Lei 14.181/21 protege superendividados de boa-fé e veda ilícitos do setor financeiro. Por Joseane Suzart Lopes da Silva
Há quase uma década, iniciaram-se discussões sobre o superendividamento dos consumidores que, após muitos esforços e superação de entraves, contribuíram para a atualização do microssistema consumerista através da edição da Lei nº 14.181/21. Objetiva-se analisar a relevância da cláusula geral da boa-fé para a delimitação do campo de incidência deste novel diploma normativo e as suas funções na concessão de crédito, para se evitar e combater este sério problema que atinge cerca de 30 milhões de brasileiros.
Não se destina, ipso facto, esta coluna a discorrer acerca de toda as inovações implementadas, mas, sim, identificar em que medida se exige a conduta ética das partes envolvidas [1]. Almeja-se averiguar se o nosso país segue a tendência mundial de evidenciar a ética nos negócios jurídicos ensejadores desta lastimável realidade, valorizando-se a recuperação daqueles indivíduos que não contribuíram ardilosamente para o lamentável cenário em que se situam [2].
Os constantes expedientes nefastos que maculam a oferta de crédito no mercado de consumo acarretaram a sua regulamentação pelo artigo 54-C do CDC. Independentemente da forma de disponibilização, quer seja publicitária ou não, deverá atender aos requisitos constantes nos incisos II a V deste dispositivo e que se amoldam ao princípio da boa-fé, pois, a sua presença nas relações contratuais dar-se-á pela análise da situação concreta. Foram vedadas condutas que vilipendiam a ética que urge imperar nas relações jurídicas, como afirmavam Orlando Gomes e Antunes Varela [8], e que são insistentemente reiteradas pelos agentes econômicos. Impõe-se um feixe de deveres que pressupõem comportamentos positivos que não omitam dados essenciais sobre a contratação.
Não se permitirá que o fornecedor, de modo expresso ou implícito, oferte o crédito mediante comportamento agressivo, assediando ou pressionando o consumidor, mormente quando envolver prêmio ou esteja acometido por uma condição de vulnerabilidade agravada dada a sua idade, saúde ou condição sociocultural. A conduta omissiva do agente econômico quanto à informação acerca dos ônus e riscos do negócio, ou a criação de entraves para a sua compreensão, não se coaduna a com a probidade preconizada [9]. Outra prática vexatória coibida consiste na indicação de que a operação poderá ser concluída sem a prévia avaliação da situação financeira do interessado ou o acesso aos serviços de proteção ao crédito. Do mesmo modo, proibiu-se condicionar o atendimento de pretensões deste à renúncia ou à desistência de demandas judiciais, ao pagamento de honorários ou à concretização de depósitos.
De acordo com o artigo 54-G, consideram-se práticas abusivas: a cobrança sobre valores contestados pelo consumidor; os óbices para se impugnar fraudes; e a não entrega do contrato. A deferência e o respeito à parte mais enfraquecida na relação contratual — in casu, os consumidores em busca da concessão de crédito, eis que despreparados técnica e economicamente — devem prevalecer em consideração à dignidade destes. O princípio da boa-fé fundamentou adrede a ampliação do rol de disposições arbitrárias em complementação às existentes, principalmente devido ao fato de o negócio jurídico efetivar-se mediante contratos de mera adesão [13]. Foram acrescidos os incisos XVII e XVIII ao artigo 51 do CDC que versam, respectivamente, sobre a transgressão à garantia de acesso à justiça; e a imposição de prazos de carência por impontualidade ou que impeçam o restabelecimento integral dos direitos do devedor. Agindo de modo abusivo, os fornecedores não podem alegar que dispõem do direito de obrigar os consumidores a atenderem aos seus ilícitos anseios.
A despeito dos fortes embates e do empenho em defesa dos superendividados, a Lei nº 14.181/21 não foi aprovada na sua integralidade. Foram vetadas a cláusula abusiva sobre a aplicação de lei estrangeira e a oferta de crédito mediante o uso de expressões que tencionem omitir os acréscimos resultantes. Eliminou-se ainda todo o teor do artigo 54-E, parágrafos 1º a 6º, que limitava as consignações, em folha de pagamento dos consumidores, a um somatório não superior a 30% da remuneração. O estágio atual de evolução da sociedade, marcado por uma série de transformações nos diversos campos da atividade humana, implica a impossibilidade de o Direito prever todas as formas possíveis de violação do dever de decoro e de honestidade. Para Pontes de Miranda, não se tem como imprimir um sentido específico para a boa-fé; o que revelaria a sua ambiguidade e vagueza e, por outro lado, a sua imperiosa valia para "encher o espaço deixado pelas regras jurídicas dispositivas" [14]. Conquanto as referidas normas não tenham sido adicionadas ao ordenamento jurídico, pelo vetor axiológico da eticidade, os operadores do direito podem e devem lutar para a sua incidência no campo concreto.
[1] Cf. CHATAIN, Pierre-Laurent; FERRIÈRE, Frédéric. Le nouveau régime de traitement des situations de surendettement des particuliers de la loi nº 95-125 du 8 février 1995. Recueil Dalloz, 6o caderno, Paris, Dalloz, Chronique, fev. 1996, p. 40-46.
[2] MARQUES, Claudia Lima. Boa-fé nos serviços bancários, financeiros, de crédito e securitários e o Código de Defesa do Consumidor: informação, cooperação e renegociação. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo, nº 43, p. 231-232.
[3] Verificar: PAISANT, Gilles.Surendettement des particuliers. Appréciation des comportements exclusifs de la bonne foi. RTD Com. Paris: Dalloz, nº 51, vol. 4, p. 743-761, out.-dez./1998.
[5] MENEZES CORDEIRO, Antônio Manuel da Rocha e. Da Boa-fé no Direito Civil. Lisboa: Almedina, 2001, p. 655.
[6] COUTO E SILVA, Clóvis. O princípio da boa-fé no direito brasileiro e português. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980, p. 18
[7] Wieacker, Franz. El Principio general de la buena fe. Trad. José Luis Carro. Madri, Civitas, 1976 , p. 125.
[10] LIMA, Clarissa Costa de.; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. A força do microssistema do CDC: tempos de superendividamento e de compartilhar responsabilidades. In: MARQUES, Claudia Lima.; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli.; LIMA, Clarissa Costa de. Direitos do Consumidor Endividado II. Vulnerabilidade e Inclusão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 28.
[13] GOMES, Orlando. Contrato de Adesão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1972, p. 110.
[14] MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsoi, v. III, 1972, p. 328 e 333.Direito Civil Atual,
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