Sentença exemplar sobre ágio é uma nova esperança para os contribuintes, por Roberto Duque Estrada

No campo do Direito Tributário, a recente sentença proferida pelo juiz federal Tiago Scherer, da 16ª Vara Federal de Porto Alegre, em 17 de maio, em processo versando sobre o direito à dedução do ágio contabilizado pelo contribuinte Gerdau Aços Especiais S/A, foi um verdadeiro jorro de lucidez ao ar, porque assentada em firmes ensinamentos doutrinários fixados na memória de quem aprendeu e compreendeu a importância do princípio da legalidade como garantia da segurança jurídica e de proteção do exercício das liberdades individuais.
A sentença em questão julgou embargos à execução fiscal opostos pelo contribuinte Gerdau Aços Especiais S/A em processo tendo por objeto a cobrança de supostos créditos tributários de IRPJ e CSLL decorrentes da glosa da dedução da amortização de ágio gerado em operação de reorganização societária realizada dentro do mesmo grupo econômico (“ágio interno”).
A sentença contextualiza de forma breve a lide, narrando de início a operação de reorganização societária realizada pelas empresas do grupo que deu origem ao ágio objeto de amortização fiscalmente dedutível nos termos da legislação em vigor à época dos fatos.
A primeira etapa da operação consistiu no aporte de participações societárias detidas pela Gerdau S/A em Gerdau Açominas S/A e Gerdau Internacional Empreendimentos Ltda. para integralização de aumento de capital de Gerdau Participações S/A. As participações aportadas ao capital da holding foram reavaliadas por ocasião do aporte, sendo o valor da reavaliação baseado na expectativa de rentabilidade futura das investidas fundamentada em laudo de avaliação emitido por empresa especializada. A operação em causa— conferência ao capital de participações societárias reavaliadas —, conquanto geradora de um ganho de capital potencial representado pela diferença entre o valor contábil e o valor reavaliado, não era suscetível de gerar tributação imediata ex vi do artigo 36 da Lei 10.637/2002[3].
Posteriormente, a Gerdau Participações S/A foi incorporada pela Gerdau Açominas S/A (incorporação reversa ou downstream merger), passando esta última, na condição de sucessora, a deduzir fiscalmente o ágio contabilizado pela sucedida.
Finalmente, a Gerdau Açominas S/A foi cindida em quatro novas sociedades: Gerdau Aços Especiais S/A, Gerdau Aços Longos S/A, Gerdau América do Sul participações S/A e Gerdau Comercial de Aços S/A, permitindo a maior especialização de cada uma das empresas em seu ramo de atividades.
O direito à dedução do ágio recusado pelo Fisco à embargante — Gerdau Aços Especiais S/A — trata-se, pois, do direito originariamente nascido por força da incorporação da Gerdau Participações pela Gerdau Açominas S/A e a ela embargante transmitido em virtude da cisão da sua titular originária.
Conforme anotado pela sentença, o direito à dedução de valores a título de amortização de ágio foi consagrado expressamente nos artigos 7º e 8º da Lei 9.532/97, vigentes à época dos fatos. De acordo com referidos dispositivos legais, a existência desse direito dependia basicamente de requisitos objetivos que, uma vez preenchidos, asseguravam ao contribuinte o seu exercício. Eram eles essencialmente: (i) a aquisição de investimento em sociedade controlada ou coligada por valor superior ao do patrimônio líquido (ágio) (artigo 7º, III) e (ii) incorporação, cisão ou fusão da pessoa jurídica investida pela investidora (artigo 7º, caput), inclusive na hipótese de incorporação reversa (downstream merger) (artigo 8º, “b”).
Nada mais exigia a lei que a ocorrência de um fenômeno aquisitivo de investimento que, no Direito brasileiro, pode se operar por distintas modalidades como são os casos da compra e venda, da dação em pagamento, da integralização de capital social, da permuta, da doação. Também não exigia a lei que o fenômeno do ágio ocorresse entre partes independentes, ou mesmo no Brasil ou no exterior, o que importava é que ele tivesse como fundamento a expectativa de rentabilidade futura, comprovada em demonstrativo arquivado na contabilidade do contribuinte (artigo 20, I e II, parágrafo 2º, “b” e parágrafo 3º do Decreto-lei 1.598/1977, na sua redação original).
A recusa do Fisco em admitir a existência de ágio em operações entre partes relacionadas, integrantes do mesmo grupo econômico, escuda-se, como anota a sentença, nas “(...) profundas mudanças na ciência contábil brasileira, especialmente a partir de 2007, a fim de aproximá-la das definições utilizadas internacionalmente, de modo a facilitar a integração do Brasil no mercado global”.
Sucede que tal exigência não se encontrava prevista em lei.
Com efeito, tanto essa (operação entre partes não relacionadas) quanto outras exigências do Fisco para admitir a dedução do ágio somente vieram a ser positivadas na Medida Provisória 627/2013. Referida medida provisória foi convertida na Lei 12.973, de 13 de maio de 2014, que estabeleceu uma nova disciplina para a matéria, limitando quantitativa e qualitativamente o quantum do ágio fiscalmente dedutível, apenas permitindo a dedução do ágio por rentabilidade futura (goodwill) na aquisição de participação societária entre partes não dependentes.
A necessidade de edição de uma nova norma tributária para dispor a respeito da impossibilidade de dedução fiscal de ágio gerado em operações entre partes relacionadas revela de forma incontestável que tal vedação não existia no direito positivo anterior.
E nem se alegue tratar-se de norma interpretativa, de aplicação retroativa, pois não há no texto da lei, ou mesmo da medida provisória, qualquer ressalva ou indício nesse sentido. Trata-se de norma claramente modificativa, que inova, criando inéditos requisitos para que a dedutibilidade do ágio seja permitida. Inovou para vedar o aproveitamento do ágio interno, antes permitido, porém, ao mesmo tempo, realçou o caráter arbitrário das práticas adotadas pela administração fiscal.
A sentença não só reconheceu que “(...) não é possível aplicar o que dispõe a Lei 12.973/2014 — ou os princípios contábeis que lhe fundamentaram — por afronta aos artigos 106 e 109 do CTN”, como também foi categórica em reconhecer a liberdade dos particulares de economizar tributos licitamente, conforme se pode ler nas passagens abaixo transcritas:
“É incontroverso que o grupo econômico que abrange a embargante utilizou-se de operação societária também com o objetivo de reduzir seu passivo fiscal e produzir lucro, porém isso é inerente ao exercício de qualquer atividade econômica e chancelado pelo modelo capitalista adotado constitucionalmente a partir de 1988, com respeito à liberdade e à propriedade”.
“Ademais, não se pode confundir elisão com evasão fiscal, diferenciadas pela adoção de uma conduta lícita ou ilícita, respectivamente, para atenuar o passivo tributário. Tampouco se poderia admitir tributação por uma interpretação tendenciosa ou voluntarista da legislação tributária. Pelo contrário, o nosso sistema jurídico resguarda a liberdade empresarial para a organização dos negócios, inclusive para a exploração de lacunas ou brechas legais que possibilitem economia lícita de tributos. Ao mesmo tempo que o contribuinte não pode se esquivar da cogência da lei tributária, utilizando-se de artimanhas, malícias, fraudes, simulações, dissimulações ou abuso, também não é exigido que pague mais tributos do que legalmente exigido. O cidadão e as empresas são, perante a lei, contribuintes e não devotos do Estado, a ponto de se submeterem a quaisquer imposições ilegítimas” (grifos do original).
A exemplar sentença do juízo da 16ª Vara Federal de Porto Alegre foi precisa ao enunciar a inversão de valores que tem marcado a atuação do Fisco, tratando os particulares como devotos, a eles impondo a insaciável vontade de arrecadar do Estado, apesar e para além do que exigem as leis, desrespeitando o direito de propriedade e as liberdades individuais assegurados pela Constituição. Sem dúvida a sentença do juiz federal Tiago Scherer renova as esperanças dos particulares, cidadãos e empresas de serem tratados, apenas e tão somente, na exata medida da legalidade, como verdadeiros contribuintes.

Comentários