Impacto do covid-19 nas relações contratuais, por Amanda de Medeiros Zimmermann e Caroline Dalfovo

Estamos em março de 2020 e o que muitos diriam ser impossível ocorreu. Inúmeras medidas vêm sendo tomadas pelas autoridades públicas e aos poucos o Brasil desacelera. Já está claro para todos que os impactos do covid-19 serão significativos para a economia. Não se sabe ao certo, no entanto, a extensão dos danos decorrentes desse cenário, mas é fato que a impossibilidade de cumprir total ou parcialmente as obrigações contratuais preocupam vários empreendedores. Nosso objetivo com o presente artigo é apresentar hipóteses jurídicas que podem funcionar como uma “luz no fim no túnel”. É muito importante que o empreendedor esteja bem amparado juridicamente para a minimização dos possíveis prejuízos. 
Conservação dos negócios jurídicos
O primeiro ponto a ser considerado, é que as relações contratuais são regidas pelo princípio da conservação do negócio jurídico e pelo pacta sunt servanda (do latim, os acordos devem ser cumpridos). Os dois princípios merecem atenção neste momento, de modo que a revisão e a extinção dos vínculos contratuais sejam medidas excepcionais e extremas, a fim de evitar maiores prejuízos. Este é o momento de conversar e negociar com seus fornecedores para que em conjunto encontrem a melhor solução para os impactos financeiros que todos estão sofrendo.
Hipóteses legais para revisão contratual
Em sendo necessárias alterações, deve-se ter em mente a aplicabilidade do princípio rebus sic stantibus, segundo o qual nos contratos comutativos, de trato sucessivo e de execução diferida, ou seja, que se protraem no tempo, está implícita cláusula pela qual a obrigatoriedade do cumprimento do contrato pressupõe inalterabilidade da situação de fato do momento da contratação. Ocorrendo uma modificação por acontecimento extraordinário (imprevisível), que torne excessivamente oneroso para o devedor o seu adimplemento, autoriza-se o pleito de isenção da obrigação, parcial ou totalmente1-2. A partir desse instituto, surgem duas teorias que podem auxiliar os empreendedores na recessão especificamente gerada pelo covid-19: a teoria da imprevisão e a teoria da onerosidade excessiva.
A teoria da imprevisão, prevista no artigo 317 do Código Civil3, assegura que poderá ocorrer correção nos valores das prestações quando sobrevierem motivos imprevisíveis que resultem em manifesta desproporção entre o valor devido e o valor real. Segundo os autores Felipe Quintella e Donizetti, são quatro os requisitos da revisão contratual por meio da teoria da imprevisão: 
a) O contrato precisa ser de execução continuada; 
b) Ao tempo da execução, deve ter ocorrido alguma alteração das circunstâncias fáticas vigentes à época da contratação; 
c) Essa alteração precisa ser inesperada e imprevisível quando da celebração do contrato; e
d) A alteração precisa promover desequilíbrio entre as prestações.
Importante ressaltar que, por força do requisito previsto no item ”c”, os contratos celebrados durante o surto infeccioso do vírus devem prever cláusulas específicas de inadimplemento decorrente da pandemia, pois as partes não poderão alegar ser o covid-19 caso fortuito ou de força maior, tampouco a ocorrência de alteração fática nessa hipótese. Nesse mesmo sentido, pela teoria da onerosidade excessiva, além dos pressupostos da teoria da imprevisão é exigido que a parte demonstre uma situação de grande vantagem para um contratante e, em contrapartida, uma situação de onerosidade excessiva para o outro. Utilizar as teorias descritas possibilita que as relações contratuais se mantenham equilibradas durante a vigência do Contrato e no decorrer da crise ocasionada pelo covid-19. Caso você queira saber mais sobre esse assunto, recomendamos a leitura do artigo de Felipe Quintella, intitulado “A pandemia do coronavírus e as teorias da imprevisão e da onerosidade excessiva“ no blog do GenJurídico4
Aplicação do caso fortuito e da força maior 
Além da aplicabilidade das teorias da imprevisão e da onerosidade excessiva, classificar o advento do covid-19 como caso fortuito e de força maior é uma possibilidade prevista no artigo 393 do Código Civil5, muito embora possa ser arriscada, já que determinadas relações contratuais podem não ter como causa impeditiva a pandemia. O parágrafo único do mesmo artigo6 explica que o caso fortuito ou de força maior ocorre quando os efeitos são impossíveis de evitar ou de impedir. Por exemplo, verifica-se que o impacto negativo do covid-19 se aplica ao empreendedor que possui uma locação comercial em shopping center e, certamente, sofrerá prejuízos atualmente imensuráveis pelos decretos que ordenam o fechamento desses estabelecimentos. Por outro lado, não se duvida que haverá empreendedores que se utilizarão do presente estado de calamidade pública para deliberadamente descumprir e romper contratos por motivos alheios à pandemia. Ou seja, apenas para aproveitar o momento. Caso você queira aprofundar-se nesse assunto, recomendamos a leitura do artigo do Professor Anderson Schreiber, intitulado “Devagar com o andor: Coronavírus e contratos”, disponível no blog da Jusbrasil7
Mínima intervenção estatal e revisão limitada ao caso concreto 
No presente contexto, vale destacar, também, a recente Lei da Liberdade Econômica alterou o artigo 421 do Código Civil8. Agora o texto legal regulamenta que o Estado deve intervir de maneira mínima nas relações contratuais. Além disso, a revisão do Contrato deve ser feita apenas em casos excepcionais e de maneira limitada, ou seja, a depender do caso concreto. Verificadas as circunstâncias decorrentes da situação natural do covid-19, é possível inseri-la nas hipóteses de intervenção. Tal situação pode ser verificada com a excepcionalidade e o efetivo desequilíbrio contratual gerado pela pandemia no objeto do Contrato, não sendo plausível, contudo, apenas por alegações genéricas. 
(In)Aplicabilidade dos encargos moratórios 
Finalmente, deve-se ter em conta de que pode haver divergências quanto à aplicação dos encargos moratórios aos Contratos, tendo em vista que a demora no pagamento das obrigações pode ter como culpa a parte contratante ou a situação causada pelo covid-19. Por este motivo, para a análise da aplicabilidade ou não dos encargos moratórios (como juros e cláusula penal) será necessário verificar se o inadimplemento é culpa do devedor ou se é uma situação pontual diante das dificuldades causadas pela crise ocasionada pelo vírus.
Conclusão
Incertezas jurídicas também são responsáveis por provocar um cenário de ansiedade e dificuldades na economia. Os pontos apresentados podem servir como norte para a tomada de decisões negociais em períodos de instabilidade como o que vivemos. Como destacado anteriormente, a generalização será prejudicial neste momento. É essencial para a superação da crise atual que as relações negociais sejam mantidas e, para isso, um exame minucioso da aplicabilidade dos 5 pontos elencados, em conjunto com o bom-senso e a não-abusividade demonstram-se indispensáveis. Empreendedores são o impulso da economia e, neste momento, devem ser incentivados e motivados a colaborarem com a melhora do cenário econômico do nosso país.         
_____________________________________________________________________
1 COELHO, Fábio Ulhôa. Curso de Direito Civil vol. 3 - Contratos. São Paulo: Saraiva, 2012.
2 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil vol. 3 - Contratos e Atos Unilaterais. São Paulo: Saraiva, 2012.
3 Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.
5 Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.
6 Art. 393. [...] Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.
8 Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato.
Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual.