O advogado e sua relação com a testemunha da causa, por José Lucio Munhoz

Não raro, no decorrer da audiência, os juízes se deparam com a “denúncia” de uma das partes, informando que o advogado da parte contrária foi visto conversando com a testemunha que será ouvida em juízo. Mais que isso, a parte fica olhando para o magistrado com a cara de interrogação, como a esperar pelas medidas que o juízo adotará. 
Tendo me deparado muitas vezes com essa situação, na condição de magistrado, sempre respondi que o advogado não só poderia conversar com a testemunha por ele arrolada, como teria a obrigação de fazê-lo, inclusive para melhor conduzir o caso. Afinal, o advogado[1] é o primeiro juiz da causa e, para saber se há ou não algum fundamento no pedido que ofertará em juízo, ele deve analisar as questões técnicas legais e, também, os aspectos fáticos que envolverão a demanda.
Diz o Estatuto da OAB, em seu art. 34, XIV, que constitui infração disciplinar “deturpar o teor de dispositivo de lei, de citação doutrinária ou de julgado, bem como de depoimentos, documentos e alegações da parte contrária, para confundir o adversário ou iludir o juiz da causa”. E o inciso XVII do mesmo dispositivo o impede o advogado de “prestar concurso a clientes ou a terceiros para realização de ato contrário à lei ou destinado a fraudá-la”. Mas para que ele tenha consciência de que não está deturpando depoimentos ou alegações, nem mesmo prestando auxílio para fraude à lei, é preciso conhecer melhor dos fatos (não apenas do modo relatado pelo seu cliente).
Só conhecendo adequadamente os fatos o advogado terá condições de “desaconselhar lides temerárias”, como determina o Código de Ética e Disciplina da OAB (art. 2º, parágrafo único, VII). Afinal, para que ele possa velar “pela sua reputação pessoal e profissional” (art. 2º, parágrafo único, III), precisará agir com honestidade, veracidade, lealdade e boa-fé (art. 2º, parágrafo único, II). Mais, portanto, do que uma prerrogativa, se inteirar dos fatos que apresentará em juízo é um dever do advogado que zela pela sua atuação profissional.
Existem ainda as questões relacionadas à suspeição e impedimento (arts. 146 e 147 do CPC), que igualmente se aplicam às testemunhas a serem ouvidas no processo (art. 148, III, do CPC), as quais podem ser contraditadas na forma do art. 457, § 1º, do CPC. E se o advogado é quem deve intimar a testemunha para comparecer em juízo, sob pena de condução coercitiva e despesas pelo adiamento da audiência (art. 455, §§ 1º e 5º, do CPC), o mínimo que se espera é que ele saiba adequadamente da importância daquele depoimento para o desenrolar da ação, bem como dos possíveis impedimentos a respeito da oitiva.
Mas esse dever, por certo, salvo circunstâncias especiais, deve ser exercido durante a prospecção da ação que o advogado patrocinará ou durante a elaboração da defesa, não em minutos antes da audiência do processo para a qual ofertou seus arrazoados e onde arrolou a testemunha. Não é digno de profissionalismo procurar saber dos fatos do processo minutos antes do início da audiência, ainda que apenas contratado “para o ato”. Tal proceder revela amadorismo e descuido com a causa, com o cliente, com a sua reputação e da classe que representa.
Por outro lado, é normal que as testemunhas cheguem ao Fórum receosas, desconhecendo como se portar. Assim, cabe ao advogado orientar a testemunha, inclusive para não ocasionar a indelicadeza de permitir que ela, por desconhecimento, se coloque em situação pública de constrangimento. Explicar que ela deve ficar calma, responder apenas ao juiz e se limitar ao que lhe for perguntado, que deverá responder com respeito, honestidade e sem esconder a verdade (sob as penas do falso testemunho – art. 342 do Código Penal), ter em mãos o seu documento de identidade, que não deve usar boné ou chiclete, etc. Tais orientações, antes de qualquer falta ética por parte do advogado, é um ato de cuidado para com o outro, que deve ser incentivado, não coibido.
Assim, como juiz, esclarecia as partes dessas circunstâncias, e para que não restasse qualquer dúvida sobre a lisura do depoimento, reforçava para a testemunha as graves consequências de falsear a verdade. O magistrado deve ter a sensibilidade de, em situação como essa, preservar a honorabilidade do advogado e não adotar nenhuma medida que possa desmerecer a sua reputação. Deve ainda reforçar que a busca pela verdade passa pelo tratamento ético entre as partes e pelo compromisso da testemunha em apontar apenas os fatos que de fato presenciou.
Se é verdade que o advogado pode entrevistar a testemunha, também é verdade que cuidados devem ser observados, para que aspectos éticos não acabem sendo violados. Quais seriam eles?
Desde as tratativas preliminares com o cliente (para o início ou contestação de uma ação), o advogado deve discutir sobre os fatos e circunstâncias do caso, de modo a estabelecer da necessidade da oitiva de testemunhas, sem prejuízo da reavaliação necessária após a oferta da contestação, quando os fatos incontroversos ou confessados restarão presumidamente verdadeiros (arts. 341 e 374, I a IV, ambos do CPC), sendo desnecessárias testemunhas quanto a eles (salvo eventual contraprova, se for o caso).
As possíveis testemunhas devem ser informadas das razões da entrevista, devendo o advogado estar atento aos limites do sigilo que o caso possa vir a apresentar ou da privacidade ou confidencialidade exigida por seu cliente e demais pessoas envolvidas. Deve dar oportunidade para a testemunha tirar dúvidas sobre a entrevista e esclarecer os episódios que deverão ser apresentados em juízo, questionando-a sobre os fatos de seu conhecimento em relação a eles, de modo a formar a sua convicção sobre as teses e argumentos. A possível testemunha deve, ainda, ser informada dos riscos penal e civil que sofrerá, na hipótese de falsear a verdade em juízo.
Não deve o advogado sugerir respostas e muito menos solicitar a alteração da verdade. Além disso, não poderá entrevistar a testemunha na frente de outras do mesmo caso, nem promover um “debate” coletivo entre elas, ante a vedação expressa do art. 456 do CPC. Essas condutas caracterizam má-fé processual, pode gerar a anulação do depoimento, além de constituir infração penal e ética (art. 2º, parágrafo único, VIII, c, do Código de Ética). O advogado realiza um trabalho de investigação em prol dos elementos da causa que patrocinará e, nesse sentido, deve buscar extrair da testemunha o relato sobre os fatos de interesse para o processo, inclusive podendo “confrontá-la” com os possíveis e imaginados questionamentos que advirão da parte oposta. A testemunha deve, ainda, ter garantido que o seu relato será mantido sob o sigilo profissional do advogado (art. 35 do Código de Ética) e que apenas situações especiais podem autorizar o uso de tais elementos fora do objetivo do processo (art. 37 do Código de Ética). Para garantir que sua conduta foi profissional, gravar a entrevista seria um fator de proteção do próprio advogado.
Nenhuma pessoa, no entanto, é obrigada a comparecer à entrevista ou a responder aos questionamentos. Ocorrendo tal negativa, o advogado deverá, diante dos demais elementos, discutir com seu cliente da viabilidade ou não de arrolar aquela testemunha (preferencialmente documentando essa decisão, ainda que por e-mail). De todo modo, o advogado é quem detém a competência para imprimir à ação os rumos que lhe pareçam mais adequados, não se subordinando à vontade do cliente, o qual, no entanto, deve ser esclarecido da estratégia traçada (art. 11 do Código de Ética). Em caso de grave divergência, capaz de afetar a relação de confiança com o cliente, o patrono deve esclarecer tal ponto com o seu constituinte e, caso pressinta que a confiança não será restabelecida, deve até mesmo substabelecer ou renunciar ao mandato (art. 10 do Código de Ética). 
Outro aspecto que resulta do estudo necessário da causa é a proibição do advogado entabular qualquer relação com a outra parte do processo sem autorização do seu cliente ou do patrono que que a represente, caso esse dado seja de seu conhecimento (art. 2º, parágrafo único, VIII, d, do Código de Ética). Mesmo na busca de informações ou documentos para o caso, deve o advogado obter a autorização do outro patrono e, caso negativa, poderá notificar extrajudicialmente a parte ou adotar a medida judicial cabível visando a apresentação deles.
No sistema americano esse contato é denominado como “ex parte interview”, havendo a mesma proibição na Regra Modelo de Conduta Profissional da Associação dos Advogados Americanos (American BAR Association – ABA), em seu item 4,2, que estabelece: 
Ao representar um cliente, um advogado não deve se comunicar sobre o objeto da representação com uma pessoa que ele sabe ser representada por outro advogado naquele tema, a menos que o advogado tenha o consentimento do outro advogado ou esteja autorizado por lei ou uma ordem judicial.”[2]
Caso a parte adversa não tenha representação legal, o advogado deve manter certa cautela, de modo a não causar sentimento de temor ou ameaça. Afinal, o advogado deve ser um elemento de elevação da cidadania, agindo com honestidade, lealdade e boa-fé, pois do contrário poderia estar utilizando de influência indevida em favor próprio ou de seu cliente, o que também lhe é vedado (art. 2º, parágrafo único, II e VIII, a, do Código de Ética). [3]
Quando a parte é uma pessoa física e conta com um patrono, é fácil ao advogado da parte contrária conhecer exatamente o limite de sua atuação (que passará, obrigatoriamente, pelo contato com o outro advogado). No entanto, quando é uma pessoa jurídica que conta com advogado, quais indivíduos estariam impedidos de ser contatados pelo ex adverso? Apenas o proprietário, o presidente ou os sócios? Os diretores? Os gerentes? Qualquer empregado ou representante? Esse limite não é de todo tão claro. 
A Associação dos Advogados Americanos esclarece a regra 4.2 com o seguinte comentário: 
No caso de uma organização representada por advogado, esta regra proíbe as comunicações com um integrante da organização que supervisiona, dirige ou consulta regularmente o advogado da organização sobre a matéria ou tem autoridade para obrigar a organização com relação ao tema, ou cujo ato ou omissão em relação a ele pode ser imputado à organização para fins de responsabilidade civil ou criminal. O consentimento do advogado da organização não é necessário para a comunicação com um ex-integrante dela. Se um integrante da organização for representado no assunto por seu próprio advogado, o consentimento desse advogado será suficiente para os fins desta Regra. Ao se comunicar com um atual ou ex-integrante de uma organização, um advogado não deve usar métodos para obter provas que violem os direitos legais da organização.”
Esse esclarecimento da ABA acaba sendo bastante elucidativo dos limites de atuação do advogado em entrevistar integrantes da pessoa jurídica. Estaria impedido o contato com os que mantém direta relação com o advogado da pessoa jurídica, aqueles com autoridade para falar em nome da instituição ou assumir obrigações por ela, e aqueles que são diretamente responsáveis pelos fatos em debate e cujos atos ou omissões possam responsabilizá-la diretamente. Fora dessa limitação, o advogado poderia consultar qualquer empregado ou ex-empregado da pessoa jurídica, sem o aval do patrono desta. Caso tal pessoa tenha advogado particular, daí se aplica a regra geral, que exige o aval de seu patrono para qualquer contato em relação ao tema objeto daquele mandato. 
Pensamos que esses mesmos limites da ABA possam ser estabelecidos em sede de comportamento ético no Brasil, ante os princípios da regulação adotada para a advocacia nacional. Convém lembrar que esse impedimento de entrevistar aquelas pessoas que contam com representação de advogado (ou que estejam em posição na organização que as vincule à representação legal do patrono da instituição), não impede que elas sejam arroladas como testemunha judicial (e para isso, óbvio, desnecessário qualquer aval do advogado adverso). 
Um último ponto, todavia, diz respeito à possibilidade de o advogado entrevistar testemunha arrolada pelo advogado da parte adversa, sem consentimento deste. Embora o tema possa despertar muita controvérsia, antecipamos nossa posição pela impossibilidade desse contato sem o aval do advogado que a arrolou, sob pena de violação de conduta ética. 
Como antes referido, a entrevista de possíveis testemunhas deve, a princípio, ocorrer antes do arrolamento de seus nomes no processo. É um trabalho de pesquisa e de construção do raciocínio legal e fático realizado pelo advogado, que traça sua estratégia e a apresenta nos autos. Se o outro advogado não chegou à mesma testemunha antes do arrolamento ou desprezou a sua importância para o caso, não parece ser ético ir informalmente questioná-la sobre os fatos do processo, quando apresentada como testemunha pela parte contrária. Só poderá solicitar esclarecimentos em juízo, quando do depoimento formal dela, no pleno exercício do direito constitucional ao contraditório. Qualquer contato prévio ou informal com testemunha arrolada pela parte contrária, ademais, poderia caracterizar tentativa de coação ou constrangimento no curso do processo, o que seria de todo indevido. Caberá ao advogado, com seu próprio cliente ou com informes das demais testemunhas por ele contatadas, tentar deduzir sobre os elementos que a testemunha arrolada pelo outro lado poderá apresentar em juízo, e daí estabelecer sua estratégia de ação, sempre com a observância dos princípios éticos, da boa-fé, lealdade e honestidade. Afinal, outra não é a conduta esperada dos nobres representantes da advocacia brasileira.
José Lucio Munhoz é advogado, juiz do trabalho aposentado, doutorando pela Universidade de Strathclyde, pós-graduando em Arbitragem Internacional pela Universidade de Aberdeen, mestre em Direito pela Universidade de Lisboa e vice-presidente da União Ibero-Americana de Juízes.