Nova lei de abuso de autoridade é aprovada em clima de tensão,por Vladimir Passos de Freitas

A Lei 13.869, de 5 de setembro de 2019, entrará em vigor nos próximos dias, em meio a polêmica discussão sobre os seus artigos e reflexos que, deles, decorrerão. Sai do mundo jurídico e entra na história a antiga Lei 4.898, de 5 de dezembro de 1965, editada no regime militar com a finalidade de conter excessos que viessem a cometer os membros das Polícias.
A nova Lei de Abuso de Autoridade é fruto de diversificadas iniciativas, cujo início se deu através dos Projetos de Lei do Senado 280, de 2016, do Senador Renan Calheiros, e 85, de 2017, do Senador Randolfe Rodrigues, relatados pelo Senador Roberto Requião.[i]
Posteriormente, na Câmara dos Deputados, foi reiniciado tomando por base um “projeto de lei de iniciativa popular conhecido como Dez Medidas contra a Corrupção, que prevê também a criminalização do abuso de autoridade cometido por magistrados e membros do Ministério Público (PLC 27/2017)”.[ii]
A partir daí, sob forte polêmica, foi o PL remetido ao Poder Executivo, onde sofreu 36 vetos do Presidente da República, dos quais 18 foram derrubados no Parlamento.[iii] A versão final e definitiva não foi publicada até esta data, porém já causa forte reação nas classes envolvidas, em especial a magistratura.
A polêmica Lei 13.869, com certeza, é fruto do inconformismo de parlamentares com determinadas iniciativas de agentes do Ministério Público e decisões judiciais, bem como com ações policiais.
Em um país que adotou, a partir da Constituição de 1988, a judicialização como regra, fazendo com que o Judiciário assumisse um protagonismo nunca visto na história do Brasil, com um número aproximado de 27 mil magistrados e agentes do Ministério Público em exercício, não é de admirar que surjam problemas.
Na verdade, ninguém tem e provavelmente jamais alguém terá, uma radiografia completa de tudo o que sucede, nas milhares de Varas Judiciais espalhadas existentes. O gigantismo do nosso território não permite esta espécie de controle. Assim, os desgostos ficam por conta da experiência de um na comarca X ou de outro na Vara Federal ou do Trabalho Y ou Z, desgostos estes que, relatados por alguém que se diz vítima de um abuso de autoridade, podem ou não ser verdadeiros.
Mas, se a extensão e a veracidade podem ser postas em dúvida, o aumento dos conflitos entre os atores jurídicos é fato incontroverso. As razões para tanto escapam da área jurídica. Podem ser, entre outras, a queda no nível da educação formal, que leva a discussão sobre pontos controversos a um plano pessoal onde a valentia assume papel relevante, à formação dos profissionais, voltada para a luta e não para a conciliação, o aumento incontrolável do número de advogados e até a dificuldade das novas gerações em assimilarem uma negativa aos seus propósitos.
Pois bem, diante desta nova realidade, surgem as normas punindo fatos tidos como abusivos. Se a necessidade de punir os excessos é indiscutível, não havendo quem possa a ela opor-se, a forma de sancionar-se é discutível, pois os efeitos podem ser contrários ao pretendido. Vejamos.
Alguns dispositivos da nova lei não representam maior impacto nas relações jurídicas. Por exemplo, o artigo 7º afirma que “As responsabilidades civil e administrativa são independentes da criminal, não se podendo mais questionar sobre a existência ou a autoria do fato quando essas questões tenham sido decididas no juízo criminal”. Trata-se de mera reafirmação do que já se encontra nos Códigos Civil e de Processo Penal, portanto, nada mudará.
Examinemos, então, as que interferem, começando pela ação da autoridade policial. Desde logo registre-se que alguns dispositivos foram vetados, como a pretendida criminalização do fato de colocar algemas no preso. Em boa hora o Chefe do Poder Executivo afastou a pretendida criminalização, que levaria à insegurança de todos não apenas no ato de prisão como nas audiências na Justiça.
Outros podem originar insegurança na ação policial e isto tem um preço: a omissão. Quem vê risco na atividade, omite-se, e quem perde é a sociedade. Nesta linha artigo 10 criminaliza “Decretar a condução coercitiva de testemunha ou investigado manifestamente descabida ou sem prévia intimação de comparecimento ao juízo”. Interrogar um acusado é passo inicial na investigação e obtenção de provas. Se a sua condução depender de uma intimação prévia o risco dele evadir-se é grande. É verdade que o tipo fala em condução descabida, mas a simples existência de tipo penal levará a autoridade policial a não agir. Isto pode ser essencial, por exemplo, em um crime de homicídio.
O artigo 21 criminaliza manter, na mesma cela, criança ou adolescente em ambiente inadequado, com 1 a 4 anos de reclusão. Ocorre que, menores adolescentes, não raramente, praticam crimes bárbaros. Como local inadequado é algo subjetivo, mantê-lo em uma cela que não tenha ar condicionado em Teresina, PI, onde é alta a temperatura, será adequado? O tipo penal busca um ideal comum a países como a Finlândia, inexistente no Brasil, e leva insegurança ao sistema penitenciário, inclusive ao juiz.
O Ministério Público pode ser atingido menos diretamente, porque sua posição, regra geral, não é de ordenar. Mas, de qualquer forma, pode ser alcançado pela norma. Por exemplo, quando requerer (ao juiz) ou requisitar (à Polícia) uma medida que se considere abusiva, poderá ser visto como co-autor.
Já o juiz, em dois aspectos, pode ter sua atividade posta em risco evidente. O primeiro é a previsão do artigo 37 quando prevê como fato delituoso, punido com a grave pena de 1 a 4 anos de reclusão, “Decretar, em processo judicial, a indisponibilidade de ativos financeiros em quantia que extrapole exacerbadamente o valor estimado para a satisfação da dívida da parte e, ante a demonstração, pela parte, da excessividade da medida, deixar de corrigi-la”.
Quando se decreta a busca de bens pelo BACENJUD é comum que se alcancem ativos financeiros em contas múltiplas. Trata-se de uma forma essencial para a efetividade da execução e, como é óbvio, é difícil em um primeiro momento saber se a indisponibilidade é suficiente. O próprio exequente pode fornecer dados excessivos ou simplesmente o sistema alcançar múltiplas contas.
Tornar esta medida um fato criminoso, mesmo que a depender de demonstração pela parte, levará os juízes, simplesmente, a indeferir os pedidos de penhora de bens por esta via. Sim, porque sua ação estará sempre colocada em risco e o simples fato de poder sujeitar-se a uma investigação criminal que dirá se ele agiu ou não corretamente, será o suficiente para adotar a posição mais simples: indeferir.
A propósito, mesmo sem a vigência da lei, o juiz da 2ª Vara de Execuções do Distrito Federal já vem negando penhoras.[iv] Isto tende a tornar-se regra e sacrificará os credores de forma significativa.
Finalmente, no artigo 9º, par. único, atribui-se ao juiz o crime de deixar de relaxar prisão manifestamente ilegal, deixar de conceder medida substitutiva ou de deferir liminar em habeas corpus, impondo-lhe pena de 1 a 4 anos de reclusão. Todas estas hipóteses são de apreciação subjetiva ao único e exclusivo critério do juiz, podendo ser supridas por HC ao Tribunal. E mais, elas variam conforme o local e as circunstâncias. Qualquer pessoa com vivência na área sabe que, por vezes, o juiz não pode indeferir uma liminar para evitar uma revolta popular. Isto é comum nos crimes de homicídio no trânsito que, em tese, não justificam a prisão. Pode acontecer também em cidades violentas (por exemplo, zonas de mineração), onde o rigor deve ser maior.
Pois bem, com os novos dispositivos o juiz ficará com receio de manter essas presas, simplesmente colocará em liberdade os autuados em flagrante. Dizem alguns que soa estranho o juiz ter medo da decisão de seus colegas. Esta é uma afirmação maldosa. O juiz não tem medo de ser julgado, simplesmente não quer ser acusado, sujeitar-se a fazer reiteradas defesas de seus atos ao Ministério Público. E mais. Ficará mais servil ao MP, porque dele dependerá constantemente, pois a cada decisão indeferitória em uma Vara Criminal (e são muitas todos os dias), estará sujeito a uma representação do advogado insatisfeito. Um juiz com medo do MP perde a imparcialidade necessária.
Isto não é exercício futurista, já começou a acontecer. Notícia da Revista Eletrônica do Consultor Jurídico, dia 27 passado, informa que “A juíza Pollyanna Cotrim, da Comarca de Garanhuns (PE), citou a Lei de Abuso de Autoridade ao mandar soltar 12 acusados de tráfico de drogas e armas. Ela justificou que sua decisão foi tomada por “imposição” da Lei de Abuso de Autoridade que foi aprovada pelo Congresso Nacional”.[v]
Muito mais há a ser analisado na nova Lei de Abuso de Autoridade. Inclusive boas iniciativas, como a previsão do crime do artigo 24, que visa impedir constrangimento a funcionários de hospital em receber pessoa morta como se estivesse sendo admitida para tratamento. No entanto, alguns dispositivos, em especial os acima citados, podem levar o sistema de Justiça a um estado insustentável. Aguardemos.