Em sua obra "A indústria do mero aborrecimento", Miguel Barreto [1] registra que a Emenda Constitucional 45, que foi promulgada em 2004, reformou o Poder Judiciário e criou o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Em 2009, o CNJ implantou metas de produtividade para o Poder Judiciário, especialmente para reduzir o acervo de processos existentes bem como para que fossem julgados mais processos do que os distribuídos a cada ano.
Nesse contexto surgiu a chamada tese do "mero aborrecimento", que fundamenta a jurisprudência defensiva material que pode ser resumida no REsp 844.736 de 2009 do Superior Tribunal de Justiça:
"(...) Segundo a doutrina pátria 'só deve ser reputado como dano moral a dor, vexame, sofrimento ou humilhação que, fugindo à normalidade, interfira intensamente no comportamento psicológico do indivíduo, causando-lhe aflições, angústia e desequilíbrio em seu bem-estar. Mero dissabor, aborrecimento, mágoa, irritação ou sensibilidade exacerbada estão fora da órbita do dano moral, porquanto tais situações não são intensas e duradouras, a ponto de romper o equilíbrio psicológico do indivíduo' (...)".
Esse entendimento reverbera um conceito já ultrapassado de dano moral, cujo grande expoente no Brasil é o professor Sergio Cavalieri Filho. O autor outrora defendia que, se não fosse essa a compreensão do instituto, o dano moral acabaria banalizado, dando ensejo a ações judiciais "em busca de indenizações pelos mais triviais aborrecimentos" da vida [2].
Embora já esteja superado pela doutrina mais recente e pelo próprio autor que atualizou o seu entendimento, tal conceito anacrônico continuou a ser reproduzido indiscriminadamente no Direito brasileiro. Nesse sentido, Fernando Noronha adverte, até mesmo, que existe uma "tradicional confusão entre danos extrapatrimoniais e morais (...) presente em praticamente todos os autores justamente reputados como clássicos nesta matéria, desde Aguiar Dias até Carlos Alberto Bittar e Yussef S. Cahali" [3].
Em face dessa situação, Francisco Amaral [4] explica que dano extrapatrimonial é aquele que decorre da lesão a bem jurídico que não integra o patrimônio da pessoa, sendo no Brasil chamado de "dano moral". Paulo de Tarso Sanseverino [5] reforça que no Direito pátrio, à exceção do dano estético que adquiriu relativa autonomia, os prejuízos sem conteúdo econômico têm sido abrangidos pela "denominação genérica de dano moral".
Lançando luz sobre a problemática, Lucas Barroso e Eini Dias [6] esclarecem que, em sentido estrito, o dano moral é sinônimo do dano anímico, configurando-se na lesão que causa dor ou sofrimento anímico sem provocar um estado patológico no espírito. Os autores, entretanto, distinguem-no do dano psíquico que, no seu entender, implica o desenvolvimento de transtornos psíquicos de ordem patológica, sendo o resultado de uma lesão à integridade psicofísica da pessoa. Mesmo nas situações em que o dano moral (anímico) provoca uma patologia psíquica, não se pode confundir o dano anímico com o dano psíquico. E concluem que, apesar de a expressão "danos morais" ser normalmente utilizada para designar a lesão aos direitos extrapatrimoniais, os danos morais em sentido estrito apenas alcançam os denominados danos anímicos, não cabendo, portanto, reduzir a ideia da reparação extrapatrimonial exclusivamente à figura desse dano moral tradicional.
Em obra recente, Flávio Tartuce [7] salienta que, atualmente, há duas correntes doutrinárias sobre o dano moral. A primeira, que, segundo o autor, é majoritária e à qual ele se filia, "relaciona os danos morais às lesões aos direitos da personalidade", ao passo que a segunda vê "o dano moral como lesão à cláusula geral de tutela da pessoa humana".
A 4ª Turma do STJ, sob a relatoria do ministro Luis Felipe Salomão, proferiu decisão emblemática consagrando as duas correntes doutrinárias hodiernas do dano moral, inclusive sua desvinculação de eventuais consequências emocionais da lesão. O julgamento unânime ocorreu em 17/03/2015 no REsp 1.245.550, nestas palavras:
Francisco Amaral [8] sintetiza a melhor doutrina sustentando que "o direito brasileiro considera dano moral o que decorre da lesão de bem jurídico não patrimonial, compreendendo os bens objeto dos direitos da personalidade, os direitos políticos e sociais, e os direitos ou situações jurídicas de família". Segundo o autor, "o dano moral ou extrapatrimonial compreende, portanto, o dano resultante da lesão de direitos extrapatrimoniais da pessoa, como são os direitos subjetivos à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e também direito à saúde, este um direito social, e ainda os direitos políticos, sociais e de família".
A fim de compatibilizar o entendimento doutrinário-jurisprudencial anterior com a necessidade de se conferir efetividade ao princípio da reparação integral, é preciso que se reconheçam novas categorias de danos extrapatrimoniais para além da esfera anímica da pessoa e, ao mesmo tempo, que se permita a reparação autônoma de mais de uma espécie deles oriunda do mesmo evento danoso [9]. Desse modo os danos extrapatrimoniais, por serem tradicionalmente chamados no Brasil de "danos morais", podem ser assim identificados e classificados com base no bem jurídico lesado: dano moral lato sensu e dano moral stricto sensu.
O dano moral lato sensu, enquanto gênero que corresponde ao dano extrapatrimonial, é o prejuízo não econômico que decorre da lesão a bem extrapatrimonial juridicamente tutelado, abrangendo os bens objeto dos direitos da personalidade, ao passo que o dano moral stricto sensu, enquanto espécie de dano extrapatrimonial que corresponde ao dano moral lato sensu, é o prejuízo não econômico que decorre da lesão à integridade psicofísica da pessoa — cujo resultado geralmente são sentimentos negativos como a dor e o sofrimento.
Ao estudar a problemática na "Teoria aprofundada do Desvio Produtivo do Consumidor" [10] — que identificou e valorizou o tempo do consumidor como um bem jurídico —, percebi que não se sustentava a compreensão jurisprudencial de que a via crucis enfrentada pelo consumidor, diante de um problema de consumo criado pelo próprio fornecedor, representaria "mero aborrecimento", e não algum dano indenizável.
O substantivo "aborrecimento" traduz um sentimento negativo qualificado pelo adjetivo "mero", que significa simples, comum, trivial. Em outras palavras, a jurisprudência baseada na tese do "mero aborrecimento" está implicitamente afirmando que, em determinada situação, houve lesão à integridade psicofísica de alguém apta a gerar um sentimento negativo ("aborrecimento"). Porém, segundo se infere dessa mesma jurisprudência, tal sentimento é trivial ou sem importância ("mero"), portanto incapaz de romper o equilíbrio psicológico da pessoa e, consequentemente, de configurar o dano moral reparável.
Com efeito, essa jurisprudência tradicional revela um raciocínio erigido sobre bases equivocadas que, naturalmente, conduzem a essa conclusão errônea. O primeiro equívoco é que o conceito de dano moral enfatizaria as consequências emocionais da lesão, enquanto ele já evoluiu para centrar-se no bem jurídico atingido; ou seja, o objeto do dano moral era essencialmente a dor, o sofrimento, o abalo psíquico, e se tornou a lesão a qualquer bem extrapatrimonial juridicamente tutelado, abrangendo os bens objeto dos direitos da personalidade. O segundo (equívoco) é que, nos eventos de desvio produtivo, o principal bem jurídico atingido seria a integridade psicofísica da pessoa consumidora, enquanto, na realidade, são o seu tempo vital e as atividades existenciais que cada pessoa escolhe nele realizar — como trabalho, estudo, descanso, lazer, convívio social e familiar. O terceiro (equívoco) é que esse tempo existencial não seria juridicamente tutelado, enquanto, na verdade, ele se encontra protegido tanto no rol aberto dos direitos da personalidade quanto no âmbito do direito fundamental à vida. Por conseguinte, o lógico é concluir que os eventos de desvio produtivo do consumidor acarretam, no mínimo, dano moral lato sensu compensável.
Ocorre que o tempo é o suporte implícito da vida, que dura certo tempo e nele se desenvolve, e a vida, enquanto direito fundamental, constitui-se das próprias atividades existenciais que cada um escolhe nela realizar. Logo um evento de desvio produtivo traz como resultado um dano que, mais do que moral, é existencial pela alteração prejudicial do cotidiano e do projeto de vida do consumidor [11].
Com a disseminação da nova "Teoria" a partir de 2012, os tribunais brasileiros progressivamente passaram a adotá-la e a aplicá-la, iniciando assim um processo de gradual transformação daquela jurisprudência lastreada na tese do "mero aborrecimento". Até então e em grande medida, tal jurisprudência defensiva não reconhecia a existência de danos morais (lato sensu) em situações em que eles estavam claramente presentes, sob o argumento de ter ocorrido um "mero aborrecimento" do cotidiano no caso concreto.
O ápice da alteração da jurisprudência em análise ocorreu em 17/12/2018, quando o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) cancelou, por unanimidade de votos, após provocação da Ordem dos Advogados do Brasil - Seção Rio de Janeiro (OAB-RJ), o enunciado da Súmula 75 que havia sido criada em 2004 e ficara conhecida como a "súmula do mero aborrecimento". Tanto o pedido da OAB-RJ quanto a decisão do TJ-RJ foram fundamentados na "Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor" [12].
A referida decisão ocorreu no Processo Administrativo 0056716-18.2018.8.19.0000, cujo acórdão relatado pelo desembargador Mauro Pereira Martins consagrou o seguinte entendimento em sua ementa: "Julgados desta Corte de Justiça que, desde os idos de 2009, trazem dentre os direitos da personalidade o tempo do contratante, que não pode ser desperdiçado inutilmente, tomando por base a moderna Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor. Súmula que não mais se coaduna com o entendimento adotado por este Sodalício".
Em resumo, o conceito de dano moral ampliou-se ao longo dos anos, partindo da noção de dor e sofrimento anímico para alcançar, atualmente, o prejuízo não econômico decorrente da lesão a bem extrapatrimonial juridicamente tutelado, compreendendo os bens objeto dos direitos da personalidade — como o tempo da pessoa humana. Essa ampliação conceitual vem permitindo o reconhecimento de novas categorias de danos extrapatrimoniais para além da esfera anímica da pessoa — como o dano temporal, o dano existencial —, bem como a reparação autônoma de mais de uma espécie deles originária do mesmo evento danoso.
A "Teoria do Desvio Produtivo" promoveu a ressignificação e a valorização do tempo vital do consumidor — elevando-o à categoria de um bem jurídico —, vem possibilitando a crescente superação da jurisprudência baseada na tese do "mero aborrecimento" — que fora construída sobre bases equivocadas —, contribuiu para a ampliação do conceito de dano moral — apontando esse tempo como um bem extrapatrimonial juridicamente tutelado — e ensejou o surgimento de uma nova jurisprudência brasileira — a do "desvio produtivo do consumidor".
Conforme pesquisa quantitativa de jurisprudência que realizei em 15/6/2021, até então a expressão exata e inequívoca "desvio produtivo" já havia sido citada em 19.827 acórdãos dos 27 tribunais estaduais e do DF, em 92 acórdãos dos cinco tribunais regionais federais, em 86 decisões monocráticas do STJ e no REsp 1.737.412 da sua 3ª Turma. A tese consumerista também já foi aplicada, por analogia, ao Direito Administrativo pelo TJ-SP e pelo TRF-2, bem como ao Direito do Trabalho pelo TRT-17, cuja utilização na esfera juslaboral foi posteriormente confirmada pelo TST [13].
[1] BARRETO, Miguel. A indústria do mero aborrecimento. 2ª ed. Juiz de Fora: Editar, 2016. p. 27-45.
[2] CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 8ª ed. rev. e ampl. 3ª reimpr. São Paulo: Atlas, 2009. p. 84.
[3] NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. 4ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 591.
[4] AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 10ª ed. rev. e modif. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 956-957.
[5] SANSEVERINO, Paulo de T. Princípio da reparação integral: indenização no código civil. 1ª ed., 2. tir. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 189.
[6] BARROSO, Lucas A.; DIAS, Eini R. O dano psíquico nas relações civis e de consumo. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 94, 2014. passim.
[7] TARTUCE, Flávio. Responsabilidade civil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 427.
[8] AMARAL, 2018, p. 957.
[9] BARROSO; DIAS, 2014, p. 93-94.
[10] DESSAUNE, Marcos. Teoria aprofundada do desvio produtivo do consumidor: o prejuízo do tempo desperdiçado e da vida alterada. 2ª ed. Vitória: Edição do Autor, 2017. passim.
[11] ALMEIDA NETO, Amaro de. Dano existencial: a tutela da dignidade da pessoa humana. Revista dos Tribunais, v. 6, nº 24, São Paulo, RT, out.-dez. 2005. passim.
[12] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-dez-17/orgao-especial-tj-rio-cancela-sumula-mero-aborrecimento. Acesso em: 09/06/2021.
[13] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-jun-03/tst-confirma-aplicacao-teoria-desvio-produtivo. Acesso em: 09-06-2021.
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