A dispensa de inventário e o pagamento direto (parte 2), por Carlos E. Elias de Oliveira

 Vamos prosseguir no tratamento de repercussões práticas nas hipóteses de pagamento direto. Na semana passada, havíamos cuidado de alguns aspectos iniciais.

4. A tutela da meação do cônjuge
A morte de uma pessoa, além de gerar efeitos sucessórios, também representa o fim do casamento (a morte é metaforicamente um "divórcio celestial") e, por isso, à semelhança do divórcio, importa na partilha de bens por conta do regime de bens à luz do Direito de Família.

No caso de verbas trabalhistas e tributárias, deve-se levar em conta a data do fato gerador de cada uma delas para se definir quais bens se comunicam em razão do regime de bens. Assim, se, durante o casamento, o empregador deixou de pagar vários salários de um empregado casado sob o regime da comunhão parcial de bens, isso significa que metade desses créditos trabalhistas pertencem à esposa do empregado por conta do regime de bens. O fato de o pagamento dessas verbas trabalhistas ocorrer somente após o fim do casamento é irrelevante: metade delas pertence à esposa do empregado, ou seja, é a meação dela (STJ, REsp 1024169/RS, 3ª Turma, relatora Ministra Nancy Andrighi, DJe 28/04/2010).

Diante disso, indaga-se: a Lei nº 6.858/1980 permite que o dependente cadastrado no competente órgão público previdenciário ou estatutário receba integralmente as verbas trabalhistas, tributárias e de investimento devidas pelo de cujus, ainda que metade delas pertençam, por meação, ao ex-cônjuge do falecido?

Entendemos que não, porque a referida lei não pode violar o direito de propriedade alheio. Ela recai apenas sobre as verbas trabalhistas, tributárias e de investimento que pertenciam efetivamente ao falecido.

Se o dependente levantar integralmente o valor, ele deverá, depois, em ação própria a ser movida pelo ex-cônjuge, repassar-lhe a meação.

Do ponto de vista operacional, se essas verbas estiverem judicializadas, o juiz deverá ser sensível a isso e, por isso, se o ex-cônjuge reivindicar sua meação mediante comprovação, o magistrado deverá respeitar essa meação e, assim, salvar a meação dos valores que serão objeto de “pagamento direto” ao dependente cadastrado no INSS (ou em pertinente órgão estatutário).

5. O direito dos demais herdeiros não dependentes no INSS ou no competente órgão estatutário
Questão tormentosa é saber a seguinte: a Lei nº 6.858/1980 transfere ou não a titularidade das verbas trabalhistas, tributárias ou de investimento exclusivamente aos dependentes cadastrados no INSS ou no pertinente órgão estatutário, excluindo os demais herdeiros da partilha desses valores?

Um exemplo pode ilustrar a pergunta.

Suponha que João tenha ganhado uma reclamação trabalhista e esteja para receber R$ 1 milhão a título de verba trabalhista. João tem dois filhos: um menor de 21 anos (o qual está devidamente cadastrado como dependente de João perante o INSS) e outro com idade superior.

Indaga-se: se João morrer, o filho menor de 21 anos poderia pedir ao juiz trabalhista que lhe pague, com exclusividade, a quantia de 1 milhão de reais? Se sim, o seu irmão poderia, em outro feito judicial na Justiça Estadual (quiçá no próprio processo de inventário), exigir que esse irmão mais novo repasse-lhe 500 mil reais ou que, no mínimo, esses 500 mil reais sejam compensados na partilha dos demais bens de João?

Há dois entendimentos em confronto.

O primeiro é o de que os artigos 1º e 2º da Lei nº 6.858/1980 estabelecem uma ordem de vocação hereditária específica (diversa da prevista no artigo 1.829 do CC), em que os filhos dependentes perante o INSS ou o pertinente órgão público excluem os demais filhos. Sob essa ótica, o filho mais novo embolsará o valor de R$ 1 milhão e, ainda por cima, poderá reivindicar metade dos demais bens deixados por seu pai no processo de inventário em que concorrerá com seu irmão mais velho.

O segundo é o de que os referidos dispositivos, no particular, são regras de natureza processual e, por isso, apenas objetivam livrar o dependente cadastrado perante o INSS ou o órgão público pertinente da burocracia e da morosidade que a exigência de processo de inventário ou de arrolamento imporia.

Preferimos essa segunda interpretação, pois a finalidade do referido dispositivo nos parece ser a de impedir que os dependentes previdenciários ou estatutários do de cujus não tenham de enfrentar burocracias e longos anos para receberem o seu quinhão sobre as verbas trabalhistas, tributárias e de investimento do de cujus. A finalidade é apenas processual: dispensar a realização de procedimentos de inventário. Não há finalidade de direito material nesse ponto: a Lei nº 6.858/1980 não pretende alterar a ordem de vocação hereditária prevista no artigo 1.829 do CC.

Por isso, entendemos que, se, no exemplo acima, o filho mais novo levantar o valor de R$ 1 milhão perante a Justiça Trabalhista, o seu irmão poderá exigir dele R$ 500 mil ou, se houver outros bens do de cujus, exigir que essa quantia seja compensada na partilha desses outros bens.

Entendimento contrário nos faria chegar ao absurdo de concluir que a atribuição patrimonial seria diferente por uma questão meramente cronológica. Explica-se. No exemplo acima, se o juiz trabalhista tivesse transferido o valor de R$ 1 milhão para João um dia antes da sua morte, esse dinheiro iria ser partilhado, pro rata, entre os dois filhos no procedimento de inventário. Todavia, se esse pagamento estivesse pendente à data da morte de João, o seu filho mais novo poderia, sozinho, embolsar o valor de R$ 1 milhão e deixar o seu irmão a ver navios, sem um centavo daquele valor. De fato, como lembrava Teixeira de Freitas — citando brocardos latinos clássicos listados por Simão Vaz Barbosa Lusitano — "interpretação se deve fazer, que não resulte absurdo" (interpretatio facienda est, ut ne sequatur absurdum)[1].

Por fim, é preciso repelir alegações de índole humanitária em sentido contrário, pois, para efeito de manter o sustento do dependente cadastrado no INSS ou no pertinente órgão estatutário, há benefícios previdenciários específicos para tanto, os quais sequer são considerados herança, a exemplo da pensão por morte. Não é esse, ao menos de modo primário, o papel dos créditos especiais listados na Lei nº 6.858/1980.

O STJ, tangenciando o caso ora enfocado, acena favoravelmente a essa orientação, ao reconhecer que as verbas trabalhistas discutidas em juízo integram o monte a ser repartido entre todos os herdeiros, afastando interpretação do artigo 1º da Lei nº 6.858/1980 que resultasse em conclusão diversa (STJ, AgInt no AREsp 1561551/SP, 4ª Turma, relator ministro Luis Felipe Salomão, DJe 30/06/2020; CC 108.166/PE, 2ª Seção, Rel. Ministro Sidnei Beneti, DJe 30/04/2010; CC 95.176/RS, 2º Seção, Rel. Ministro Fernando Gonçalves, DJe 09/12/2008; REsp 1155832/PB, 4ª Turma, relator ministro Luis Felipe Salomão, relator p/ Acórdão Ministra Maria Isabel Gallotti, DJe 15/08/2014[2]).

6. Reversão dos valores para fundos no caso de falta de herdeiros
No caso de inexistir herdeiros ou dependentes, as verbas trabalhistas, tributárias e de investimento previstas na Lei nº 6.858/1980 se reverterão em favor de Fundos na forma do § 2º do seu artigo 1º e do parágrafo único do seu artigo 2º.

Tais hipóteses representam normas de direito material aptas a afastarem a regra geral da sucessão legítima, segundo a qual os bens de falecido que não deixou herdeiros se revertem ao Poder Público pelo procedimento da herança jacente e vacante na forma dos artigos 1.819 ao 1.823 do CC.

7. Conclusão
Temos que, salvo as hipóteses de ausência de herdeiros (§ 2º do art. 1º e o parágrafo único do artigo 2º da Lei nº 6.858/1980), o "pagamento direto" das verbas trabalhistas, tributárias e de investimento previstas nos arts. 1º e 2º da Lei nº 6.858/1980 decorre de regra de natureza processual e destina-se a afastar apenas o caminho burocrático dos procedimentos de inventário e de arrolamento para que o dependente habilitado levante rapidamente os valores. Não é por outra razão que a previsão de pagamento direto é prevista na legislação processual (artigo 666 do CPC), e não propriamente na legislação de direito material (ou seja, no Código Civil).

Nessa esteira, aquele que receber o "pagamento direto", ainda que em sede de processo judicial específico (como no inventário ou em uma ação de procedimento comum proposta pelo interessado), deverá atentar para a meação do viúvo e para o quinhão hereditário dos demais herdeiros.

A exceção corre à conta das hipóteses em que não houver herdeiro ou dependente na forma do § 2º do artigo 1º e do parágrafo único do artigo 2º da Lei nº 6.858/1980, caso em que os valores se reverterão a fundos em vez de seguir o procedimento de herança jacente e vacante dos artigos 1.819 ao 1.823 do CC.

Nessa ordem de ideias, em termos de classificação, pode-se considerar que o § 2º do artigo 1º e o parágrafo único do artigo 2º da Lei nº 6.858/1980 estabelecem uma sucessão anômala ou irregular apenas para os casos de falta de herdeiros ou de dependentes, afastando a regra das heranças jacente e vacante dos artigos 1.819 e 1.823 do CC. No mais, a referida norma tem efeitos apenas procedimentais e, portanto, não afasta o regime de direito material da sucessão legítima prevista no artigo 1.829 do CC.

[1] FREITAS, Augusto Teixeira. Regras de Direito. São Paulo: Lejus, 2000, p. 122.

[2] Convém, por seu didatismo, a leitura do inteiro teor do voto da Ministra Isabel Gallotti nesse último julgado.

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