Ainda sobre a liberdade do tribunal arbitral e o princípio da adstrição, por José Rogério Cruz e Tucci

 Retorno ao tema referente à liberdade de decisão do árbitro, salientando que, entre os deveres deste, insere-se aquele de conduzir os atos procedimentais com observância das garantias do due process of law.

Assim, mantendo independência e imparcialidade, o árbitro deve agir com diligência, preservando sempre a confidencialidade de que se reveste o processo arbitral.

A teor do artigo 18 da Lei de Arbitragem, o árbitro é juiz de fato e de direito, tendo ampla liberdade para formar a sua convicção, podendo valer-se das máximas de experiência, das presunções, mas jamais de questões que não foram expressamente deduzidas pelas partes litigantes.

Nesse particular, é deveras esclarecedora a importante obra de Friedrich Stein, "El conocimiento privado del juez", na tradução espanhola de 1973 (Universidad de Navarra, Pamplona).

Tal liberdade, contudo, desponta limitada à luz dos artigos 26, inciso III, 32, incisos III e IV, e 33, parágrafo 4º, da Lei de Arbitragem e 141 e 492 do Código de Processo Civil, pelo denominado "princípio da congruência", no sentido de que a sentença deve guardar estrita simetria com a postulação dos litigantes, desenhada na ata de missão.

É verdade que o processo arbitral é caracterizado por certa flexibilidade formal, inclusive no que toca à construção do objeto litigioso. Pode-se dizer que a pretensão das partes vai se formando até se estabilizar definitivamente no momento em que, em regra, encerra-se a fase preambular, com a assinatura do termo de arbitragem, ou, até mesmo, em caráter excepcional, como, por exemplo, autoriza o artigo 23 (4) do Regulamento da CCI, em fase posterior, quando apresentadas novas demandas pelas partes.

Seja como for, estabilizado o mérito da arbitragem, toda prova a ser produzida cingir-se-á aos fatos delineados pelas partes e consolidados no termo de arbitragem ou na ata de missão. Note-se que, em nosso sistema jurídico, são arbitráveis apenas direitos disponíveis, circunstância que impõe aos litigantes a delimitação dos contornos da lide e do onus probandi.

Adstrição é a chave para o diagnóstico da higidez da sentença arbitral. Essa deve enfrentar as causas petendi e excipiendi na motivação e o pedido ou pedidos no respectivo dispositivo.

Por força do princípio da inafastabilidade da jurisdição (artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal), sendo o árbitro investido de poderes em tudo equiparados ao juiz togado (artigo 18 da Lei de Arbitragem), tem ele o dever funcional de proferir sentença abrangente de todas as questões suscitadas e de todos os pleitos formulados pelas partes.

Assim, entre os vícios que maculam a sentença arbitral, analogamente ao pronunciamento exarado pelo juiz estatal, encontra-se aquele que concerne à falta de harmonia entre o que foi pedido e o que foi efetivamente decidido. A sentença arbitral é passível de anulação e/ou complementação quando for considerada respectivamente ultraextra ou citra petita, porque infiel ao objeto do processo.

Daí porque a Lei de Arbitragem estabelece expressamente que "os árbitros resolverão as questões que lhes forem submetidas" (artigo 26, inciso III), e, ainda, reputa inquinada de vício a sentença arbitral que deixe de julgar essas questões (artigo 32, inciso III) e/ou é proferida fora dos limites da convenção de arbitragem (artigo 32, inciso IV). 

Em tese, na hipótese de ser ela infra ou citra petita, o vício apresenta-se menos grave, porquanto, antes do trânsito em julgado, as partes podem tentar saná-lo mediante pedido de esclarecimentos. Se, todavia, o tribunal arbitral mantiver a omissão, torna-se necessário o ajuizamento de demanda judicial objetivando determinação para a respectiva complementação da sentença arbitral.

Cabe lembrar que a Lei nº 13.129/2015, ao aperfeiçoar o texto original da precedente Lei de Arbitragem, inseriu o parágrafo 4º no artigo 33, com a seguinte redação: "A parte interessada poderá ingressar em juízo para requerer a prolação de sentença arbitral complementar, se o árbitro não decidir todos os pedidos submetidos à arbitragem".

Como bem escreve Yasser Holanda, em trabalho inédito, "ao fazer tal alteração, o legislador abriu um flanco para que sentenças que não resolvessem a totalidade do litígio, mesmo as sentenças finais, passassem do status de sentenças nulas para sentenças 'incompletas', possuindo plena eficácia na parte em que resolveu o litígio, cabendo à parte, dirigir-se novamente ao árbitro, ou, permanecendo a incompletude, buscar não mais sua nulidade, mas tão-somente ordem judicial para sua complementação" ("Sentenças parciais x sentenças incompletas: soluções práticas para mitigação de riscos", Curso direito dos negócios, FGV-SP, 2017, pág. 3).

Acrescente-se, por oportuno, que os tribunais pátrios têm admitido certa margem de liberdade, no que toca às novas alegações, desde que não impliquem prejuízo a qualquer uma das partes, e desde que assegurado o contraditório. E isso, sobretudo no âmbito do processo arbitral por medida de economia processual e em observância do princípio da duração razoável do processo.

A esse respeito, há um importante precedente da 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo, no julgamento da Apelação nº 1117726-42.2018.8.26.0100, da relatoria do desembargador Maurício Pessoa, no qual restou admitida, no curso do procedimento arbitral, a inclusão de novos créditos no pleito de natureza condenatória formulado pelo demandado, considerando-se que, textual:

"No caso concreto..., nada impedia que fossem acrescidos em favor da ré créditos imputados à autora, como, aliás, bem decidido pelo Juízo Arbitral. Mesmo porque, repita-se, a autora pode se manifestar, e se manifestou, durante o procedimento arbitral a respeito da totalidade dos créditos cobrados pela ré. Portanto, nada impedia que ao valor inicialmente cobrado pela ré fossem acrescidos outros créditos no decorrer do procedimento arbitral...".

E isso tudo, por certo, em razão de ter sido observado o princípio do contraditório!

Cândido Rangel Dinamarco, examinando essa questão, vislumbra a possibilidade de alteração da causa de pedir e do pedido, na medida em que, como o sistema processual da arbitragem é "flexível por definição e não rígido como o do Código, aberto está o caminho para, com prudência, admitirem-se alterações da causa de pedir e do próprio pedido no curso do procedimento arbitral. Essa prudência é representada, acima de tudo, pela rigorosa necessidade de observar, como manda a Lei de Arbitragem, certos princípios constitucionais e, notadamente, o do contraditório" ("Possibilidade de emendas e alterações a pedidos e o princípio da estabilização do procedimento arbitral", Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo, Ed. RT, 2012, págs. 272-273).

Resulta evidente, pois, que o denominado princípio da congruência ou da adstrição é lastreado nas garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa. É, pois, imprescindível que o ato decisório arbitral se circunscreva à pretensão das partes, exatamente da forma como foi ela desenhada. 

De resto, segundo entendimento doutrinário e jurisprudencial generalizado, o pronunciamento ultra ou citra petita, implica defeito intrínseco da decisão

Nessa direção, apenas à guisa de ilustração, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial nº 135.685-SP, de relatoria do ministro Raul Araújo, deixou assentado que:

"Consoante o princípio da congruência, exige-se a adequada correlação entre o pedido e o provimento judicial, sob pena de nulidade por julgamento citra, extra ou ultra petita, a teor do que prescrevem os artigos 141 e 492 do Código de Processo Civil".


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