É preciso dar destino a bens abandonados, apreendidos ou de falidos, por Vladimir Passos de Freitas

A população brasileira das médias e grandes cidades acostumou-se a ver terrenos com centenas de veículos apodrecendo ao relento, edifícios abandonados com ocupações ilegais, casas antigas com vegetação de porte que ousadamente cresce nos telhados, tudo a mostrar um quadro de descaso e absoluta inabilidade na administração de problemas relacionados com a posse e propriedade de bens.
A situação vai do mero dano estético, enfeando o centro urbano, até ao risco de vida, como ocorreu em 1º de maio de 2018 em São Paulo, no incêndio de edifício de 24 andares localizado no Largo Paissandu, pertencente à União e cedido ao Município, ocupado por pessoas sem teto, muitos dos quais não foram localizados. [1]
Em Curitiba “segundo a Secretaria Municipal de Urbanismo (SMU),133 imóveis abandonados foram notificados no primeiro trimestre de 2018, sendo que 14 deles estavam ocupados clandestinamente. [2] No Recife, notícia de 5 de abril de 2018 dá conta que “os usuários de crack voltaram a fazer dos prédios abandonados e cobertos por tapumes do bairro uma verdadeira cracolândia”. [3]
Mas o que leva a este estado de coisas que a todos revolta, mas cuja solução não costuma ser encontrada? Não há uma resposta única, já que as origens são diversas. Porém, todas têm em comum uma inabilidade no trato da coisa pública. Vejamos as três hipóteses mais comuns:
Casas abandonadas pelos proprietários. Para este problema há solução legal (art. 1.276 do Código Civil de 2002). Em 4 de janeiro de 2009, escrevi nesta coluna:
O dispositivo legal é claro. Atualmente, o dono de imóvel urbano que não esteja na posse de outrem não pode abandoná-lo, sob pena de perdê-lo. E isto sem direito a qualquer indenização, pois não se trata de desapropriação. Assim, o dono tem o dever de ser diligente e conservar o seu bem. Se nele houver construção, deve zelar para que não haja risco de desabamento e até pelo seu aspecto estético. Se for um terreno, deve mantê-lo limpo e não permitir que se transforme em depósito de lixo. Deve, também, evitar águas paradas que contribuam para a proliferação da dengue. [4]
No entanto, ainda que antiga a vigência da lei civil, o fato é que poucas são as iniciativas a respeito. Em Santos, SP, onde a parte central tem imóveis abandonados, o Plano Diretor Municipal, editado em maio deste ano, estabeleceu que sejam cadastrados os imóveis não utilizados, subutilizados, não edificados ou abandonados, promovendo, após, a notificação de seus proprietários para ocupá-los em 90 dias, sob pena de perdimento. [5] Não se olvide que agora é possível, inclusive, haver acordos em caso de desapropriação. [6]
Portanto, para este tipo de problema a lei dá solução. Resta apenas ser aplicada e isto, pelo tempo passado, parece não animar as procuradorias jurídicas dos municípios.
Edifícios inacabados nas cidades. São costumeiramente invadidos por pessoas sem moradia ou dominados por líderes do crime organizado. Tais imóveis, muitas vezes, são fruto da falência da incorporadora e ficam atrelados a ações judiciais intermináveis, onde os credores (créditos fiscais, trabalhistas, etc.) ficam em perpétuo conflito, cujo resultado mais comum é ninguém receber nada.
Edifícios pertencentes ao Poder Público. Por vezes, o Estado adjudica imóveis em pagamento de seu crédito, porém, depois, não lhes dá destino útil. No emaranhado de medidas burocráticas, acabam referidos bens sendo invadidos por terceiros e disto surge situação de risco para os que nele habitam e de deterioração da região em que se encontram. Em Curitiba, maio de 2011, imóvel do INSS, localizado na Av. Mal. Deodoro, foi invadido por cerca de 150 pessoas que reivindicavam seu espaço para moradia. [7]
Áreas vendidas ilegalmente. Não é raro que pessoas que se dizem proprietários ou possuidores de área localizada na periferia das grandes cidades promovam loteamento irregulares, vendendo a pessoas de baixa de renda, muitas dos quais, na maioria das vezes, não têm consciência da má compra. Os falsos empreendedores, posteriormente, desaparecem, deixando os compradores em situação deplorável. Casos deste tipo exigem rigor maior, inclusive prisão preventiva, por tratar-se de dano a uma parcela mais vulnerável da população.
Bens apreendidos em ações penais. Aqui o único lado que tem conseguido avanços significativos. Por décadas, estes bens ficavam a ocupar espaços públicos ou privados mediante aluguel, aguardando o interminável fim das ações penais do nosso ineficiente sistema de Justiça. No entanto, no que toca aos bens apreendidos, móveis e imóveis, por crime de tráfico de drogas, as coisas têm melhorado.
O primeiro passo foi a edição da Medida Provisória 885, de 17 de junho deste ano, que permite a alienação dos bens apreendidos antes do término da ação penal. Além disto, autoriza a venda por preço inferior à avaliação, antes proibida com base em uma quimérica esperança de que surgissem interessados em pagar mais. Resultado: “só de uma quadrilha em Mato Grosso do Sul, a Justiça vendeu casas, carros, e joias avaliadas em mais de R$ 10 milhões. Em todo o Brasil, são quase 80 mil bens apreendidos de traficantes: perto de 30 mil já podem ir à leilão”. [8]
Como se vê, o problema ainda está longe de ter solução, mas pelo menos há iniciativas oportunas da Secretaria Nacional Antidroga – SENAD e conscientização maior da sociedade e do Poder Público.
No entanto, não adianta apontar as deficiências sem indicar possíveis soluções.
Assim, bom é que se pense no seguinte:
a) O Poder Público, seja qual for a esfera de governo, precisa dar soluções ágeis a bens do qual venha a dispor a qualquer título, não se justificando a omissão que gera agravamento. Por exemplo, formalizar a venda para pessoas carentes, através de programas de governo (v.g., Minha casa, minha vida) é uma excelente medida, muito embora complexa.
b) Na venda de bens imóveis é preciso dispensar a irreal exigência de lance igual ou superior a 50% do valor da avaliação, vez que esta é causa de inúmeros adiamentos e consequente agravamento da situação.
c) No caso de bens apreendidos de empresa falida, é imprescindível que os atores processuais (e.g., curadoria da massa falida ou procuradoria da fazenda nacional) busquem solução e não discussão eterna do problema, com recursos intermináveis, que adiam os pagamentos e a solução por anos.
d) É imprescindível que o Poder Judiciário, em especial dos estados, especialize varas na matéria (sem prejuízo de outras matérias), evitando que cada uma decida de uma forma, retirando a uniformidade necessária. O juiz de uma vara especializada será, como é próprio do mundo contemporâneo, um hábil negociador da melhor solução, devendo manter contato com os órgãos da administração pública (p. ex., secretário de urbanismo do município), além dos agentes que atuam em Juízo.
Finalmente, mais do que tudo, é preciso querer resolver os problemas. O Brasil teve uma experiência exitosa neste particular, quando a ministra Eliana Calmon foi Corregedora Nacional de Justiça e carcaças de aviões, que ocupavam os pátios dos aeroportos, foram removidas e alienadas. Pessoas determinadas e com metas claras podem mudar a situação atual, ter sucesso na empreitada. O Brasil agradece.

[4] Vladimir Passos de Freitas, Função social e abandono de imóveis urbano
[6] Lei nº 13.867, de 26/8/2019.