Pode-se falar em um Direito Civil pós-moderno? (parte 2), por Venceslau Tavares Costa Filho

Como já foi dito na primeira parte desta coluna, a chamada crise do direito civil guarda relação com a crise do classicismo e do racionalismo; bem como com certo retorno ao romantismo. Como se pode verificar da primeira parte de nossa análise, o neoconstitucionalismo representa uma indiscriminada manifestação de confiança nos “milagres” da Constituição e no Poder Judiciário; um verdadeiro “ato de fé” no constitucionalismo como panacéia universal, posto que: “A crença na constituição e no constitucionalismo não deixa de ser uma espécie de fé: exige que se acredite em coisas que não são direta e imediatamente apreendidas pelos sentidos”.[1]
Entretanto, somos adeptos da chamada hermenêutica da desconfiança, o que nos leva a costumeiramente lançar mão do expediente da desconfiança para levantar o véu em relação “a realidade ‘visível, vivida, imediata’; sempre indagando ‘mas o que é que está por trás disso?’”[2] Tão elevado otimismo do jurista em relação ao direito posto e ao poder judiciário podem ser fruto de um forte engajamento político-ideológico.
Além de nossa falta de confiança quanto a esta visão religiosa do direito, que está longe do refinamento de teóricos contemporâneos do direito natural como Humberto João Carneiro Filho e José Luiz Marques Delgado (na Faculdade de Direito da UFPE) e Victor Sales Pinheiro (na Faculdade de Direito da UFPA); não se pode olvidar que o direito constitucional (como espaço próprio dos direitos fundamentais) – tencionando não se tornar em um “direito de não-liberdade” da ordem jurídica civil – deve enxergar no direito privado um espaço de autodeterminação.[3]
Por outro lado, o retorno ao romantismo no direito privado na atualidade pode ser associado aos reflexos da chamada “pós-modernidade” no direito. São ao menos quatro os elementos característicos da cultura pós-moderna: 1) o pluralismo; 2) a comunicação; 3) a narrativa; e 4) o retorno aos sentimentos.[4]
O pluralismo como algo inerente à cultura pós-moderna pode ser interpretado como uma manifestação diametralmente oposta ao princípio fundamental - expresso em diversos documentos da Organização das Nações Unidas – da igualdade dos homens, sem distinção de sexo, de raça, de cor, de religião; e aos direitos que garantem seja dispensado um tratamento isonômico nos meios social, econômico e comercial.
No entanto, esta oposição não seria real; já que o princípio da igualdade traz consigo a exigência de que situações diversas sejam tratadas de forma diferente.[5] No que respeita ao segundo elemento, a comunicação intercultural é uma característica da cultura “pós-moderna” que se traduz não somente em uma transmissão veloz de dados, mas também na vontade de se comunicar.
Apresentando-se como uma troca de ideias interculturais; comunicar-se neste contexto é integrar-se a uma sociedade global sem fronteiras.[6] A narrativa também é um dos elementos de uma vivência “pós-moderna”, manifestando-se no direito por meio das chamadas “normas narrativas”, as quais não seriam dotadas de obrigatoriedade, caracterizando-se somente por descreverem valores.[7]
As cláusulas gerais – ao serem “preenchidas” por valores insculpidos em outras normas – seriam concretizadas por meio de um recurso às supracitadas normas narrativas. Outro aspecto da “pós-modernidade” seria o retorno aos sentimentos, que se manifestaria no direito por meio da proteção dispensada à identidade cultural, uma expressão destes sentimentos.[8] O retorno aos sentimentos parece também estar evidenciado no atual direito de família brasileiro, com a banalização da invocação do princípio da afetividade; ao ponto de a ConJur haver noticiado que a afetividade deve balizar discussões tais como o destino a ser dado a animais de estimação após separação judicial ou divórcio.[9]
Pode-se identificar este retorno aos sentimentos com a idéia de vivência metafísica em Otto Brusiin, ou seja, um resgate de ”uma vivência humana relevantemente afetiva que alude ao supra-empírico e objetivamente não comprobatório”.[10]
No entanto, apesar dos indícios da presença de tais elementos no contexto do direito civil atual, isto não significa uma aceitação da chamada “pós-modernidade”, dentro ou fora do Direito. Aquilo que tem sido denominado de pós-modernidade nas últimas décadas, situa-se em um contexto de decadência de uma cultura ocidental (e não “da” cultura ocidental) associada à idéia de “perda da estimação fundamental da unidade, que foi própria do espírito grego e também dos clássicos modernos”. [11]
Sendo a modernidade um período fortemente marcado pela hegemonia de uma classe (a Burguesia) e pelo desenvolvimento de culturas burguesas, o atual momento de retorno ao romantismo não pode ser tomado como um marco de superação da modernidade, visto que o romantismo também é uma manifestação cultural burguesa, assim como também o é o classicismo. Embora ainda não se possa falar em uma superação da modernidade, não se pode deixar de reconhecer que: “o contexto é de crise. Crises, porém, existem em todas as épocas e sempre são atravessadas – embora ressurjam”.[12]