Coisa julgada sobre a decisão interlocutória de mérito na execução fiscal, por Fernanda Donnabella Camano
Continuemos a explorar o "macrotema" da coisa julgada
em matéria tributária em suas diversas nuances, não sem antes advertir que o
fio que nos conduz é a ideia de instrumentalidade ("o processo não é um fim em si mesmo"),
uma postura de evidentes contornos pragmáticos.
No correr dos
tempos, a execução fiscal passou a ser vista como um processo sincrético, como
bem definido em artigo de Luis Claudio Cantanhêde, publicado nesta coluna [1]. Dito de forma simplificada, se no passado o
conflito no bojo do processo executivo girava tão somente em torno das medidas
expropriatórias destinadas à realização do crédito tributário, a prática nos
mostra que, hoje, discussões as mais variadas migraram para esse âmbito.
Cite-se, como
exemplo, as defesas suscitadas pelo contribuinte em ataque à exigibilidade do
crédito tributário ou as relativas à corresponsabilização de terceiros, além
daquelas envolvendo a oferta de garantias, essa última a hipótese concreta a
ser trabalhada como objeto central deste artigo.
Tal cenário
nos convoca para refletir a respeito da seguinte pergunta: as decisões
derivadas do caldeirão de temas em que se transformou a execução fiscal
configuram "decisões interlocutórias de mérito", passíveis de sofrer
a incidência de coisa julgada?
O CPC dispôs
em seu artigo 502 que a coisa julgada material torna imutável e indiscutível
a decisão de mérito —
excluindo o termo "sentença" como constava no CPC/1973 [2]. Nas palavras de Paulo Cesar Conrado [3], deu-se ênfase ao conteúdo decisório desprezando-se o veículo
por meio do qual tal conteúdo é produzido (prestígio à substância do ato
decisório).
Ao artigo 502
soma-se o conteúdo do artigo 356, II c/c artigo 355, I, dispositivos que
prescrevem que o mérito pode ser parcialmente resolvido quando não houver
necessidade da produção de outras provas [4].
A primeira
questão que se coloca é: qual o conteúdo semântico da expressão "decisão
de mérito" contida no artigo 356, II do CPC quando se está diante de
execução fiscal? Em outros termos: seria possível admitir que
"mérito", em tal categoria, significa satisfação do crédito
tributário (via expropriação do patrimônio do devedor), de modo que as decisões
interlocutórias envolvendo a oferta de garantias, porque destinadas a assegurar
o crédito tributário inadimplido, estariam compreendidas na acepção semântica
do referido artigo 502?
Esse é nosso
ponto focal.
Tomemos como
exemplo, para clarear a cena, decisão que rejeita a oferta do devedor de
assegurar o crédito tributário via apólice de seguro, fazendo-o com fundamento
na necessidade de obediência à ordem legal prevista no artigo 11 da LEF e sem
qualquer referência aos dados concretos do caso [5].
Esgotados os
recursos, se a tomarmos como "decisão interlocutória do mérito
executivo", o efeito prático advindo do trânsito em julgado será, num
primeiro olhar, bastante "forte": tal decisão vincularia contribuinte
e Fisco-credor em relação a
todos os demais processos em que o primeiro pretendesse
apresentar garantia fora da ordem legal de nomeação.
Assim seria em
razão do que dispõem o § 1º, I a III, e o § 2º, ambos do artigo 503 do CPC,
preceitos que prescrevem a formação da coisa julgada sobre questão
prejudicial [6]. Ou seja, se a decisão de rejeição da apólice de
seguro, porque configuradora do "mérito" executivo, tornou-se
definitiva (trânsito em julgado), apresentando na sua fundamentação argumentos
abstratos no sentido de que a ordem legal é inviolável, tal porção do decisum é questão
prejudicial sujeita a trânsito e, assim, "transcenderia" para as
demais execuções fiscais propostas em face daquele contribuinte.
Pragmaticamente, isso importaria, já sinalizamos, na impossibilidade
de apresentação, por aquele devedor, de qualquer bem/direito fora da ordem
legal para assegurar outros créditos tributários exigidos em execuções fiscais
diversas — uma solução que, a despeito da abstrata submissão da decisão sobre a
oferta de garantia ao conceito de decisão interlocutória de mérito no bojo da
execução fiscal, faz-nos pensar sobre a imperatividade do isolamento dessas
interlocutórias "periféricas"
daquelas que se relacionam diretamente com a ideia de exigibilidade, objetiva
e/ou subjetivamente falando.
Com efeito, não nos parece que o CPC, ao atrair a figura da
coisa julgada para o campo das interlocutórias de mérito (inclusive
determinando sua incidência sobre a questão prejudicial), tenha pretendido
tornar a realidade dos executivos engessadas — como no exemplo apresentado.
Se possível for afirmarmos que a locução "decisão de
mérito" contida no artigo 502 do CPC é gênero, haveremos de ter no âmbito
da execução fiscal o "mérito periférico" (ou "impróprio") e
o "mérito propriamente dito" como duas espécies, dentre as quais a
matéria relacionada às garantias enquadrar-se-ia na primeira categoria
("periférica"), porque descolada da questão da exigibilidade do
crédito tributário.
Assim procedendo, concluiríamos que a interlocutória de mérito
atinente à etapa procedimental de oferta de garantia faz coisa julgada, mas com
a geração de estabilidade "fraca", assim entendida a que se atém aos
limites do processo em que é decidida — intraprocessual, portanto (a
contraposta "estabilidade forte" relacionar-se-ia às decisões
interlocutórias de "mérito propriamente dito", assim consideradas as
que abordam a exigibilidade do crédito tributário tanto em sua porção objetiva,
como subjetiva, sendo definível como "forte" justamente porque
espraiar-se-ia sobre outras relações processuais que tomassem a mesma realidade
fática como foco).
Revendo o exemplo trazido, teríamos, ao cabo de tudo, que, ao
transitar em julgado a decisão prolatada na execução fiscal a respeito da
recusa da oferta da apólice de seguro, sob o fundamento da desobediência à
ordem legal de nomeação, o decisum não
apresentaria o efeito de se impor para além daquele caso concreto (relembremos
que, no exemplo cogitado, a decisão foi abstrata, portanto, meramente
normativa).
[1] https://www.conjur.com.br/2021-set-05/processo-tributario-peculiar-sincretismo-processual-cobranca-credito-tributario.
[2] Art.
502. Denomina-se coisa julgada material a autoridade que torna imutável e
indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso.
[3] Artigo
"Redefinição do conceito de litispendência a partir da 'nova' coisa
julgada" (art. 502 do CPC/2015: impacto no confronto de execução fiscal e
medidas antiexacionais (embargos, exceção de pré-executividade e
anulatória). In Processo
Tributário Analítico. Vol. IV. São Paulo: Noeses, 2019, p. 4.
[4] Art.
356. O juiz decidirá parcialmente o mérito quando um ou mais dos pedidos
formulados ou parcela deles:
II - estiver em condições de imediato julgamento, nos termos do
art. 355.
Art. 355. O juiz julgará antecipadamente o pedido, proferindo
sentença com resolução de mérito, quando:
I - não houver necessidade de produção de outras provas;
[5] Art. 11
- A penhora ou arresto de bens obedecerá à seguinte ordem:
I - dinheiro;
II - título da dívida pública, bem como título de crédito, que
tenham cotação em bolsa;
III - pedras e metais preciosos;
IV - imóveis;
V - navios e aeronaves;
VI - veículos;
VII - móveis ou semoventes; e
VIII - direitos e ações.
[6] Art.
503. A decisão que julgar total ou parcialmente o mérito tem força de lei nos
limites da questão principal expressamente decidida.
§ 1º O disposto no caput aplica-se à resolução de questão
prejudicial, decidida expressa e incidentemente no processo, se:
I - dessa resolução depender o julgamento do mérito;
II - a seu respeito tiver havido contraditório prévio e efetivo,
não se aplicando no caso de revelia;
III - o juízo tiver competência em razão da matéria e da pessoa
para resolvê-la como questão principal.
§ 2º A hipótese do § 1º não se aplica se no processo houver
restrições probatórias ou limitações à cognição que impeçam o aprofundamento da
análise da questão prejudicial.
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