Responsabilidade civil dos pais pelos atos praticados por seus filhos emancipados no ambiente virtual. Raphael Carneiro Arnaud Neto
A popularização dos computadores pessoais inundou nossa rotina de novos hábitos que, em geral, encurtaram distâncias entre ausentes, e, como tudo tem um preço, criaram "ausências" entre presentes.
O avanço alterou conceitos que pareciam imutáveis. À guisa
de exemplo, o termo "companhia", transcrito no inciso I, do art. 932,
do CC/2002, hoje ganha novo significado. Se aos pais sempre foi imputado os
deveres de vigilância, guarda e educação dos filhos,1 impedindo que algo de mau
os aconteça e, através desse complexo processo que chamamos educação, que sejam
eles, os filhos, os promotores de más condutas, não há como negar que
atualmente essa "guarda" precisa ser exercida fora do alcance dos
seus olhos.
A rua da geração passada, na qual brincávamos sob olhares
atentos, ganhou a dimensão do mundo inteiro, trazendo a reboque a majoração dos
riscos aos quais nossos filhos estão expostos e podem expor os outros.
Diante de tudo isso, velhos atos nocivos que ficavam
restritos aos presentes, como a prática de bullying, agora podem ser
eternizados pela rede - através do cyberbullying - transformando um anônimo em
celebridade mundial, no pior sentido que a essa posição de destaque possa
carregar.
Como é sabido, em matéria de responsabilidade dos pais pelos
atos praticados por seus filhos menores, migramos do modelo da responsabilidade
civil subjetiva, para o da objetiva.
Dessa maneira, os pais respondem independentemente de culpa
pelos danos causados por seus filhos, seja em ambiente físico ou virtual, mas o
mesmo pode ser garantido quando estes filhos já estejam emancipados?
Estes breves escritos têm o intuito de enfrentar a matéria,
cotejando os atuais limites da autoridade parental, o exercício das liberdades
individuais pelas crianças e adolescentes e a responsabilidade civil objetiva
imposta aos genitores.
Com o receio de que seus filhos se envolvam em ilícitos
virtuais, genitores têm se utilizado de ferramentas para sua constante vigilância,
e.g o aplicativo Life 360, que garante acesso em tempo real à localização dos
usuários, ou, com acesso ainda mais amplo, o Teen Safe, que funciona como
espião, garantindo aos pais acesso às conversas, postagens e até mesmo fotos e
vídeos gerados pela câmera do celular do "protegido" ou recebidos de
outros usuários, comprometendo, desta forma, não apenas a privacidade e a
intimidade dos filhos mas, de igual modo, de terceiros que participaram dos
diálogos.
Embora o controle parental na internet tenha permissão legal
expressa no art. 29 do Marco Civil da Internet, como forma de garantir o dever
de vigilância pelos pais, tal diploma disciplina que esse comando deve se dar
em consonância com o ECA, que reafirma os direitos de personalidade de crianças
e adolescentes destacando o exercício da autonomia, donde se extrai a
autorrealização/autodeterminação informativa como princípio a ser respeitado.2
O desafio dos genitores reside, portanto, no alcance da
fórmula de ouro que assegure uma "fiscalização" saudável do trânsito
dos filhos pela internet sem comprometer as garantias fundamentais destes e de
terceiros com os quais mantenham contato.
Não se quer aqui rechaçar, em absoluto, a utilização dos
aplicativos mencionados (Teen Safe, Life 360 ou outros), mas, como dito, chamar
a atenção para a importância da compreensão de que tal conduta deve se dar na
exata proporção da necessidade, isto é, da imaturidade dos filhos para lidar
com o ambiente cibernético, de tal modo que quanto mais evoluídos estes se
mostrarem, menor deve ser a interferência dos genitores.3
Como referimos, o art. 932, I, disciplina: "são também
responsáveis pela reparação civil os pais, pelos filhos menores que estiverem
sob sua autoridade e em sua companhia".
Num país de "famílias mosaico", é forçoso
perguntar. I) a "autoridade" mencionada se confunde com a guarda? II)
Se o menor houver causado o dano na companhia do genitor guardião, aquele que
não detém a guarda será igualmente responsável, ou somente responderá
subsidiariamente, ou mesmo, não responderá? III) Considerando o termo "e
em sua companhia", se o menor houver praticado o ato na ausência de ambos
os genitores, não seriam estes responsabilizados? Afinal, é ou não é
independente de perquirição de culpa a responsabilização civil dos pais pelos
atos praticados por seus filhos menores, inclusive no âmbito virtual?
Antes de qualquer outra consideração referente ao
"Direito dos Danos", é mister aclararmos, em sede de Famílias, que os
institutos da "guarda" e da "autoridade parental" não se
confundem. É isso que se extrai da leitura conjunta dos artigos 1.632 e 1.634
do CC/2002. Portanto, mesmo o genitor que não detiver a guarda de seus filhos
continua em pleno exercício de sua autoridade parental, não havendo que se
falar em causa de exclusão de responsabilidade por essa razão.
É necessário ainda mais cuidado com a expressão "sob
sua companhia" também constante do mencionado 932, I. Como mencionado, ela
pode nos conduzir à falsa impressão de que o dispositivo exige a presença
física dos pais no momento da conduta geradora do dano para que se fale em
responsabilidade civil objetiva. Ora, se assim fosse, o que teríamos seria
persecução da culpa in vigilando e não uma responsabilização independente de
sua comprovação.4
O enunciado 450, da V Jornada de Direito Civil, sugere a
solidariedade passiva de ambos os genitores na responsabilidade, mas, preserva
a possibilidade de regresso caso haja culpa exclusiva de um dos genitores em
não exercer o dever de cuidado a contento.
Ou seja, a culpa seria irrelevante para o ressarcimento do
lesado, podendo este exigir a totalidade da indenização a qualquer dos
genitores, mas, essa culpa continuaria a ter relevância na relação interna da
solidariedade passiva, instituída por lei, permitindo ao não culpado se
ressarcir daquilo que despendeu.
Soa-nos destoante da realidade, entretanto, imaginar a culpa
exclusiva de um dos pais pela prática da maioria dos atos potencialmente
lesivos praticados por seus filhos. Mal comparando, esse pensamento segue a
mesma ratio daquele que acredita ser possível identificar numa relação
matrimonial que perdurou por décadas um único cônjuge responsável pelo
desenlace.
Não nos parece que a culpa dos pais pelo dano causado por
seu filho possa ser extraída exclusivamente de sua desatenção no momento da
conduta danosa (dever de cuidado), mas, que a má ética do menor tenha derivado
de desatenção ao dever de educação que a ambos os pais é imposto e, dessa
maneira, concorreriam em igualdade na responsabilidade, devendo o ressarcimento
alcançar, no máximo, a sua quota como codevedor na relação interna da
solidariedade passiva, nos moldes da primeira parte do artigo 283 do CC/02.
Impende reconhecermos, contudo, não haver uma equação
garantidora de que uma boa educação formará jovens probos, mas, não é isso que
está em causa, já que a responsabilidade pelas condutas será, como tantas vezes
já dito, objetiva, e os pais suportarão as margens de álea resultante da
criação do filho que trouxeram ao mundo.
Marcamos posição, portanto, pela responsabilização solidária
de ambos os pais, independentemente de ser o guardião ou ter presenciado a
conduta geradora do dano, de forma exclusiva. Entendemos que a norma
possibilita, quando muito, o direito de regresso daquele que suportou todo o
prejuízo para se ressarcir em 50% do que pagou, enquanto codevedor, havendo
solvência do outro genitor.
No parágrafo único do artigo 5º, o CC/2002 traz as hipóteses
pelas quais cessará a incapacidade civil dos menores.
Os referidos incisos prenunciam três formas de emancipação,
a emancipação legal, incisos II a V; a emancipação voluntária, primeira parte
do inciso I; e a emancipação judicial, segunda parte do inciso I.
Como o nome sugere, na emancipação legal a incapacidade
cessará em virtude de lei, observadas as situações previstas nos incisos
citados acima. Na emancipação judicial, o mesmo fenômeno ocorre, desde que o
menor conte com ao menos 16 anos e, por sentença, o juiz, o emancipe, após a
oitiva do tutor.
Na emancipação voluntária, contudo, é a própria ação
volitiva dos pais5, autônoma de homologação judicial, a impulsionadora da
cessação da incapacidade. Diante disso, não é difícil imaginar que esses mesmos
pais pudessem enxergar como solução para as constantes condenações de reparação
civil resultante dos danos causados por seu rebento, a sua emancipação.
Dessa maneira, poderiam pensar que blindariam seu
patrimônio, ao tornar o filho infrator plenamente capaz para os atos da vida
civil, e que, a partir dali ele, o filho, responderia com seus próprios bens
pelos danos eventualmente praticados. O próximo passo seria óbvio: não conferir
patrimônio a esse filho que ainda é economicamente dependente. Afinal, quem não
tem patrimônio, via de regra não indeniza, dessa maneira os lesados não seriam
ressarcidos. Hipótese que num olhar apressado parece ter sido contemplada pelo
artigo 928 do Código Civil.
Seria o plano perfeito, mas o Direito não é dado a esse tipo
de chicana.
Aclare-se que a responsabilização do menor através de
patrimônio próprio prevista no artigo 928, é subsidiária, e somente terá lugar
nas hipóteses nas quais os pais não disponham de bens suficientes para a
integral reparação do dano suportado pelo lesado6 ou, quando estes genitores
não estiverem obrigados a fazê-lo. Entretanto, já é entendimento pacífico de
nossa Suprema Corte (RTJ 62/108, RT 494/92) que a emancipação somente
desobrigará os pais pelos danos praticados pelos filhos quando ocorrida na
forma de emancipação legal7, não servindo esse instituto como remédio para
afastar precocemente a responsabilidade dos genitores que voluntariamente o
buscaram.8
A parentalidade, ainda que exercida na sociedade de
informação, continua a ser fascinante, mas, como toda grande recompensa, traz
grande encargos. A objetivação da responsabilidade civil visando garantir a
reparabilidade dos danos causados pelo menor pôs sobre as cabeças dos
progenitores uma espécie de espada de Dâmocles, quem se atreve a desfrutar dos
prazeres desse banquete dionisíaco deve estar ciente dos riscos derivados de
sua posição.
__________
1 Vd., arts. 1.630 c/c 1.634 do Código Civil.
2 Vd. art. 17 do E.C.A
3 Para melhor compreensão do paradoxo apresentado,
recomenda-se o episódio "Arkangel", da série Black Mirror disponível
na plataforma NETFLIX.
4 Enunciado 590 da VII Jornada de Direito Civil - "A
responsabilidade civil dos pais pelos atos dos filhosmenores, prevista no art.
932, inc. I, do Código Civil, não obstante objetiva, pressupõe a demonstração
de que a conduta imputada ao menor, caso o fosse a um agente imputável, seria
hábil para a sua responsabilização." Essa "companhia", portanto,
não se traduz pela exigência da presença física dos pais no momento da prática
do ato lesivo, senda mero encadeamento dedutivo de uma asserção precedente, a
"autoridade parental" e os deveres que dela derivam.
5 Que devem levar em conta o melhor interesse da criança e
do adolescente para decidirem sobre o ato.
6 Nesse sentido, REsp 1.436.401/MG. Rel: Min. Luis Felipe
Salomão, Publicado no DJE em 16/03/2017.
7 Já havendo quem defenda, em privilégio da
reparação integral, até mesmo a responsabilidade dos pais pelos atos
lesivos praticados pelos filhos maiores. Vd. FARIAS. Cristiano Chaves de; BRAGA
NETTO, Felipe; ROSENVALD, Nelson. Novo Tratado de Responsabilidade Civil.São
Paulo: Saraiva, 2019, p. 136.
8 Nessa mesma linha o Enunciado 41 da I Jornada de Direito
Civil, assim redigido: "A única hipótese em que poderá haver
responsabilidade solidária do menor de 18 anos com seus pais é ter sido
emancipado nos termos do art. 5º, parágrafo único, inc. I, do novo Código
Civil."
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