O TJ/SP e a reforma daquela que ficou conhecida como "a 1ª sentença de LGPD no mercado imobiliário" - Um começo de jurisprudência que revela a maturidade do judiciário paulista Rubens Carmo Elias Filho e Ricardo Augusto de Castro Lopes


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Na semana passada, a 3ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, reformou aquela que, desde 1/10/2020, ficou conhecida como a primeira sentença proferida com base na Lei Geral de Proteção de Dados.


No acórdão, proferido na sessão de julgamento realizada em 24/08/2021, a relatora, Maria do Carmo Honório acolheu as razões de apelação da empresa Cyrela para afastar a condenação que havia sido estipulada no ano anterior em razão de supostos danos morais que o autor, advogado especializado em propriedade intelectual, havia alegado ter sofrido em função de publicidade por mensagens de WhatsApp, e-mails e ligações que afirmou ter recebido.


Em síntese, tentou imputar à empresa Cyrela a responsabilidade por tais contatos, alegando que referida empresa teria indevidamente divulgado seus dados de contato para terceiros e, por isso, pediu indenização de R$ 60.000,00 e liminar para que cessasse a suposta divulgação de seus dados e os contatos indesejados, sob pena de multa diária.


Na sentença, a juíza da 13ª Vara Cível do Foro Central da Capital havia julgado procedentes os pedidos, porém condenando a empresa a uma indenização de R$ 10.000,00, tendo invocado para tanto a LGPD e o Código de Defesa do Consumidor.


O acórdão, publicado ontem, 1/9/2021, é um marco extremamente importante não só para o mercado imobiliário - que tem como um de seus maiores ativos a confiança de seus clientes com o tratamento das informações por eles fornecidas - como, também, para a própria maturidade das relações B2C (business-to-consumer, em inglês, ou empresa-consumidor, em português), uma vez que estabelece importantes premissas a serem observadas na aplicação da Lei Geral de Proteção de Dados.


A primeira delas é o marco temporal a ser respeitado para a incidência da nova lei, ponto em que o acórdão foi cirúrgico ao afirmar que "embora a MM. Magistrada a quo tenha também aplicado a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD - lei 13.709/2018) ao caso em rela, não havia fundamento para tanto, eis que, quando da contratação do empreendimento da Cyrela pelo autor (10 de novembro de 2018 - págs. 55/106) e do suposto vazamento de dados, ela ainda não estava em vigor" (destaques nossos).


Percebe-se, portanto, que foi confirmada, como regra de início incidência temporal, como não poderia deixar de ser, o momento da celebração da contratação, ou lato sensu, do começo da relação entre as partes; o que foi, inclusive, reforçado pela relatora com a citação de trecho do acórdão proferido no julgamento do REsp 1.694.405-RJ, no qual se concluiu que "a regra a ser utilizada para a resolução de uma dada controvérsia deve levar em consideração o momento de ocorrência do ato ou, em outras palavras, quando foram publicados os conteúdos infringentes"; arrematando, ainda, a relatora, quanto a esse ponto, dizendo que "a regra geral é, pois, a irretroatividade da norma".


Outro ponto de suma relevância e que servirá de norte para a parametrização de julgamentos futuros e que fatalmente servirá de forte desestímulo à propositura de ações buscando indenização por danos morais com fundamento em atos corriqueiros da vida em sociedade é o fato de o acórdão ter estabelecido, também como regra a ser observada, a imprescindibilidade de existência nos autos de mais que meras alegações e argumentos para comprovar o dano.


Isso porque expressamente o acórdão concluiu no caso em questão, que "não há prova inequívoca de que foi a requerida quem repassou os dados pessoais do requerente aos prestadores de serviços que o contataram por e-mail e mensagens de WhatsApp (págs. 107/146)" (destaques nossos).


O acórdão foi ainda mais contundente ao destacar, em sua fundamentação, que "Em que pese a informação de uma das prestadoras que entrou em contato com o autor sobre o acesso a mailing por meio de 'portal de construtoras' (pág. 145), este fato, por si só, não identifica a ré como a responsável pelo alegado vazamento dos dados, máxime porque outra informou que trabalhavam 'com diversas parcerias', arrematando: 'não sei ao certo quem passou o seu Contato' (pág. 111)." (destaques nossos); bem como, no mesmo sentido, que, "as referências ao nome do empreendimento, por si só, não são suficientes para provar a autoria do suposto vazamento de informações" e que, por isso, "a prova não é segura no sentido de que foi a Cyrela quem repassou seus dados a terceiros, de tal modo que não é possível verificar o nexo de causalidade a justificar a condenação da requerida como pleiteado na petição inicial".


O julgado se estabelece de fato como um marco jurisprudencial no tocante às relações jurídicas tuteladas pela LGPD e os limites e requisitos a ela aplicáveis, principalmente quanto à matéria probatória ao ter definido, de forma basilar, os parâmetros gerais a serem observados nesse sentido.


Isso porque a relatora foi didática ao esclarecer que "não restou comprovado nenhum fato do qual se possa inferir o efetivo dano extrapatrimonial, muito menos por conduta ilícita da ré, e, sem a demonstração deste, não há fundamento para imposição da obrigação de indenizar" (destaques nossos), indicando claramente que o Tribunal Bandeirante está se alinhando no sentido de não permitir condenações com base em tal espécie de alegação sem que haja fatos que comprovem a real ocorrência de dano moral, mesmo sob alegação de suposta infringência à Lei Geral de Proteção de Dados.


Também foi aplicado ao âmbito das supostas violações de intimidade o entendimento já praticado anteriormente pelo Tribunal de que o mero aborrecimento não gera dano moral, tendo assim expresso no recentíssimo acórdão: "As alegadas ligações, mensagens e e-mails recebidos pelo autor, ainda que de forma reiterada e apesar de causar incômodo, não caracterizam, por si só, violação de intimidade. Na realidade, nas circunstâncias apresentadas, elas não ultrapassaram a esfera do mero aborrecimento" (destaques nossos).


Por fim, vale ressaltar trecho que deverá ressoar em julgamentos futuros envolvendo alegação de danos em função de contatos tidos por indesejados; trecho esse em que a relatora, de modo claro e preciso concluiu que "O consumidor, no caso, independentemente da autoria das mensagens, não sofreu nenhum ônus excepcional, a não ser aquele que todo ser humano tem que aprender a suportar por viver numa sociedade tecnológica, frenética e massificada, sob pena da convivência social ficar insuportável".


Como se depreende dos trechos acima transcritos do recentíssimo acórdão, o Tribunal de Justiça de São Paulo, com esse entendimento, mostra sua maturidade e plena capacidade de corresponder aos desafios que a nova Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais vem trazendo desde sua entrada em vigor, garantindo aos titulares dos dados a correta defesa de seus direitos sem por outro lado avançar sobre as garantias constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, devidamente protegidos neste que se torna o primeiro passo para o desenvolvimento de um efetivo sistema interpretativo da LGPD.


Para um infográfico ilustrativo dos fatos, alegações e decisões relacionados ao processo, clique:

https://www.migalhas.com.br/arquivos/2021/9/AC4E8AAEE468F4_INFOGRAFICO.pdf 

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