A alienação de ativos do devedor em recuperação extrajudicial - Natalia Yazbek e Felipe Buchpiguel

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A alienação de bens na recuperação extrajudicial deve ser interpretada em conjunto com os demais artigos da LRF e seus princípios norteadores, de forma a entender que a alienação de UPI ou filiais, desde que realizada por uma das formas previstas no artigo 142, terá seu objeto livre de qualquer ônus.


(i)  Introdução


Entrou em vigor em 24 de janeiro de 2021, a lei 14.112/20, que trouxe profundas alterações à lei 11.101/05 ("LRF"), que dispõe sobre a Recuperação Judicial ("RJ"), Recuperação Extrajudicial ("RE") e a falência do devedor empresário.


Das diversas alterações trazidas pela lei 14.112, uma das mais interessantes e inovadoras surgiu no âmbito da alienação de Unidades Produtivas Isoladas ("UPIs"), instrumento comumente utilizado em processos de RJ, devido aos incentivos trazidos à investidores. Contudo, sem ignorar a relevância de tais previsões (e proteções) ao soerguimento de empresas em crise (estejam elas em RJ ou RE), o presente artigo abordará a alienação de ativos do devedor em recuperação extrajudicial e a problemática da falta de clareza a respeito da aplicação do conceito de UPIs à processos de RE.


As UPIs podem ser definidas como um conjunto de ativos de uma determinada empresa, que pode ser alienado como uma das formas de superação da crise empresarial (na forma dos arts. 50 e 60, LRF).


Ainda pouco utilizadas no Brasil, as REs também tiveram o seu regramento modificado pela recente alteração à LRF, fazendo-se necessário tecer alguns comentários sobre as alterações promovidas pela referida reforma, bem como as problemáticas que já permeavam o instituto antes mesmo de tais mudanças. Nesse aspecto, a problemática que envolvia a alienação de ativos em REs sob a forma de UPI pode ser destacada como um dos pontos que resultam no desencorajamento para que tal instituto seja utilizado. Para entendermos a temática, será necessário tecer breves comentários ao instituto da RE.


(ii)  Aspectos positivos implementados pela reforma da LRF, no tocante às REs


Antes de adentrar na temática da venda de ativos do devedor em RE, é relevante expor outras mudanças positivas ao instituto, implementadas pela reforma.


Uma das alterações pertinentes foi a redução do quórum de adesão pelos credores abrangidos pelo plano de RE, de 3/5 para 50% + 1, para que o PRE seja homologado, sendo ainda facultado ao devedor o ajuizamento do pedido de homologação com a adesão de apenas 1/3 dos créditos abrangidos, com o compromisso de obter o restante das aprovações necessárias durante o curso do processo (em até 90 dias).


Antes da alteração da LRF, também era vedada a negociação, e consequentemente, inclusão dos créditos  derivados da legislação do trabalho ou decorrentes de acidentes de trabalho como créditos abrangidos por um plano de RE. Com a reforma da LRF, tais créditos passaram a ser passíveis de inclusão na RE, desde que haja a prévia negociação coletiva com o sindicato da respectiva categoria profissional.


Outra mudança relevante advinda da lei 14.112/20 foi a previsão expressa no art. 163, §8º1 da suspensão das execuções dos créditos abrangidos pelo plano de RE, algo que antes da reforma gerava questionamentos sobre a aplicação do referido prazo de suspensão a tais procedimentos. O sucesso da RE dependia, até então, majoritariamente, do sucesso na negociação extrajudicial, através de contratos de inação ou "standstill agreements", de eventual previsão do plano nesse sentido ou de decisão judicial (neste caso, já após o ajuizamento do pedido de homologação de plano de RE).


(iii)   Alienação de UPIs no âmbito da Recuperação Judicial e suas vantagens


É cediço esclarecer que embora o presente artigo trate da alienação de ativos do devedor em crise em processos de RE, é inevitável não fazer uma breve digressão sobre o surgimento do conceito de UPIs em processos de RJ. Isso porque, embora tais procedimentos sejam distintos e tenham suas particularidades, a alienação de UPIs em processos de RJ (e os incentivos aos investidores destes ativos) serve de referencial para o tema objeto deste artigo.


Quando da promulgação da LRF, em 2005, e introdução do conceito de UPI em nosso ordenamento jurídico havia certo debate sobre a sua definição, que era equiparada por parcela da doutrina como sinônimo de "estabelecimento comercial"2, enquanto outros consideravam que o conceito de UPI era geral indeterminado3. Desta forma, a vagueza semântica obrigava o intérprete a preencher o sentido do termo no caso concreto4. Em contrapartida, essa ausência de definição gerava constante insegurança jurídica, pois deixava a critério do magistrado, a confirmação a respeito da configuração de um ativo (ou conjunto de ativos) como UPI.


Com a reforma da LRF, o art. 60-A, buscou delinear o conceito de UPI com a seguinte redação: "a unidade produtiva isolada de que trata o artigo 60 desta lei poderá abranger bens, direitos ou ativos de qualquer natureza, tangíveis ou intangíveis, isolados ou em conjunto, incluídas participações dos sócios", deixando claro que uma UPI poderá ser formada por ativo(s) de diversas naturezas.


Ainda, após a reforma da LRF, o parágrafo único do art. 605 passou a estabelecer que, o adquirente de filiais ou de unidades produtivas isoladas (as chamadas "UPIs"), agraciadas no âmbito do plano de RJ, desde que observadas às normas da legislação vigente, não sucederá nas obrigações do devedor "de qualquer natureza" - a redação anterior mencionava expressamente somente as obrigações (inclusive) "de natureza tributária", o que gerava dúvidas a respeito da extensão da não sucessão das obrigações.


Essas mudanças e convalidações acrescentam pontos atrativos ao investimento em ativos de empresas em crise, em processos de RJ.


(iv)  Alienação de UPIs no âmbito da Recuperação Extrajudicial e suas controvérsias


Em contrapartida às alterações legislativas promovidas no tocante a ausência de sucessão nas obrigações do adquirente de UPIs em processos de RJ, a alienação de UPIs no âmbito da RE continua sendo objeto de grande debate no mundo jurídico.


Isso ocorre, pois inexiste regra expressa de não sucessão das obrigações do devedor aos adquirentes nos casos de RE, tal como ocorre nos casos de recuperação judicial, embora o art. 166, LRF faça remissão ao artigo 142, ambos da LRF.


Com isso, apesar de ser totalmente contra a interpretação teológica e funcional da LRF, uma análise conservadora e literal de suas disposições indica que a não sucessão das obrigações do devedor ao adquirente somente seria aplicável aos processos de RJ e não aos processos de RE.


A não sucessão das obrigações é o ponto mais relevante para que a alienação das UPIs seja cada vez mais realizada em situações de crise do devedor, estejam eles enfrentando um processo de RJ ou de RE.


Tal problema, apesar de amplamente debatido entre doutrinadores, ainda gera um grande desinteresse pela RE, tendo em vista que os adquirentes não terão a segurança jurídica de que adquiridos os bens do devedor, as obrigações advindas destes ativos não serão objeto de sucessão.


Além disso, o artigo 666 da LRF merecia o mesmo esclarecimento supracitado, pois tal artigo permite a alienação de bens do devedor após a distribuição do pedido de RJ, desde que autorizado pelo juiz ou previsto no plano de RJ. A mesma possibilidade, contudo, não é expressamente prevista para os casos de RE.


Dois fatores que poderiam ser resolvidos facilmente pelo legislador e que, certamente, incentivariam a utilização, por devedores em crise, dos processos de RE, mais simples, eficiente e menos custoso do que a RJ.


(v)  Conclusão


A alienação de bens na recuperação extrajudicial deve ser interpretada em conjunto com os demais artigos da LRF e seus princípios norteadores, de forma a entender que a alienação de UPI ou filiais, desde que realizada por uma das formas previstas no artigo 142, terá seu objeto livre de qualquer ônus e não implicará sucessão do arrematante nas obrigações do devedor.


A jurisprudência deverá ordenar e clarear essa disposição, para que tenhamos a segurança jurídica necessária para que as vendas de ativos de devedores ocorram em segurança, rapidez e a preço justo, permitindo que a recuperação rápida de empresas em RJ ou em RE, seja eficaz e atenda a seus objetivos.


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1 Art. 163. O devedor poderá também requerer a homologação de plano de recuperação extrajudicial que obriga todos os credores por ele abrangidos, desde que assinado por credores que representem mais da metade dos créditos de cada espécie abrangidos pelo plano de recuperação extrajudicial.


§ 1º O plano poderá abranger a totalidade de uma ou mais espécies de créditos previstos no art. 83, incisos II, IV, V, VI e VIII do caput, desta Lei, ou grupo de credores de mesma natureza e sujeito a semelhantes condições de pagamento, e, uma vez homologado, obriga a todos os credores das espécies por ele abrangidas, exclusivamente em relação aos créditos constituídos até a data do pedido de homologação.


§ 2º Não serão considerados para fins de apuração do percentual previsto no caput deste artigo os créditos não incluídos no plano de recuperação extrajudicial, os quais não poderão ter seu valor ou condições originais de pagamento alteradas.


§ 3º Para fins exclusivos de apuração do percentual previsto no caput deste artigo:


I - o crédito em moeda estrangeira será convertido para moeda nacional pelo câmbio da véspera da data de assinatura do plano; e


II - não serão computados os créditos detidos pelas pessoas relacionadas no art. 43 deste artigo.


§ 4º Na alienação de bem objeto de garantia real, a supressão da garantia ou sua substituição somente serão admitidas mediante a aprovação expressa do credor titular da respectiva garantia.


§ 5º Nos créditos em moeda estrangeira, a variação cambial só poderá ser afastada se o credor titular do respectivo crédito aprovar expressamente previsão diversa no plano de recuperação extrajudicial.


§ 6º Para a homologação do plano de que trata este artigo, além dos documentos previstos no caput do art. 162 desta Lei, o devedor deverá juntar:


I - exposição da situação patrimonial do devedor;


II - as demonstrações contábeis relativas ao último exercício social e as levantadas especialmente para instruir o pedido, na forma do inciso II do caput do art. 51 desta Lei; e


III - os documentos que comprovem os poderes dos subscritores para novar ou transigir, relação nominal completa dos credores, com a indicação do endereço de cada um, a natureza, a classificação e o valor atualizado do crédito, discriminando sua origem, o regime dos respectivos vencimentos e a indicação dos registros contábeis de cada transação pendente.


§ 7º O pedido previsto no caput deste artigo poderá ser apresentado com comprovação da anuência de credores que representem pelo menos 1/3 (um terço) de todos os créditos de cada espécie por ele abrangidos e com o compromisso de, no prazo improrrogável de 90 (noventa) dias, contado da data do pedido, atingir o quórum previsto no caput deste artigo, por meio de adesão expressa, facultada a conversão do procedimento em recuperação judicial a pedido do devedor. 


§ 8º Aplica-se à recuperação extrajudicial, desde o respectivo pedido, a suspensão de que trata o art. 6º desta Lei, exclusivamente em relação às espécies de crédito por ele abrangidas, e somente deverá ser ratificada pelo juiz se comprovado o quórum inicial exigido pelo § 7º deste artigo.  


A LRF exclui dos efeitos da recuperação judicial parcela relevante do passivo do devedor, tais como os débitos garantidos por propriedade fiduciária, os com origem em adiantamentos de contrato de câmbio, os tributários e os decorrentes de contratos de compra e venda com reserva de domínio.


2 TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de; POPPA, Bruno. UPI e estabelecimento: uma visão crítica. In: TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de; SATIRO, Francisco (coords). In: Direito das empresas em crise: problemas e soluções. São Paulo: Quartier Latin, 2012. p.277.


3 WAISBERG, Ivo. Da não sucessão pelo adquirente por dívidas trabalhistas e tributárias na aquisição de unidades produtivas isoladas perante a Lei 11.101/2005. In: ANDRIGHI, Nancy; ABRÃO, Carlos Henrique; IMHOF, Cristiano (orgs). Revista de Direito Empresarial e Recuperacional. São Paulo: Grupo Conceito, 2010. p. 163.


4 MARTINS-COSTA, Judith Hofmeister. As cláusulas gerais como fator de mobilidade do sistema jurídico. In: Revista dos Tribunais, São Paulo, jun.1992, v. 885, p. 29.


5 Art. 60, parágrafo único. O objeto da alienação estará livre de qualquer ônus e não haverá sucessão do arrematante nas obrigações do devedor de qualquer natureza, incluídas, mas não exclusivamente, as de natureza ambiental, regulatória, administrativa, penal, anticorrupção, tributária e trabalhista, observado o disposto no § 1º do art. 141 desta Lei.


6 Art. 66. Após a distribuição do pedido de recuperação judicial, o devedor não poderá alienar ou onerar bens ou direitos de seu ativo não circulante, inclusive para os fins previstos no art. 67 desta Lei, salvo mediante autorização do juiz, depois de ouvido o Comitê de Credores, se houver, com exceção daqueles previamente autorizados no plano de recuperação judicial.

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