A execução de tutelas de urgência estrangeiras no Brasil, por Por André de Albuquerque Cavalcanti Abbud e Aécio Filipe Coelho Fraga de Oliveira

 Nos casos em que as decisões e sentenças arbitrais não são cumpridas espontaneamente, a cooperação do Poder Judiciário para a efetividade delas tem sido há anos fundamental. No entanto, há um campo em que essa cooperação ainda precisa ser melhor desenvolvida: o da execução de tutelas de urgência proferidas por árbitros no exterior.

No Brasil, apesar de legislação, doutrina e jurisprudência reconhecerem a competência do árbitro para proferir tutelas de urgência (Lei de Arbitragem — LArb, artigos 22-A e B), não são uniformes sobre o mecanismo adequado para a sua execução, se proferidas fora do território brasileiro. Alternam-se entre correntes que apontam o uso: 1) da carta rogatória; 2) da execução da tutela de urgência via homologação de sentença estrangeira; ou 3) da carta arbitral para esse fim.

o obstante, decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça no fim de 2019, que passou em boa medida despercebida pela doutrina, parece apontar possível solução para esse impasse ou, ao menos, uma tendência de posicionamento do STJ [1]. No pedido de homologação de decisão estrangeira (HDE) nº 3671/US, o então presidente do STJ decidiu permitir liminarmente a execução da tutela de urgência via processo para homologação de sentença arbitral.

No caso, a requerente na arbitragem era sócia majoritária de duas off-shores e instaurou arbitragem sediada em Nova York e administrada pela Câmara de Comércio Internacional — CCI (Arbitragem CCI nº 23.856MK) — para discutir a existência de condutas praticadas pela requerida, sócia minoritária, que ensejaram a compra forçada de suas quotas sociais. Para resguardar o resultado útil do processo, a requerida do procedimento arbitral buscou medida de urgência para garantir que a requerente se abstivesse de penhorar, transferir ou de qualquer forma onerar as quotas contestadas, bem como os ativos das empresas relacionadas, solicitando ainda que ela fosse obrigada a notificá-la sobre quaisquer decisões relevantes para os negócios.

O tribunal arbitral deferiu o pedido e proferiu essa medida em forma de sentença parcial, que foi objeto de pedido de tutela de evidência pela parte requerida da arbitragem, concomitante ao requerimento de homologação de decisão estrangeira perante o STJ. Subsidiariamente, solicitou também a concessão de exequatur como se carta rogatória fosse.

Em sua decisão, o ministro Noronha, apesar de reconhecer que "a decisão nãé propriamente sentença arbitral", concluiu que "decisão de caráter incidental [...] pode ser homologada pelo STJ, desde que tenha eficácia no país de origem". Para isso, analisou todas as causas de não reconhecimento de homologação de sentenças arbitrais estrangeiras, previstos na LArb, entendendo por bem "defe(rir) o pedido de tutela na modalidade evidência para homologar provisoriamente a decisão arbitral estrangeira".

A referida decisão monocrática parece dar um caminho efetivo para a execução de tutelas de urgência, posicionando-se sobre questão que gera dúvidas e divergências antigas: a possibilidade de se considerar uma decisão concessiva de tutela provisória como uma sentença arbitral, passível de execução forçada perante os órgãos judiciais.

Em particular, diante do silêncio da Convenção de Nova York sobre tutelas provisórias, muitos entendem que elas não podem ser reconhecidas com base nesse tratado, já que ele se aplicaria apenas a sentenças arbitrais definitivas (final awards) e tutelas provisórias seriam por definição não definitivas — além de virem muitas vezes sob a forma de ordens processuais (orders) e não sentenças (awards).

Outros sustentam que a decisão sobre pedido de tutela provisória seria definitiva (final award) para as questões nela resolvidas e, portanto, seria passível de reconhecimento no regime da Convenção de Nova York, quer fosse veiculada por uma ordem, quer por uma sentença.

Para tentar escapar a essa dificuldade, outro caminho cogitado seria valer-se do regime da carta rogatória (Código de Processo Civil — CPC, artigos 960, §1º, e 962, §1º), via sistemática geral do CPC sobre homologação de decisões estrangeiras  que se aplica subsidiariamente ao reconhecimento de decisões arbitrais (LArb, artigo 36; CPC, artigo 960, §3º). O problema é que o tribunal arbitral ou a parte interessada teriam, em tese, que requerer ao órgão judicial do país sede da arbitragem a expedição da carta rogatória que, por sua vez, seria transmitida por via diplomática para concessão do exequatur no Brasil (CPC, artigo 26, §1º). Referido trâmite, como se sabe, pode levar meses e até anos, prejudicando a efetivação da medida de urgência.

Diante desse problema, parte da doutrina defende a possibilidade de requerimento de cooperação internacional diretamente ao STJ, por via de carta rogatória emanada pelos próprios árbitros, a exemplo da solução preconizada na Lei-Modelo da Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional (Uncitral).

A recente decisão do STJ posicionou-se sobre esses temas. Além de submeter a tutela de urgência ao regime da homologação de sentenças estrangeiras, entendeu não ser possível conceder exequatur para decisão do tribunal arbitral que não tenha sido encaminhada através de "autoridade judicial estrangeira por via de carta rogatória". Em outras palavras, apesar de ter concedido a tutela provisória, a referida decisão confirma a exigência de se buscar auxílio das cortes estatais da sede da arbitragem para que estas, como autoridades judiciais, possam expedir carta rogatória passível de concessão de exequatur no Brasil. Infelizmente, em seguida as partes concordaram em extinguir o processo de homologação, de modo que a Corte Especial não teve oportunidade de se pronunciar sobre o tema.

Apesar de a decisão ter contribuído para a discussão sobre os caminhos para execução de tutelas de urgência fora da sede, indicando a possibilidade de requerimento de liminar concomitante ao pedido de homologação de sentença arbitral, vários pontos ainda ficaram em aberto.

Em primeiro lugar, reconhecer a tutela de urgência pelo rito de homologação de sentença arbitral estrangeira não acaba por impor à parte requerente o ônus de formular novo pedido de urgência visando a antecipar a execução da decisão homologanda? E, em via indireta, as cortes brasileiras não passariam a revisar a própria urgência já analisada pelo tribunal arbitral? Ora, caso referido pedido de urgência não seja feito, a parte requerente deverá, necessariamente, aguardar decisão da Corte Especial do STJ, após apresentação de contestação pela parte contrária e parecer do Ministério Público para que a decisão seja implementada e cumprida. Ou seja, será necessário percorrer toda a duração média do processo de homologação de sentença arbitral, o que esvaziaria, por óbvio, o interesse na medida pleiteada.

Em segundo lugar, exigir que a carta arbitral seja expedida por autoridade judicial estrangeira vai na contramão de entendimentos anteriores do próprio STJ sobre o tema. Apesar de majoritariamente utilizada em prol da execução de tutelas de urgência emanadas de outras cortes estatais, há casos precedentes em que se concedeu exequatur a cartas rogatórias expedidas diretamente por tribunais arbitrais sediados fora do território brasileiro, para executar aqui medidas de urgência.

Qual entendimento deverá prevalecer nos próximos anos sobre esse tema? Sobre essa discussão, restam ainda várias questões a serem respondidas, como por exemplo:

— Tendo em vista que a Convenção de Nova York não foi referida na decisão, seria ela compatível com o conceito e os efeitos gerados por uma tutela de urgência?

— Ao julgar um pedido de tutela de urgência, deverá o árbitro respeitar os requisitos da sentença impostos pela LArb e pelo regulamento de arbitragem aplicável para que a tutela de urgência seja homologada?  Se tais requisitos incluírem o escrutínio da sentença previsto em algumas câmaras arbitrais, isso não afetaria a utilidade da decisão urgente?

— A parte contra a qual a medida de urgência se opõe pode invocar os mesmos motivos de não homologação de uma sentença final de mérito?  Pode mover ação anulatória na sede da arbitragem, a fim de impedir a produção dos efeitos da medida concedida pelo árbitro no exterior? Em caso positivo, ao permitir que as cortes estatais brasileiras examinem a validade da cláusula compromissória e a arbitrabilidade da disputa, não se estaria dando poder à parte adversa de contestar e às cortes estatais de revisar, prematuramente, a jurisdição do tribunal arbitral — em momento no qual o próprio árbitro pode não ter declarado a sua própria competência?

— Diante das dificuldades e questionamentos relatados, o ideal não seria permitir, de lege ferenda, que as partes interessadas pedissem diretamente a efetivação de medidas de urgência no foro de execução, por meio de carta arbitral proferida por tribunal sediado no estrangeiro, a exemplo da reforma da lei de arbitragem suíça de 2021?

Como se vê, apesar de a decisão em análise oferecer um caminho para a execução no Brasil de tutelas de urgência proferidas por tribunais arbitrais sediados no exterior, ela ao mesmo tempo reacende dúvidas antigas sobre os melhores mecanismos para dar efetividade a tais tutelas. Seria muito importante que tais dúvidas fossem resolvidas pela jurisprudência.

[1] STJ, HDE nº 3.671 - US (2019/0350688-7), Rel. Min. Pres. João Otávio de Noronha, j. em 29.11.2019.

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