Majoração e redução das astreintes (EARESP 650.536/RJ) - André Pagani de Souza

Majoração e redução das astreintes (EARESP 650.536/RJ)

André Pagani de Souza

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Finalmente, foi publicado o acórdão proferido pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça por ocasião do julgamento do EARESP 650.536/RJ em 03 de agosto de 2021. Tal decisão já foi objeto de artigo publicado nessa coluna em 29 de abril desse ano ("Majoração e redução da multa do art. 537, do CPC/2015) e outro publicado em 01 de julho do mesmo ano ("Alteração do valor das astreintes e cômputo de prazo para a sua incidência"). Em ambas as oportunidades, os textos foram escritos sem se ter acesso à íntegra do acórdão que agora está disponível na internet.1


Como se sabe, o § 1º do art. 536 do Código de Processo Civil de 2015 (CPC/2015), traz um rol exemplificativo de medidas executivas que podem ser utilizadas para a obtenção do cumprimento de uma obrigação de fazer, não fazer ou entregar coisa ("para atender ao disposto no caput,  o juiz poderá determinar, entre outras medidas, a imposição de multa, a busca e apreensão, a remoção de pessoas e coisas, o desfazimento de obras e o impedimento de atividade nociva, podendo, caso necessário, requisitar o auxílio de força policial").


Dentre tais medidas a serem empregadas para a execução forçada de uma obrigação de fazer, não fazer ou entregar coisa, está prevista a multa (também conhecida como astreinte ou multa cominatória). O art. 537, do CPC/2015, trata especificamente desta multa e de sua disciplina processual, ao esclarecer logo em seu caput que "A multa independe de requerimento da parte e poderá ser aplicada na fase de conhecimento, em tutela provisória ou na sentença, ou na fase de execução, desde que seja suficiente e compatível com a obrigação e que se determine prazo razoável para cumprimento do preceito".


Tal multa também estava prevista no CPC/1973, em seu art. 461, § 5º, que estabelecia igualmente o seguinte: "para a efetivação da tutela específica ou a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz, de ofício ou a requerimento, determinar as medidas necessárias, tais como a imposição de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com a requisição de força policial".


Contudo, há uma diferença entre o CPC/2015 e o CPC/1973, no que diz respeito à possibilidade de modificação ou extinção da multa. No diploma anterior, o art. 461, § 6º, dispunha que "o juiz poderá, de ofício, modificar o valor ou a periodicidade da multa, caso verifique que se tornou insuficiente ou excessiva". Já o § 1º do art. 537, do CPC/2015, dispõe que "o juiz poderá, de ofício ou a requerimento, modificar o valor ou a periodicidade da multa vincenda ou excluí-la, caso verifique que: (...)"2.


Em 07 de abril de 2021, a Corte Especial do STJ, ao julgar o EARESP 650.536/RJ, decidiu que a multa do art. 537, do CPC/2015, pode ser modificada, sim, mesmo depois do trânsito em julgado da decisão que a fixou, em fase de cumprimento de sentença. Confira-se, a propósito, a ementa do acórdão publicada em 03 de agosto do mesmo ano:


"PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. CABIMENTO. MÉRITO ANALISADO. VALOR ACUMULADO DAS ASTREINTES. REVISÃO A QUALQUER TEMPO. POSSIBILIDADE. CLÁUSULA REBUS SIC STANTIBUS. AUSÊNCIA DE PRECLUSÃO OU FORMAÇÃO DE COISA JULGADA. EXORBITÂNCIA CONFIGURADA. REVISÃO. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA CONHECIDOS E PROVIDOS.


1. É dispensável a exata similitude fática entre os acórdãos paragonados, em se tratando de embargos de divergência que tragam debate acerca de interpretação de regra de direito processual, bastando o indispensável dissenso a respeito da solução da mesma questão de mérito de natureza processual controvertida.


2. O valor das astreintes, previstas no art. 461, caput e §§ 1º a 6º, do Código de Processo Civil de 1973, correspondente aos arts. 497, caput, 499, 500, 536, caput e § 1º, e 537, § 1º, do Código de Processo Civil de 2015, pode ser revisto a qualquer tempo (CPC/1973, art. 461, § 6º; CPC/2015, art. 537, § 1º), pois é estabelecido sob a cláusula rebus sic stantibus, e não enseja preclusão ou formação de coisa julgada.


3. Assim, sempre que o valor acumulado da multa devida à parte destinatária tornar-se irrisório ou exorbitante ou desnecessário, poderá o órgão julgador modificá-lo, até mesmo de ofício, adequando-o a patamar condizente com a finalidade da medida no caso concreto, ainda que sobre a quantia estabelecida já tenha havido explícita manifestação, mesmo que o feito esteja em fase de execução ou cumprimento de sentença.


4. Embargos de divergência conhecidos e providos, para reduzir o valor total das astreintes, restabelecendo-o conforme fixado pelo d. Juízo singular. (EAREsp 650.536/RJ, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, CORTE ESPECIAL, julgado em 07/04/2021, DJe 03/08/2021, grifos nossos)".


Sem conhecer o acórdão integralmente ele já foi aplaudido e agora os elogios devem ser reiterados. Ao que tudo indica, o entendimento está bem alinhado à segura lição de Cassio Scarpinella Bueno, para quem:


"Assim, de forma bem direta, a multa é arbitrada com a expectativa de que seja suficiente e compatível para obter do executado o fazer ou não fazer desejado pelo exequente em prazo razoável (art. 537, caput). Na exata medida em que ela não se mostre capaz de levar àquele resultado ou próximo a ele ('tutela específica ou resultado prático equivalente', respectivamente), não há motivo para entender que a multa incida de maneira estática indeterminadamente. Ela deve ser majorada ou alterada sua periodicidade para o atingimento daquela finalidade. Se, mesmo assim, o direito do exequente não for satisfeito, o caso é de adoção de outras medidas de apoio em substituição à multa para, ainda assim, (tentar) perseguir a tutela específica ou quando menos o resultado prático equivalente. Na impossibilidade (ou se esta for a vontade do exequente), a solução reside na conversão da obrigação da obrigação em perdas e danos"3.


Em outras palavras, não apenas o comportamento do executado deve ser levado em consideração para modificação do valor da multa, mas também o comportamento do exequente. Este último não pode aguardar por tempo indefinido o início da cobrança dos valores relativos à multa que o favoreçam sem tomar providências que lhe cabem para a satisfação do seu direito. Tal multa tem natureza coercitiva e não tem o objetivo de enriquecimento sem causa.


Com efeito, o comportamento do exequente (e não só o do devedor) deve ser também levado em consideração para a modificação da multa, conforme consta do acórdão sob comento:


"(...) Deixa, porém, data venia, de sopesar o comportamento do credor da multa. Daquele que, muitas e muitas vezes, por astúcia, de forma nada ingênua, finge quedar-se conformado com o comportamento meramente desidioso do devedor, frequentemente uma grande corporação, dotada de complexa estrutura administrativa, focada na difícil competição que enfrenta no ambiente econômico de sua atividade-fim. Fica o credor da multa aguardando o momento em que suficientemente acumulada a fortuna que anteviu alcançar, desde o momento inicial em que fixada a astreinte, para só então ressurgir suplicante e comovente diante do julgador, denunciando o descumprimento da ordem e, naturalmente, deduzindo a cândida pretensão executiva do milionário valor acumulado. Na realidade, desde o início se desinteressou pelo objeto da ação e passou a aguardar outro alcance, muito mais vantajoso. Nesse contexto, longe de cumprir o legítimo papel coercitivo para o qual foi concebida, a multa serviu de ilegítimo meio para desvirtuar o bem da vida buscado pelo autor da ação, tomando o lugar daquele (do bem) e tornando-se o verdadeiro novo alvo dos interesses do credor. O aparente reiterado descumprimento da obrigação, foi, então, na realidade, gradativamente desejado e construído pela sagacidade do credor e ensejado pela negligência inconsciente do devedor".


Assim, apesar de a interpretação literal do § 1º do art. 537, do CPC/2015, indicar que somente poderiam ser alterados os valores das multas vincendas, a Corte Especial do STJ, a quem cabe uniformizar a interpretação desse dispositivo, acabou por decidir que os valores das multas vencidas também podem e devem ser alterados a qualquer momento, desde que se mostrem desproporcionais e levem ao enriquecimento sem causa do credor. Portanto, se o exequente perceber que a técnica executiva da multa é incapaz de exercer a coerção necessária sobre o devedor para que ele cumpra uma obrigação de fazer, não fazer ou de entregar coisa, e ainda, se verificar que sequer conseguirá o resultado prático equivalente ao adimplemento da obrigação com a aplicação da multa, deve ser buscada uma outra técnica executiva, de ofício ou a requerimento do credor. De nada adiantará ao credor ficar aguardando estaticamente o acúmulo do valor da multa na expectativa de enriquecimento sem esforço.


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