Nova Lei do Superendividamento

 Foi publicada, no início deste mês de julho, a Lei 14.181/2021, já batizada de “Lei do Superendividamento”. Nos termos da nova lei, superendividamento é “a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação”. A lei autoriza o consumidor superendividado a requerer perante o Poder Judiciário ou determinados órgãos públicos a instauração de um “processo de repactuação de dívidas”, em que se realizará audiência conciliatória, na qual “o consumidor apresentará proposta de plano de pagamento com prazo máximo de 5 (cinco) anos, preservados o mínimo existencial, nos termos da regulamentação, e as garantias e as formas de pagamento originalmente pactuadas” (novo art. 104-A do CD

Alcançando-se a conciliação com qualquer dos credores, a sentença judicial homologará o acordo, descrevendo o plano consensual de pagamento da dívida, que contemplará, entre outros aspectos, medidas de dilação dos prazos para pagamento e redução dos encargos da dívida (juros). Os efeitos do plano consensual ficarão condicionados “à abstenção, pelo consumidor, de condutas que importem no agravamento de sua situação de superendividamento”.

Se, por outro lado, não houver conciliação, a Lei 14.181/2021 faculta ao consumidor superendividado pleitear a abertura de um “processo por superendividamento para revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas remanescentes”, com vistas à emissão de um “plano judicial compulsório”, que abarcará “todos os credores cujos créditos não tenham integrado o acordo porventura celebrado” (novo art. 104-B do CDC). Neste caso, os credores precisarão expor “as razões da negativa de aceder ao plano voluntário ou de renegociar” as dívidas do superendividado. O plano judicial compulsório estipulará “medidas de temporização ou de atenuação dos encargos”, mas assegurará aos credores, no mínimo, “o valor do principal devido, corrigido monetariamente por índices oficiais de preço”, a ser liquidado em, no máximo, 5 (cinco) anos contados do pagamento previsto no plano consensual de pagamento que resulte de eventual conciliação.

A nova lei 14.181/2021 traz, como se vê, forte incentivo à repactuação das dívidas do consumidor em estado de superendividamento e prevê, até mesmo, a possibilidade de sua imposição pela via judicial.

Há quem torça o nariz para a novidade, argumentando que isso tudo só reforça o fato de que “o Brasil é um país de devedores”. Qualquer mitigação aos direitos dos credores significaria, nessa linha, um desestímulo ao cumprimento pontual dos débitos, funcionando como uma espécie de carta branca para o “calote”. A etimologia da expressão “calote” é controvertida: há quem sustente que a origem do termo é francesa e está ligada ao jogo de dominó (em que a expressão “cullotte” designa as pedras que os jogadores não puderam colocar em jogo), mas sua origem mais provável é a palavra portuguesa “calo”, que designava a “fatia de queijo ou de melão que o vendedor ofertava nas feiras ao comprador, para que este experimentasse o sabor. Se um aproveitador, zombando do vendedor, comia e não pagava, dava calote” (Deonísio da Silva, De onde vêm as palavras, 14ª ed., p. 155).

De um modo ou de outro, o calote não é brasileiro de origem e, se o Brasil se tornou um país com elevado número de inadimplentes, parece evidente que este dado não pode ser dissociado das altas taxas de desemprego em nosso país e das sucessivas crises econômicas que atingem, de tempos em tempos, a capacidade de pagamento dos cidadãos brasileiros.

Também desempenha algum papel nesse cenário a maneira como o crédito é concedido entre nós. Se a inadimplência é frequentemente atribuída por economistas à falta de planejamento ou educação financeira, não se pode tratar com indiferença a proliferação recente de instrumentos mecânicos voltados à oferta massiva de financiamentos — instrumentos que vão desde os conhecidos pop-ups, que oferecem “empréstimos a um só clique de você” em sites e aplicativos de toda sorte, até as chamadas telefônicas em série, que, advindas dos números mais diversos e nos horários mais sorrateiros, nos conectam a vozes robóticas ansiosas por conceder crédito para “você que quer comprar um carro novo ou usado”, que “quer dar uma joia ao seu amor no dia dos namorados” ou até mesmo para quem deseje simplesmente crédito “fácil, sem mais perguntas”. A facilitação no acesso ao crédito, tão bem-vinda, não pode ser confundida com a concessão irresponsável ou desinformada de crédito.

Esta foi também uma preocupação da Lei 14.181/2021, que proibiu, na oferta crédito ao consumidor, as práticas de “ocultar ou dificultar a compreensão sobre os ônus e os riscos da contratação do crédito ou da venda a prazo” e “assediar ou pressionar o consumidor para contratar o fornecimento de produto, serviço ou crédito, principalmente se se tratar de consumidor idoso, analfabeto, doente ou em estado de vulnerabilidade agravada ou se a contratação envolver prêmio”, entre outros comportamentos considerados abusivos. A nova legislação também impôs ao fornecedor de crédito, bem como ao intermediário, deveres específicos de conduta, tais como “informar e esclarecer adequadamente o consumidor, considerada sua idade, sobre a natureza e a modalidade do crédito oferecido, sobre todos os custos incidentes” e sobre “as consequências genéricas e específicas do inadimplemento”, além de “avaliar, de forma responsável, as condições de crédito do consumidor, mediante análise das informações disponíveis em bancos de dados de proteção ao crédito” (novos arts. 54-C, III e IV, e 54-D, I e II, do CDC).

A violação a qualquer desses comandos poderá gerar não apenas o dever de indenizar o consumidor por danos patrimoniais e morais, mas também “poderá acarretar judicialmente a redução dos juros, dos encargos ou de qualquer acréscimo ao principal e a dilação do prazo de pagamento previsto no contrato original, conforme a gravidade da conduta do fornecedor e as possibilidades financeiras do consumidor”, entre outras sanções. Alguns dirão que, com essas medidas, a Lei 14.181/2021 está invertendo o jogo, ao lançar o ônus da inadimplência sobre o credor, e não sobre o devedor. Não se deve ver aí, contudo, uma inversão, mas uma distribuição mais equilibrada das responsabilidades. A tradição jurídica romano-germânica nos legou um modelo punitivo, em que o devedor é tratado como ofensor e o credor como vítima, mas o enredo nem sempre se desenvolve dessa forma, como se vê especialmente em casos de crédito consignado a pessoas idosas ou em estado de vulnerabilidade.

Neste particular, é curioso notar que que toda essa mitigação no tratamento do devedor insolvente, trazida pela Lei 14.181/2021 em relação ao consumidor pessoa física (natural), já existe desde 2005 para as sociedades empresárias, quando foram introduzidos na ordem jurídica brasileira os institutos da recuperação judicial e extrajudicial de empresas. E, não raro, invoca-se, para justificar a mitigação dos direitos dos credores no campo empresarial, os numerosos empregos gerados pela atividade empresarial. Quando se trata, contudo, do endividamento do próprio empregado, a resposta do direito brasileiro continuava sendo a disciplina rigorosa e incapacitante da insolvência civil, centrada sobre o fatiamento de seus bens, sem que lhe fosse concedido acesso a instrumentos análogos à recuperação das empresas. A Lei 14.181/2021 vem, de certo modo, corrigir essa distorção, passando simplesmente a fornecer ao consumidor pessoa natural aquilo com que as sociedades empresárias já contavam. Poderia até ter ido além o legislador, não se limitando às dívidas de consumo, pois não raro a pessoa natural enfrenta dificuldades econômicas com dívidas de outra natureza, como, por exemplo, as dívidas locatícias (que têm gerado tantas disputas judiciais durante a pandemia). A melhor doutrina sustenta que todas as dívidas deveriam ser tomadas em consideração para assegurar que cada credor “receberá o que, de fato, é possível receber à luz da capacidade financeira de devedor” (Daniel Bucar, Superendividamento, Ed. Saraiva, 2017, pp. 115-116). É, de qualquer modo, inegável que a Lei 14.181/2021 representa um primeiro passo importante rumo a um regramento mais uniforme da insolvência, que não acabe por tratar as empresas de modo mais generoso do que as pessoas humanas que as compõem.

Por todas essas razões, não parece que a Lei 14.181/2021 vá produzir o aumento da fatia de queijo ou melão, da qual se nutre o aproveitador. Bem ao contrário, a nova lei expressamente exclui de sua proteção os devedores que contraem dívidas “mediante fraude ou má-fé”, assim entendidas as dívidas que “sejam oriundas de contratos celebrados dolosamente com o propósito de não realizar o pagamento ou decorram da aquisição ou contratação de produtos e serviços de luxo de alto valor” (novo art. 54-A, §3º, do CDC). Ao introduzir uma via conciliatória e uma via judicial para a repactuação de dívidas, a nova lei talvez acabe, isso sim, por incentivar uma efetiva recuperação econômica do devedor que, mesmo agindo de boa-fé, acabou por se tornar insolvente em virtude de insucessos econômicos ou circunstâncias que escaparam ao seu controle. Permitir que esse devedor retorne mais prontamente ao mercado talvez produza ganhos para a economia como um todo, como sustentam os defensores do fresh start norte-americano. Tudo sem deixar nenhuma peça fora do jogo.

*Anderson Schreiber é Professor Titular de Direito Civil da UERJ e Professor da Fundação Getúlio Vargas

https://blogs.oglobo.globo.com/fumus-boni-iuris/post/anderson-schreiber-nova-lei-do-superendividamento.html

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