Laudo brasileiro impede retorno aos EUA de criança sequestrada pela mãe brasileira

Por maioria de votos, a 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça entendeu ser possível que um laudo feito por peritos brasileiros sem considerar informações produzidas no exterior justifique a permanência no país de uma criança nascida nos Estados Unidos e sequestrada pela mãe.

Análise da exceção da regra de devolução do menor sequestrado seja feita de forma global

O caso representa uma interpretação extensiva conferida pela Justiça Brasileira à norma do artigo 13 da Convenção de Haia sobre sequestro internacional de crianças.

A ação trata de menor de idade nascido em setembro de 2009 nos Estados Unidos. Em julho de 2013, a mãe, que é brasileira, veio com ele ao Brasil para o aniversário de um tio com autorização do pai, de quem havia se divorciado e com quem dividia a guarda. Sem avisá-lo, porém, ela decidiu não mais voltar.

Apenas três meses depois, em outubro de 2013, o pai ajuizou ação para pedir a devolução do filho sequestrado. De acordo com o artigo 12 da Convenção de Haia, como o processo foi proposto menos de um ano depois da transferência ilícita do menor, a autoridade brasileira deveria ordenar o seu retorno imediato.

O artigo 13 da norma, no entanto, traz exceções para a devolução. Entre elas, na alínea "b", a hipótese de existir risco grave de a criança "no seu retorno, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, ficar numa situação intolerável".

A parte final do artigo 13 determina que, ao apreciar as exceções, a autoridade responsável deve levar em consideração informações relativas à situação social da criança fornecidas pela autoridade central ou por qualquer outra autoridade competente do Estado de residência habitual da criança.

Nos Estados Unidos, a ação proposta pelo pai colacionou documentos que mostram que ele tinha plena condição de exercer a paternidade com o devido zelo. Esse material inclui análise de assistentes sociais, perícia psicológica e testemunho, por exemplo, da babá da criança.

No Brasil, por sua vez, um laudo de peritos da Justiça Federal concluiu que a devolução do menor não traria meras inconveniências, mas grave risco ao desenvolvimento psico-emocional por causa da conturbada dinâmica familiar, devido aos conflitos entre os pais, com acusações de violência doméstica e alcoolismo.

O juízo de primeiro grau fundamentou a sentença com base exclusivamente no laudo brasileiro, e assim votou por manter a criança no Brasil. O Tribunal Regional Federal da 1ª Região confirmou essa conclusão. E o STJ também a manteve.

Para a ministra Regina Helena Costa, decisão fere diretamente Convenção de Haia
STJ

E o artigo 13, alínea "b"?
Em voto-vista divergente apresentado nesta terça-feira (18/10), a ministra Regina Helena Costa apontou que a conclusão das instâncias ordinárias fere diretamente a Convenção de Haia. Ao apreciar a existência do grave risco, o Judiciário brasileiro ignorou as informações fornecidas pelas autoridades americanas.

"Em que pese a imputação de enfermidade psiquiátrica do pai pela mãe, há nos autos elementos em sentido oposto, afirmando a plena condição de ele exercer guarda da criança com zelo. O acórdão, ao se basear no laudo pericial feito por determinação do juízo brasileiro, foi omisso quanto a esses documentos", destacou.

Para ela, o caso deveria retornar ao TRF-1 para reanálise da apelação, com respeito ao texto do artigo 13 da Convenção de Haia.

Venceu o voto do relator, ministro Benedito Gonçalves, para quem está bem configurada a exceção que desobriga a mãe a devolver a criança para o local de onde a sequestrou. "A fundamentação adotada no tribunal de origem para manter menor no Brasil está lastreada em minucioso laudo psicológico", disse ele.

Os votos que o acompanharam destacaram a necessidade de prestigiar a análise dos fatos e provas feita pelas instâncias ordinárias.

O ministro Gurgel de Faria ressaltou que a criança foi sequestrada com três anos de idade e hoje já se encontra com 13. "Eu fico a indagar: será que depois de tanto tempo — trata-se de um adolescente de 13 anos, que está há nove anos no Brasil — isso seria saudável para esse menor?", questionou.

"O ponto decisivo para que se dê mais efetividade à Convenção de Haia é a brevidade da tramitação dos processos. Temos aí, em média, anos e anos em que a situação do menor se altera radicalmente. Trava-se de criança, hoje é um adolescente com perspectivas completamente diferentes", concordou o desembargador convocado Manoel Erhardt.

Relator, ministro Benedito Gonçalves referendou interpretação do TRF-1 no caso
Gilmar Ferreira

O risco de reciprocidade
A conclusão da 1ª Turma se afasta de como a 2ª Turma do STJ tem se posicionado em casos de sequestro internacional de menores. Em acórdão de 2020, o colegiado reforçou que as normas devem ser seguidas à risca e interpretadas restritivamente sob pena de reciprocidade internacional.

Essa posição já foi destacada pela ministra Regina Helena Costa e sugerida à 1ª Turma em mais de uma oportunidade. Em um dos casos, em março, ela destacou que "o Brasil não figura bem nesse cenário, porque não tem cumprido a convenção da qual é signatário".

Isso porque decisões por vezes afastam as regras por uma interpretação extensiva das exceções para o retorno imediato do menor sequestrado. "Senão vai sempre valer a pena cometer o ilícito", criticou ela na ocasião.

"É tudo demorado. Pode sequestrar a criança que vai dar certo: o Brasil não cumpre a convenção e o Judiciário demora para resolver. Mais fácil seria o Brasil deixar de ser signatário da Convenção de Haia. Se entendermos que morosidade judicial é justificativa, isso nunca vai ser cumprido", acrescentou.

O descrédito brasileiro no tema tanto é uma preocupação que o Conselho Nacional de Justiça editou a recente Resolução 449/2022 com o objetivo de acelerar os processos sobre sequestro internacional de menores, medida aprovada por autoridades brasileiras.

REsp 1.842.083

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