Quatro sugestões para o aperfeiçoamento da prescrição no Direito Civil, por Nelson Rosenvald

O direito civil evoluiu bastante no tocante à compreensão da natureza da prescrição. Há muito restou superada a tese da prescrição como perda da ação (Clóvis Bevilácqua) ou como fenômeno da perda do direito subjetivo pelo credor (Caio Mário). Para um civilista desavisado, ainda prevalece uma terceira teoria, pela qual a prescrição importa na extinção da pretensão do credor, por sua inércia durante certo período fixado em lei. De fato, uma leitura do artigo 191 do Código Civil remete a essa açodada conclusão. Contudo, como já explicaram Barbosa Moreira e Humberto Theodoro Júnior, a prescrição é um fato jurídico que cria uma exceção destinada a neutralizar a eficácia da pretensão e não uma forma de sua extinção. Em outras palavras, a irrupção da prescrição não invalida a pretensão do credor, pois o crédito permanece exigível em face do devedor. O quê a prescrição propicia é o nascimento de um direito potestativo para o devedor: ele possuirá a discricionariedade de invocar um contradireito, pela via da exceção da prescrição. Compete exclusivamente ao demandado decidir se alegará a defesa indireta de mérito (como exceção substancial peremptória), ou se simplesmente renunciará à prescrição consumada, conforme lhe oportuniza o artigo 191 do Código Civil. Se essa for a opção, mesmo após a prescrição o credor verá reconhecida a sua pretensão, com autoridade de coisa julgada material. Em uma singela analogia, podemos dizer que a incidência da prescrição não retira a espada do credor, mas faculta ao devedor o uso de um escudo que neutraliza a eficácia do golpe. Todavia, se o devedor rejeitar o escudo, será atingido pela espada, mesmo que o débito esteja prescrito.

Todavia, podemos ainda avançar para ajustarmos a prescrição ao que de melhor revela a experiência de direito comparado. Trazemos aqui três sugestões. Segue a Primeira: dispõe o art. 192 do CC que “Os prazos de prescrição não podem ser alterados por acordo das partes”. A referida norma é incoerente com a natureza jurídica patrimonial e disponível do modelo da prescrição. Nada haveria de errado se fosse permitido às partes “contratualizar” prazos prescricionais, seja para facilitar a sua incidência (reduzindo-os) ou para torná-la mais difícil de ocorrer (ampliando-os). Certamente, a autonomia privada das partes seria restrita ao campo dos contratos civis negociados e conformada por limites mínimos (v.g. 6 meses) e máximos (v.g. 20 anos) de modulação, a fim de se evitar uma “imprescritibilidade” negocial ou prazos extremamente exíguos em detrimento da satisfação do interesse do credor.

Uma segunda possível iniciativa, seria a de reforçar a segurança jurídica nas hipóteses de aplicação da teoria subjetiva na contagem de prazos prescricionais. Vale dizer, tradicionalmente o legislador aplica a teoria objetiva, pela qual a contagem do prazo prescricional tem início no momento do nascimento da pretensão do credor – seja o momento da violação de um crédito (responsabilidade contratual) ou quando consumado o dano (responsabilidade extracontratual). Contudo, há uma tendência de, em algumas hipóteses, aplicar-se o critério subjetivo da “actio nata”, pelo qual o prazo prescricional se inicia ao tempo em que o titular do direito violado tenha conhecimento de quem é o devedor ou do próprio fato danoso que dará origem à demanda. Assim se dá, ilustrativamente, pelo art. 27 do CDC, na prescrição de 5 anos por acidentes de consumo ou na ação de indenização nas relações de trabalho, cujo termo inicial do prazo prescricional será a data em que o segurado teve ciência inequívoca da incapacidade laboral (Súmula 278 STJ). A adoção da teoria subjetiva nesses casos é consentânea à tutela da boa-fé do titular do direito violado que não se mostrou desidioso, pela real impossibilidade de agir. Contudo, é necessário delimitar os períodos de impedimento do curso de prescrição.  Ou seja, são necessários dois prazos: um prazo razoável (e breve) para que um credor de boa-fé (seja ele o consumidor-vítima ou o trabalhador) possa descobrir a autoria e a extensão do fato danoso; um segundo (e mais longo) prazo, a fim de que exerça a sua pretensão. Só assim impede-se o risco de uma “imprescritibilidade” subjetiva de demandas, pois uma vítima que agisse negligentemente utilizaria a seu favor o argumento de que apenas “ontem” teve a inequívoca ciência de um fato acontecido há mais de trinta anos! Uma boa dica de como aperfeiçoar o sistema se encontra no regime prescricional de vícios redibitórios do art. 445 do Código Civil.

Uma terceira proposta surge em boa hora em razão de celeumas decorrentes da vigência do Estatuto da Pessoa com Deficiência. Sabemos que as pessoas com deficiência, quando curateladas, serão relativamente incapazes (art. 4., III, CC) e não mais absolutamente incapazes, tal como na versão original do Código Civil de 2002. Por conseguinte, a prescrição correrá normalmente contra aquela pessoa que em razão de deficiência psíquica ou intelectual não pode se autodeterminar, apenas restando a ela responsabilizar o seu curador pela desídia em exercer pretensões contra terceiros nos prazos prescricionais legais (art. 195, CC). Todavia, em vários países europeus, além dos prazos legais de suspensão da prescrição, há uma tendência de intervenção legislativa mais suave, mediante a possibilidade de um “adiamento do termo”, no qual o prazo de prescrição corre, mas só se completa após a passagem de um certo período suplementar. Dessa forma, circunstâncias excepcionais como negociações entre as partes sobre o processo, a morte de uma das partes ou a falta de capacidade de uma delas, conduzirão ao adiamento do termo, mesmo fora das hipóteses de suspensão da prescrição taxativamente previstas em lei. A justificativa do adiamento é a máxima do direito comum, “agere non valenti non currit praescriptio”, isto é, a prescrição não corre contra quem não está apto a fazer valer o seu crédito. Em termos gerais, a lei só pode interferir no curso do período prescricional à medida em que seja absolutamente necessário para a proteção do credor.

A quarta e última proposta visa homenagear a diretriz da operabilidade (tão cara a Miguel Reale), evidenciada, ilustrativamente, na demarcação dos prazos prescricionais nos artigos 205 e 206 do Código Civil. Para tanto, no que concerne à dicotomia interrupção/suspensão de prazos prescricionais - que pouco diz em termos de clareza, pois os termos se assemelham em nosso imaginário - seria bom se substituíssemos a clássica “interruptio temporis” pela menos estranha e mais clara expressão “renovação” da prescrição, tal como se fez na recente reforma do BGB. Assim, ficaria claro que, todas as vezes que o credor exterioriza uma conduta objetiva de quem quer receber (v.g. ajuizamento da demanda, protesto de um título), ou o devedor demonstra o interesse de cumprir (v.g., paga parte da dívida ou amortiza os juros), teremos um puro e simples recomeço da contagem.

Por fim, o que trago agora já não é mais uma proposta ao legislador, porém dois pedidos ao leitor: por favor, não utilize mais as expressões “prescrição extintiva” e “prescrição aquisitiva”. Ambas as noções podem ser justificadas por força da tradição, mas não encontram recepção na atualidade. Tão logo se verifique o período de prescrição, o direito do credor não se extinguiu e tampouco a sua pretensão, apenas surge para o devedor o direito potestativo de recusar o cumprimento da prestação. Não há nenhuma razão para um sistema jurídico ser paternalista a ponto de proteger um devedor que quer cumprir uma obrigação. Lado outro, tratar a usucapião como uma espécie de “prescrição aquisitiva” é outro equívoco que remonta às codificações iluministas. A prescrição se localiza no campo obrigacional, como mais um fato jurídico que faculta ao devedor excepcionar a eficácia de um crédito (tal como o pagamento, compensação, novação), sem adentrar no território dos direitos reais. A propriedade não se submete à prescrição em razão de uma longa desídia de seu titular. Inversamente, o que ocorre é que um dos efeitos de uma posse duradoura e inconteste é o de se conferir ao possuidor o direito de propriedade, homenageando-se a aparência de titularidade, estabilizando-se a confiança de terceiros com quem o possuidor se relacionou e imprimindo-se segurança jurídica pela neutralização de conflitos de titularidades. Nada a ver, portanto, com um fato jurídico propiciado pela passagem do tempo, que permite ao devedor neutralizar a pretensão do credor.