A separação de fato por longo período afasta a regra de impedimento da fluência da prescrição entre cônjuges prevista no art. 197, I, do CC/2002 e viabiliza a efetivação da prescrição aquisitiva por usucapião

Sobre o tema, o acórdão do Superior Tribunal de Justiça ficou assim redigido:
CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. USUCAPIÃO ESPECIAL URBANA. PRESCRIÇÃO EXTINTIVA. ESCOAMENTO DO PRAZO PARA DEDUÇÃO DE PRETENSÃO. PRESCRIÇÃO AQUISITIVA. FORMA DE AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE. DISTINÇÕES. CAUSA IMPEDITIVA DE FLUÊNCIA DA PRESCRIÇÃO. APLICABILIDADE ÀS PRESCRIÇÕES EXTINTIVAS E AQUISITIVAS. CONSTÂNCIA DA SOCIEDADE CONJUGAL E FLUÊNCIA DO PRAZO PRESCRICIONAL. CAUSA IMPEDITIVA DA PRESCRIÇÃO QUE CESSA COM A SEPARAÇÃO JUDICIAL, COM O DIVÓRCIO E TAMBÉM COM A SEPARAÇÃO DE FATO POR LONGO PERÍODO. TRATAMENTO ISONÔMICO PARA SITUAÇÕES DEMASIADAMENTE SEMELHANTES. PRESCRIÇÃO AQUISITIVA CONFIGURADA. APURAÇÃO DOS DEMAIS REQUISITOS CONFIGURADORES DA USUCAPIÃO ESPECIAL URBANA. NECESSIDADE DE REJULGAMENTO DA APELAÇÃO.
1- Ação distribuída em 31/07/2014. Recurso especial interposto em 31/03/2017 e atribuído à Relatora em 15/09/2017.
2- O propósito recursal consiste em definir se a separação de fato do casal é suficiente para cessar a causa impeditiva da fluência do prazo prescricional prevista no art. 197, I, do CC/2002, e, assim, para deflagrar o cômputo do prazo para a prescrição aquisitiva do imóvel previsto no art. 1.240 do CC/2002.
3- Duas espécies distintas de prescrição são reguladas pelo CC/2002: a extintiva, relacionada ao escoamento do lapso temporal para que se deduza judicialmente pretensão decorrente de violação de direito (arts. 189 a 206) e a aquisitiva, relacionada a forma de aquisição da propriedade pela usucapião (arts. 1.238 a 1.244). Precedente.
4- A causa impeditiva de fluência do prazo prescricional prevista no art. 197, I, do CC/2002, conquanto topologicamente inserida no capítulo da prescrição extintiva, também se aplica às prescrições aquisitivas, na forma do art. 1.244 do CC/2002.
5- A constância da sociedade conjugal, exigida para a incidência da causa impeditiva da prescrição extintiva ou aquisitiva (art. 197, I, do CC/2002), cessará não apenas nas hipóteses de divórcio ou de separação judicial, mas também na hipótese de separação de fato por longo período, tendo em vista que igualmente não subsistem, nessa hipótese, as razões de ordem moral que justificam a existência da referida norma. Precedente.
6- Sendo incontroverso o transcurso do lapso temporal quinquenal entre a separação de fato e o ajuizamento da ação de usucapião, mas não tendo havido a apuração, pelas instâncias ordinárias, acerca da presença dos demais pressupostos configuradores da usucapião, impõe-se a devolução do processo para rejulgamento da apelação, afastada a discussão acerca da prescrição aquisitiva.
7- Recurso especial conhecido e provido, para determinar que seja rejulgada a apelação e examinada a eventual presença dos demais requisitos da usucapião especial urbana.
(REsp 1693732/MG, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 05/05/2020, DJe 11/05/2020)
Extrai-se do voto a seguinte manifestação:
O propósito recursal consiste em definir se a separação de fato do casal é suficiente para cessar a causa impeditiva da fluência do prazo prescricional prevista no art. 197, I, do CC⁄2002, e, assim, para deflagrar o cômputo do prazo para a prescrição aquisitiva do imóvel previsto no art. 1.240 do CC⁄2002.
SEPARAÇÃO DE FATO DO CASAL E TERMO INICIAL DA PRESCRIÇÃO AQUISITIVA NA USUCAPIÃO ESPECIAL URBANA. ALEGADA VIOLAÇÃO AOS ARTS. 197, I, E 1.240, CAPUT, DO CC⁄2002.
01) Inicialmente, anote-se que, conquanto a petição inicial possuísse duas diferentes causas de pedir e pedidos (presença dos requisitos da usucapião familiar e, subsidiariamente, dos requisitos da usucapião especial urbana), o recurso especial interposto por CLEIDE ELENA LUZ devolve ao conhecimento desta Corte apenas a questão relacionada à usucapião urbana, fundando-se a pretensão recursal na alegada violação aos seguintes dispositivos legais:
Art. 197. Não corre a prescrição:
I – entre os cônjuges, na constância da sociedade conjugal;
(…)
Art. 1.240. Aquele que possuir, como sua, área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
  • 1oO título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.
  • 2oO direito previsto no parágrafo antecedente não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.
02) Delimitada a matéria objeto de irresignação, sublinhe-se que duas espécies distintas de prescrição são reguladas pelo CC⁄2002: a extintiva, relacionada ao escoamento do lapso temporal para que se deduza judicialmente pretensão decorrente de violação de direito (arts. 189 a 206) e a aquisitiva, relacionada a forma de aquisição da propriedade pela usucapião (arts. 1.238 a 1.244).
03) Quanto ao ponto, há julgado desta Corte que, embora tenha examinado a questão sob distinto enfoque – possibilidade de reconhecimento de ambas as prescrições de ofício – bem estabeleceu a substancial diferenciação existente entre elas:
  1. No ordenamento jurídico brasileiro, existem duas formas de prescrição: a extintiva e a aquisitiva.
2.1 A prescrição extintiva, prescrição propriamente dita, conduz à perda do direito de ação por seu titular negligente, ao fim de certo lapso de tempo. A prescrição aquisitiva, por sua vez, faz com que um determinado direito seja adquirido pela inércia e pelo lapso temporal, sendo também chamada de usucapião. Ambas têm em comum os elementos tempo e inércia do titular, mas enquanto na primeira eles dão lugar à extinção do direito, na segunda produzem a sua aquisição. A legislação que instituiu o §5º do artigo 219 do Código de Processo Civil não estabeleceu qualquer distinção em relação à espécie de prescrição. Contudo, tal diferenciação é imprescindível sob pena de ocasionar insegurança jurídica, além de violação aos princípios do contraditório e ampla defesa, pois, no processo de usucapião, o direito de defesa assegurado ao confinante é impostergável, eis que lhe propicia oportunidade de questionar os limites oferecidos ao imóvel usucapiendo. O dispositivo constante do art. 219, §5º está intimamente ligado às causas extintivas, conforme expressamente dispõe o art. 220 do CPC: “o disposto no artigo anterior aplica-se a todos os prazos extintivos previstos na lei”, sendo que a simples leitura dos arts. 219 e 220 do CPC demonstra a impropriedade de se pretender projetar os ditames do §5º do art. 219 para as hipóteses de usucapião. Usucapião e prescrição constituem institutos díspares, sendo inadequada a aplicação da disciplina de um deles frente ao outro, vez que a expressão prescrição aquisitiva tem vínculos mais íntimos a fundamentos fáticos⁄históricos do que a contornos meramente temporais.
2.2 Na prescrição aquisitiva, ou usucapião, é indispensável que o postulante alegue seu direito, quer por via de ação própria, quer por exceção de domínio, nos termos da súmula 237⁄STF, “o usucapião pode ser arguido em defesa”, não sendo dado ao magistrado declará-lo de ofício mediante a invocação do art. 219, § 5º, do CPC. O momento para a arguição da prescrição aquisitiva, sob pena de preclusão, é na contestação, uma vez que ante o princípio da igualdade das partes no processo, consoante o art. 128 do CPC, deve o juiz decidir a lide nos limites em que foi proposta, sendo-lhe defeso conhecer de questões não suscitadas a cujo respeito a lei exige a iniciativa da parte. (REsp 1.106.809⁄RS, 4ª Turma, DJe 27⁄04⁄2015).
04) A primeira questão que deve ser examinada neste recurso especial, inclusive antecedentemente à pretensão recursal, é saber se a causa impeditiva da prescrição prevista no art. 197, I, do CC⁄2002, a despeito de se situar, topologicamente, no capítulo das prescrições extintivas, também se aplica à prescrição aquisitiva, ou seja, à usucapião.
05) Nesse contexto, é importante destacar a regra do art. 1.244 do CC⁄2002, in verbis:
Art. 1.244. Estende-se ao possuidor o disposto quanto ao devedor acerca das causas que obstam, suspendem ou interrompem a prescrição, as quais também se aplicam à usucapião.
14) Na hipótese em exame, são fatos incontroversos que a separação de fato do casal ocorreu em 03⁄07⁄2009 e que a ação de usucapião foi ajuizada pela recorrente em 31⁄07⁄2014, razão pela qual é correto afirmar que foi cumprido o requisito temporal quinquenal estabelecido no art. 1.240, caput, do CC⁄2002.
15) Contudo, verifica-se que o acórdão recorrido se limitou a afastar a configuração da usucapião especial urbana ao fundamento de que não teria havido a prescrição aquisitiva, não tendo examinado, todavia, a presença dos demais pressupostos legais previstos no art. 1.240 do CC⁄2002.
16) Diante desse cenário – e considerando, sobretudo, que o afastamento da usucapião familiar se deu por fundamento que somente a ela diz respeito (a saber, a ausência de copropriedade sobre o imóvel usucapiendo) e que não se pode investigar a presença dos demais requisitos da usucapião especial urbana em virtude do óbice da Súmula 7⁄STJ – reconhece-se a existência da violação aos arts. 197, I, e 1.240, caput, ambos do CC⁄2002, para que o recurso de apelação interposto pela recorrente seja rejulgado superando-se a ausência de prescrição aquisitiva.
CONCLUSÃO
17) Forte nessas razões, CONHEÇO e DOU PROVIMENTO ao recurso especial, para, reconhecendo a presença do requisito da prescrição aquisitiva, determinar seja rejulgado o recurso de apelação interposto pela recorrente, a fim de que seja examinada a eventual presença dos demais requisitos da usucapião especial urbana.
STJ RESp 1693732

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