata-se de um acordo unânime entre os doutos sábios religiosos. Trata-se de um dogma acerca da infalibilidade das deliberações unânimes dos sábios integrantes da comunidade muçulmana. Não se trata de costume nem de uma busca da unamidade popular. Cuida-se, sim, de uma unanimidade apenas entre aqueles os jurisconsultos do islã (fuqahâ), os quais são considerados como os herdeiros dos profetas.


Nesse ponto, há, porém, divergências no meio jurídico muçulmano: há diferentes vias (madh'hab), as quais são também chamadas de "ritos" ou de escolas. Essas escolas são as responsáveis por formar a jurisprudência islâmica (fiqh).


Há quatro principais escolas (madh'hab, ritos ou correntes): (1) a escola Hanafi ou o hanafismo; (2) a escola chafeíta ou o chafeísmo (ou xafeísmo); (3) a escola malequita ou o maliquismo; (4) a escola hanbalita ou hanbali14. Os nomes dessas escolas vinculam-se a um jurista muçulmano que deu origem à linha interpretativa15.


Assim, quando um país adota a Lei Sharia (o direito muçulmano), é preciso indicar a escola (madh'hab) que será aplicada.


A escola Hanafi é a mais antiga e a mais difundida, especialmente por ter sido espalhada ao longo dos vastos territórios do Império Otomano, do Império Mongol e do Califado Abássida. É a que mais adeptos têm no mundo, da ala dos muçulmanos sunitas. É mais liberal do que as demais.


A escola malequita prepondera na África subsaariana e na África Ocidental. A escola chafeíta vige na Malásia, na Indonésia e na costa oriental da África. A escola hanbalita hospeda-se na Arábia.


A quarta fonte do direito muçulmano é o Qiyâs, que é fruto de um raciocínio por analogia. É uma fonte útil para oferecer respostas jurídicas a situações novas que não foram contempladas nas demais fontes. Como o jurista muçulmano parte da lógica de respeito à autoridade, não lhe é própria a ideia de criar novas regras, ao contrário do que se dá com o jurista do civil law ou do common law. O jurista muçulmano apenas extrai regras que estariam implícitas nas fontes do direito islâmico. O Qiyâs é resultado dessa lógica do jurista muçulmano em prestigiar a autoridade divina.


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1 É o que destaca Salem Nasser em didática palestra no âmbito da International Law Association em 2010 (Disponível aqui).


2 David, 2014, pp. 545-582.


3 Sobre o direito talmúdico (direito hebráico), ver: Campos Neto, Antonio Augusto Machado de. O Judaísmo. O direito talmúdico. In: Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, v. 103, jan./dez. 2008, pp. 27-67 (Disponível aqui); NASSER, Salem. Palestra no âmbito da International Law Association em 2010 (Disponível aqui).


4 ABC Internacional, 2021.


5 Embora haja quem sustente que o Irã se encaixaria nesse perfil, Salem Nasser dissente (NASSER, Salem. Palestra no âmbito da International Law Association em 2010 (Disponível aqui).


6 Sobre esse assunto, tivemos a oportunidade de trarar de um problema enfrentado por um tribunal inglês diante de um casamento islâmico (nikah) ocorrido dentro da Inglaterra. Na ocasião, o tribunal inglês considerou que o nikah era nulo por não observar a legislação britânica sobre casamento; todavia, apesar disso, foram reconhecidos efeitos patrimoniais em favor do casal (Oliveira, Carlos Eduardo Elias de. Casamento religioso no Brasil: rápido comparativo com experiência da Inglaterra com os casamentos islâmicos ("nikah"). Disponível aqui. Data da publicação: 2018).


7 A propósito, Richard A. Debs esmiuça o regime de direito de propriedade no Egito, sob a perspectiva do direito muçulmano (DEBS, Richard A. Islamic law and Civil Code: the law of property in Egypt. New York/USA: Columbia Univeristy Press, 2010).


8 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014, pp. 534-538; UNAM. Capítulo 3 - El Derecho de los Países Musulmanes. Disponível aqui. Acesso em 2 de abril de 2022, pp. 349-350.


9 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 536-537.


10 NASSER, Salem. Palestra no âmbito da International Law Association em 2010 (Disponível aqui).


11 "Etimologicamente, "charia" é uma palavra árabe que significa "avenida", "abertura" ou "caminho". O professor Wael Hallaq da Universidade Colúmbia explica que a charia "era tanto uma forma de viver e ver o mundo quanto um corpo de crenças" (Unesco, 2017).


12 LOURO, A. Tavares; COSTA, José Mário. Sharia. Publicado em 23 de julho 2004 (Disponível aqui. Acesso em 5 de abril de 2022).


13 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014, pp 524; UNAM. Capítulo 3 - El Derecho de los Países Musulmanes. Disponível aqui. Acesso em 2 de abril de 2022, pp. 349-350; GÓMEZ, Rebeca Vázquez. Aproximación al derecho islâmico y su regulación del velo. In: Ius Canonicum, XLVII, nº 94, 2007, pp. 591-615; ASCANIO, Lorenzo; CASTELLARI, Massimiliano. El jurista colombiano y el derecho islámico y de los países musulmanes. Nuevas fronteras de la comparación jurídica. In: Revista Misió Jurídica, vol. 4, n. 4, Diciembre de 2011, pp. 85-105; LAGE, Leonardo Almeida. Transconstitucionalismo, direito islâmico e liberdade religiosa. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília. Orientador: Professor Dr. Marcelo da Costa Pinto Neves. Data: agosto de 2016 (Disponível aqui. Acesso em 2 de abril de 2022); CARMONA GONZÁLEZ, Alfonso. Ley islâmica y Derecho positivo. In: Anales de Historia Contemporanea, nº 13, 1997, pp. 25-32.


14 Sobre o direito islâmico, ver: DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014; LIPOVETSKY SILVA, Nathália. Breve estudo sobre o sistema jurídico islâmico. In: Revistado CAAP, Belo Horizonte, jul-dez-2009, pp. 49-73 (Disponível aqui).


15 Por exemplo, a escola Hanafi reporta-se ao jurista iraquiano Abu Hanifa Na-nu'man Ibn Thabit, do século VII. A escola Hanbali refere-se ao jurista Amade Ibne Maomé Ibne Hambal, do século IX.


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