A soberania estatal tem como uma de suas importantes vertentes a função judicial cuja precípua finalidade é a de conferir efetividade ao princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição (artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal).
Na mesma linha principiológica, que marca as denominadas "Normas Fundamentais do Processo Civil", constantes do preâmbulo do Código de Processo Civil em vigor, inspirando-se, por certo, na dogmática do Direito Privado, o legislador estabelece, no artigo 5º, uma cláusula geral de boa-fé processual, que deverá nortear a conduta, durante as sucessivas etapas do procedimento, de todos os protagonistas do processo: o juiz, as partes, o representante do Ministério Público, o defensor público e também os auxiliares da justiça (serventuários, peritos, intérpretes, etc.). O fundamento constitucional da boa-fé advém da cooperação ativa dos litigantes, especialmente no contraditório, que devem participar da construção da decisão, colaborando, pois, com a prestação jurisdicional. Não há se falar, com certeza, em processo justo e équo se as partes atuam de forma abusiva, conspirando contra as garantias constitucionais do devido processo legal.
Note-se que a boa-fé processual se desdobra nos deveres de veracidade e de lealdade na realização dos atos processuais, contemplados nos artigos 77 e 142 do Código de Processo Civil. O descumprimento destes deveres caracteriza ato atentatório à dignidade da justiça e litigância de má-fé, cujas sanções estão detalhadamente previstas no diploma processual.
Acrescente-se, por outro lado, que o Código de Processo Civil também impõe comportamento ético e leal aos órgãos jurisdicionais, coibindo-os, por exemplo, de proferir "decisão-surpresa" (artigo 9º). Exemplo marcante da lealdade do órgão jurisdicional em relação aos litigantes vem expresso na preciosa regra do parágrafo único do artigo 932 do diploma processual: "Antes de considerar inadmissível o recurso, o relator concederá o prazo de 5 (cinco) dias ao recorrente para que seja sanado o vício ou complementada a documentação exigível".
Bem é de ver, por outro lado, que os pronunciamentos judiciais se revestem da presunção de legalidade. É dizer: as decisões, em princípio, devem se conformar com as normas jurídicas. Enquanto permanecerem hígidos, os atos decisórios são eficazes e traduzem confiança aos seus destinatários. Tanto é verdade, que a própria legislação processual autoriza o cumprimento de decisões mesmo antes de seu respectivo trânsito em julgado.
Sob diferente perspectiva, a segurança jurídica, como relevante vetor social, decorre da certeza do direito, materializada nos julgamentos de nossos tribunais.
Confiança e segurança constituem destarte o binômio para um pacífico convívio em sociedade.
Saliente-se outrossim que no âmbito do processo de cunho cooperativo, entre os deveres do juiz, destaca-se o de "auxílio", no sentido de exortar ou facilitar às partes a superação de eventuais dificuldades ou obstáculos que impeçam o exercício de direitos ou faculdades (por exemplo: ao julgar os embargos de declaração, atender, tanto quanto possível, ao escopo da pretensão da parte, explicitando o fundamento que restou omisso, para que este reste efetivamente prequestionado na complementação do acórdão).
Ademais, nessa linha de raciocínio, não é incomum que da decisão colegiada conste um obiter dictum, ou seja, uma recomendação a latere que, embora não sendo parte do núcleo do julgamento, presta-se a esclarecer tanto o juiz de primeiro grau quanto as partes envolvidas na demanda.
A esse propósito, para evitar a oposição de embargos de declaração, que tem causado confessadamente enorme repugnância aos integrantes dos tribunais, a prática revela que algumas turmas julgadoras têm "ameaçado" os litigantes com potencial aplicação de sanção processual, caso sejam opostos embargos de declaração. E, assim, iludindo as partes — que, de resto, depositam confiança no Judiciário —, fazem constar do acórdão capciosa exortação, mais ou menos nos seguintes termos:
"... Por fim, para facultar eventual acesso às vias especial e extraordinária, considero prequestionada toda a matéria infraconstitucional e constitucional, observando a sedimentada orientação do Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que, na hipótese de prequestionamento, é desnecessária a citação numérica dos dispositivos legais, bastando que a questão colocada tenha sido decidida... Desse modo, na hipótese de oposição de aclaratórios, incidirá o disposto no artigo 1.026 do CPC, com a imposição de multa".
O advogado, muitas vezes incauto pela inexperiência, por um lado, temeroso da aplicação da referida sanção processual, e, de outro, fiando-se piamente na afirmação provinda de quem detém o poder de dizer o direito, deixa de provocar o tribunal para, em atendimento ao enunciado das Súmulas 211/STJ e 356/STF, buscar o prequestionamento da tese que restou omissa no acórdão.
A despeito da inequívoca denegação de justiça, o passo seguinte da parte que deseja se insurgir contra o acórdão é então o da interposição de recurso especial e/ou extraordinário.
Pois bem, qual não é a decepção (para dizer o mínimo) do cliente e, em particular, do causídico, ao se depararem com o seguinte pronunciamento do Supremo ou do Superior Tribunal de Justiça, que nega seguimento ao recurso, forte no argumento de que:
Do cotejo de ambas as decisões, isto é, a do tribunal de origem e a da corte superior, fica patenteada a impressão de que aquela não ostenta valor algum..., não vale o preço do papel em que é lançada...
Sim, porque, primeiro, tal certificação no acórdão recorrido não tem o condão de suprir o efetivo prequestionamento; segundo, o tribunal superior, preferindo pautar-se pelo rigor técnico, não demonstra qualquer espírito cooperativo com a parte recorrente. Faz ouvido de mercador à "promessa" contida no acórdão impugnado, deixando de cumprir o mandamento do artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal, visto que não tem a mínima preocupação em justificar o motivo pelo qual a tese exposta nas razões recursais não foi prequestionada de forma satisfatória.
Entendo, contudo, com mais de 40 anos de efetivo exercício da advocacia, que, em prestígio à segurança jurídica, as coisas não podem ser assim... A credibilidade que as decisões infundem aos cidadãos não pode ser desmoralizada no próprio seio do Judiciário, pela famigerada e muito mal vista "jurisprudência defensiva"!
É por esta razão que o diálogo dos pronunciamentos judiciais deve ser regido por um grau de respeito, integridade e coerência, a evitar situações como estas, que, a um só tempo, acarretam notório desgaste institucional e, muito pior, produzem considerável prejuízo ao direito dos litigantes!
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