Fotografia é arte? Uma 3x4 de alguns problemas jurídico-artísticos, por Inês Virgínia Prado Soares e Marcílio Franca

A fotografia é um sem-fim de paradoxos. O ato fotográfico é capaz de imortalizar o detalhe menos perceptível, eternizar o instante mais efêmero. De tão instigante, mereceu reflexões filosóficas de personalidades como Susan Sontag, Walter Benjamin e Roland Barthes. São inúmeras interseções que a fotografia guarda com o Direito: tanto em um como na outra há uma complexa relação temporal de presente e de passado; nas duas linguagens, ainda, realidade e ficção entrelaçam-se todo o tempo.
Nos últimos tempos, o status artístico da fotografia vem ganhando cada vez mais prestígio com Museus de Fotografia ao redor do mundo e no Brasil. Em 1998, foi inaugurado o Museu da Fotografia Cidade de Curitiba, o primeiro exclusivamente dedicado a esta arte e, desde então, uma referência. Além disso, há coleções de fotografias em museus como o MASP, MIS, Pinacoteca de São Paulo e exposições em centros culturais pelas cidades brasileiras. 2017 trouxe novos ares para os amantes desta arte, com a inauguração do Museu de Fotografia de Fortaleza, com acervo de 2 mil fotos; e da sede do Instituto Moreira Sales (IMS), na Avenida Paulista. Aliás, o IMS merece especial destaque, com eventos regulares sobre o tema fotográfico e um acervo de cerca de 2 milhões de imagens, dos séculos XIX, XX e XXI.
Além de lugares dedicados a expor as fotografias, há também um esforço para formalizar instrumentos que protejam essa arte como patrimônio cultural coletivo e o oficio de fotografar como direito cultural e liberdade de expressão artística. Em maio de 2018, foi lançado o primeiro Plano Estratégico para Desenvolvimento da Fotografia na Itália (2018-2022), pelo Ministério dos Bens e das Atividades Culturais e Turismo da Itália (o mítico Mibact). Desde 1992, os acervos fotográficos também encontram abrigo no programa Memória do Mundo, da Unesco, com possibilidade de integrar o patrimônio documental da humanidade.
Destacamos, nessa categoria, a “Coleção de fotografias latino-americanas do século XIX”, da Venezuela, com 8 mil fotos do século XIX, um acervo histórico que representa a vida rural e o desenvolvimento urbano, a paisagem, portos e personalidades nos países da América Latina e do Caribe, registrada como Memória do Mundo em 1997; a Coleção do Imperador: fotografia estrangeira e brasileira do século XIX, do Brasil, composta por 21.742, do Brasil, registrada em 2003; e a produção fotográfica do mexicano Manuel Álvarez Bravo (1902-2002), representativa do século XX, apresentada pelo México e registrada em 2017.
Na terra de Araquém de Alcântara, Chico Albuquerque, Claúdia Andujar, João Roberto Ripper, Sheila Bissiliat, Maurício Lima, Walda Marques e do celebradíssimo Sebastião Salgado, dentre outros tantos talentosos artistas, o reconhecimento do ofício do fotógrafo ambulante lambe-lambe como patrimônio cultural imaterial das cidades de Belo Horizonte e Rio de Janeiro assume relevância, porque situa a arte de fotografar e a fotografia como arte como faces dos direitos culturais coletivos (de toda a comunidade) e individuais (de cada artista). A liberdade de expressão cultural e o acesso ao patrimônio cultural material e imaterial são direitos culturais previstos tanto nos documentos internacionais como na Constituição Brasileira.
O olhar dos fotógrafos dialoga com os direitos de personalidade e de propriedade daquele ou daquilo que é fotografado: pessoas, paisagens, animais, objetos, edificações, árvores e tudo mais que desperte o olhar, que emocione, que informe, que ilustre a vida ou os sonhos. Deste diálogo nascem questões jurídicas controversas e inusitadas.
Ao longo da década de 1990, Alberto Sorbelli, um ex-bailarino na Ópera de Roma, fez uma série de performances provocativas, travestido de prostituta, nas galerias do Louvre, em que perambulava espalhafatoso entre o público e as obras do museu. Em 1999, Sorbelli foi surpreendido pela informação de que o fotógrafo japonês Kimiko Yoshida colocou à venda em galerias de arte algumas fotos suas, mas sem autorização e sem créditos de sua performance. Em 2000, Sorbelli iniciou um processo judicial contra Yoshida, alegando violações a seus direitos autorais exclusivos de artista-performático e à sua imagem. Yoshida argumentou que, como fotógrafo artístico, era o único autor das verdadeiras obras de arte (fotos): o performista não era autor de nada, apenas alvo da obra de arte fotográfica – que elegera perspectivas, ângulos, focos, luzes específicas.
Em dezembro de 2004, a Corte de Apelação de Paris reconheceu que a performance e fotografia constituem expressões artísticas autônomas. E a decisão foi que Sorbelli e Yoshida eram simultaneamente sujeitos ativos e criadores de uma obra de arte singular, portanto coautores cuja recíproca autorização seria imprescindível para qualquer exploração econômica das fotos. Kimiko Yoshida foi condenado a indenizar Alberto Sorbelli.
No Brasil, a lide judicial viu a mesma discussão, apenas com a inversão dos papeis de réu e autor. Aqui, o artista, réu, foi condenado a indenizar o autor da fotografia encomendada para sua criação artística por danos morais (TJ, Recurso Inomidado, julgado epla Quarta Turma Recursal dos Juízados Especiais Cíveis, decisão de 10/06/11). A cena fotografada, uma reunião de pessoas na piscina, foi concebida pelo artista. No entanto, por contrato, houve compromisso de se dar o crédito dessa imagem ao fotógrafo sempre que este trabalho artístico fosse divulgado. Na prática, a relação contratual partiu do mesmo pressuposto da decisão francesa: de que as duas obras – do fotógrafo e do artista - eram expressões autônomas e igualmente importantes para o Direito. Mas será que a decisão teria sido igual se não houvesse a previsão expressa e escrita em contrato?
As fotos tiradas ao ar livre também causam polêmica. Ainda não existe consenso nos países europeus sobre direitos autorais um “direito ao panorama” (panorama é o direito de fotografar prédios, monumentos e obras de arte presentes no espaço público, inclusive para fins comerciais) e as obras de arquitetura, tanto quanto monumentos ou esculturas públicas, rendem direitos de imagem por grande lapso temporal depois da morte do arquiteto ou artista.
Em 21 de setembro de 2017, o Tribunal de Palermo, na Itália, julgou ilícita a reprodução do Teatro Massimo (bem cultural protegido pelo Código dos Bens Culturais italiano) como pano de fundo de uma foto publicitária de um banco. A decisão judicial (https://bit.ly/2NfVz1N) virou um marco na jurisprudência italiana.
O leading case brasileiro data do final de 2016, quando o Superior Tribunal de Justiça (REsp 1.562.617 – SP, relator ministro Marco Aurélio Bellizze) decidiu que o esboço e o projeto arquitetônico integram o patrimônio do profissional que o concebeu e, por isso, a utilização da imagem, por meio de foto publicitária, da obra arquitetônica construída fere os direitos autorais do arquiteto, mesmo que o proprietário do imóvel tenha autorizado à fotografia (atitude que, a princípio, estaria em consonância com o artigo 1.228 do Código Civil). Ao mesmo tempo, a decisão afirmou o “direito ao panorama”, ao frisar que a captura de imagens de obras situadas permanentemente em logradouros públicos e que compõem a paisagem, em princípio, não constitui violação ao direito autoral.
A fotografia, discretamente, ilustra as argumentações e reflexões dos doutrinadores que buscam compatibilização entre liberdades comunicativas e proteção dos direitos da personalidade, especialmente o direito à privacidade. Quando menos se espera, lá está a fotografia servindo de exemplo na Teoria das Esferas, desenvolvida pelos alemães; ou sendo tomada como pivô ou vilã nos estudos da evolução da jurisprudência local e internacional sobre direitos da personalidade. Em capítulo do livro Dez anos de Vigência do Código Civil Brasileiro de 2002 (Editora Saraiva, 2013, p.111/125), Otavio Luiz Rodrigues Júnior aborda o assunto a partir do processo que é um marco para os direitos da personalidade, julgado pelo Tribunal Alemão em 1899 e que versava exatamente sobre fotografias que retrataram o príncipe Bismark em sua câmara funerária. Os herdeiros do príncipe tiveram decisão favorável, com a proibição da divulgação das imagens, apreensão das chapas, dos negativos e das impressões.
Com o mundo virtual estes embates se amplificam, provocando outros importantes debates. Em 2015, o governo brasileiro e o Facebook tiveram um instigante conflito extrajudicial após a supressão de foto de um casal de índios, na qual a mulher estava com o torso nu da página do Ministério da Cultura. A fotografia, de Walter Garbe, datava de 1909 e foi usada para divulgar o lançamento do Portal Brasiliana Fotográfica (da Biblioteca Nacional e do IMS). Apesar de o Facebook ter liberado a veiculação da foto dias depois, o Ministério da Cultura levou o debate à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA e, em 2016, protagonizou a audiência pública temática sobre Internet e Direitos Culturais no Brasil, realizada em Washington, nos Estados Unidos.
Numa era de popularização da tecnologia fotográfica, Affonso Romano de Sant’Anna, no poema Turista Acidental, já antevia um problema que a índia nua da foto de Garbe, de 1909, nem imaginou e que o príncipe Bismark morreu sem conhecer: “Guardado estou/em álbuns japoneses, italianos, americanos, alemães, franceses/argentinos, senegaleses,/disperso/desatento/como se aquele corpo/ não fosse meu./Quando mostram as fotos aos parentes e vizinhos sou pedra-porta-árvore-sombra-paisagem.”

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