Provimento reaviva debate sobre limites do CNJ em serventias extrajudiais, por Vito Frederico Kumpel e Bruno de Ávila Borgarelli


A dimensão normativa do Conselho Nacional de Justiça no âmbito notarial e registral é numericamente aferível: em 2017, foram expedidos seis provimentos com impacto direto nas serventias, sobre temas que vão de cobrança emolumentar a procedimento de usucapião extrajudicial, além daquele que constitui o objeto deste texto: o Provimento 63, de 14 de novembro de 2017, que, dentre outras determinações, dispõe sobre reconhecimento e averbação de paternidade e maternidade socioafetiva e sobre registro de filhos havidos por reprodução assistida.
Essa grande movimentação não indica, por si só, um desrespeito aos limites de atuação do órgão, cuja competência regulamentar é expressamente prevista no artigo 103-B, parágrafo 4º, I da CF/88. O Regimento Interno do CNJ esmiúça as atribuições do corregedor nacional de Justiça, que incluem a expedição de atos voltados ao aperfeiçoamento das atividades dos órgãos do Judiciário, dos serviços auxiliares e das notas e registros, sempre dentro da competência da Corregedoria Nacional de Justiça. Quanto a esta, seu regulamento geral traz disposições equivalentes, determinando no artigo 14 os atos de natureza normativa do corregedor, como o provimento, destinado a “esclarecer e orientar a execução dos serviços judiciais e extrajudiciais em geral”.
Além do poder regulamentar, assim, ao CNJ compete também fiscalizar a atividade notarial e registral, o que implica normatização, controle, orientação e eventual punição. Mas o alerta já foi fartamente estipulado, tanto na jurisprudência (ADI 3.367, ao final julgada improcedente, reconhecendo-se que o CNJ e seu poder regulamentar não ferem o princípio federativo e a repartição de poderes[1]) quanto na doutrina: o órgão não tem função legislativa. Veda-se sua atuação “por meio de medidas administrativas/normativas revestidas de abstração e generalidade, que pretendem regulamentar matérias inovando o ordenamento jurídico”[2].
Para além das atribuições expressas, aspectos institucionais explicam a fertilidade normativa sobre o notariado e os registros. Ao lado de um ambiente propício à uniformização (a atividade é delegada pelo Poder Judiciário dos estados, com grande discrepância regulatória em cada unidade da federação), houve uma espécie de simbiose estrutural: a uma forte organização e consciência funcional do CNJ juntou-se a crescente capacidade dos notários e registradores para absorver funções antes reservadas ao espaço estritamente judicial.
Essa vocação expansiva das serventias — reflexo da qualidade dos serviços — também estimula a atuação do CNJ, muitas vezes chamado a impor limites. Tome-se um exemplo. Em 2016, a Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS) protocolou um pedido de providências junto ao órgão[3], para que fossem cautelarmente proibidas as escrituras das “relações poliafetivas” e para que a questão fosse regulamentada. A bem dizer, o que se pedia era que o órgão explicitasse aos oficiais aquilo que é uma obviedade do ordenamento: não existe união jurídica poliafetiva. Sem juridicidade, é inviável seu reconhecimento por agente dotado de fé pública. O exemplo veicula uma situação ideal. Uma entidade solicita, pelas vias formais, que o órgão explicite aos oficiais do notariado o fato de a legislação não permitir uniões poligâmicas, decorrendo daí a inviabilidade de serem lavradas escrituras com tal conteúdo. O caminho, nesse caso, é corretíssimo. Tudo em seu devido lugar, com respeito à legalidade constitucional.
Em outros casos, contudo, a situação é diferente: no afã de pacificar questões, o CNJ ultrapassa as fronteiras de sua competência. O órgão de fato foi além dessa linha ao regulamentar, com o Provimento 63/2017, o registro da paternidade socioafetiva e dos filhos havidos por técnicas de reprodução assistida.
O Provimento 63/2017 do CNJ em face da competência constitucional de fiscalização sobre as serventias extrajudiciais
O Provimento 63/2017 “institui modelos únicos de certidão de nascimento, de casamento e de óbito, a serem adotadas pelos ofícios de registro civil das pessoas naturais, e dispõe sobre o reconhecimento voluntário e a averbação da paternidade e maternidade socioafetiva no Livro 'A' e sobre o registro de nascimento e emissão da respectiva certidão dos filhos havidos por reprodução assistida”.

Há três linhas mestras: a primeira cria modelos únicos de certidão de nascimento, casamento e óbito, e neles determina a consignação da matrícula que identifica o Código Nacional da Serventia e, dentre muitos detalhes, exige também a aposição, sempre que possível, do CPF do titular. A segunda é a paternidade socioafetiva, o seu reconhecimento voluntário, os requisitos para tal e as hipóteses em que o oficial deverá submeter ao juiz o requerimento. A terceira cuida da reprodução assistida. Neste último caso, buscou-se simplificar o assentamento administrativo do nascimento de filho havido por tais técnicas.
A questão é: o conteúdo do Provimento 63/2017 está de acordo com as atribuições do CNJ?
Sem dúvida, o Poder Judiciário tem competência para fiscalizar o serviço de notas e registros (artigo 236, parágrafo 1º CF/88). Também é clara a competência do CNJ para “regulamentar a padronização das certidões de nascimento, casamento, óbito e certidão de inteiro teor”[4]. O grande problema está no fato de o órgão sedimentar, através do ato, questões que deveriam passar antes pelo processamento legislativo, especialmente pela relação com garantias constitucionais.
Sobre paternidade socioafetiva: o CC/02 (artigo 1.593) dá espaço para o parentesco não consanguíneo, a incluir o socioafetivo, mas o reconhecimento voluntário estabelecido pelo CNJ é delicado: o oficial tem condições de avaliar essa relação? Tal qualificação pode ser parte de suas atribuições? Entende-se que não, muito menos com base na “aceitação do princípio da afetividade”. O acerto do provimento está em submeter ao crivo judicial a eventual dupla paternidade/maternidade.
Maior problema está na certidão de nascimento de crianças havidas por reprodução assistida. O Provimento 63/2017 representa uma mudança de rumos relativamente a um ato anterior, o Provimento 52/2016. Neste, o órgão introduziu a regulamentação sobre reprodução assistida (antes apenas existente em normas do Conselho Federal de Medicina). O Provimento 52/2016 incluía entre os documentos exigidos para o registro a declaração do diretor da clínica de reprodução indicando a técnica usada, o nome dos beneficiários e o nome do doador do material genético. Era o teor do artigo 2º, II.
A vedação ao anonimato do doador era salutar. Na pendência de tratamento legislativo específico, deveriam ser reconhecidos os doadores. O CNJ estava apenas confirmando a possibilidade de o indivíduo conhecer as origens genéticas e viabilizando a realização do ato registral para esse conhecimento.
Mas essa determinação correta não agradou a todos. Houve quem afirmasse expressamente que o CNJ deveria adaptar-se às diretrizes do CFM, que em resoluções específicas afasta a identificação do doador na reprodução heteróloga[5]. E é justamente o que acabou ocorrendo com o Provimento 63/2017.
É evidente a falta de reflexão em termos de impacto. Em um país com as dimensões do Brasil, onde o número de procedimentos de reprodução assistida só tende a crescer, deve haver uma avaliação sobre a eficácia de normativas voltadas a sua regulamentação. E ainda que não houvesse esse impacto numérico, é bastante provável que o Provimento 63/2017 esteja a afrontar direito fundamental[6].
Em síntese, nesses pontos do Provimento 63/2017 houve desrespeito aos limites de competência. Não há uma simples uniformização formal de documentos públicos ou mera regulamentação de registro. Há uma efetivação de direitos e supostas garantias fundamentais, com base na sempre invocada “dignidade da pessoa humana”.
Esse problema descortina uma questão maior: o uso político que se tem feito das notas e dos registros públicos, especialmente no bojo de uma excessiva confiança na “desjudicialização”.
Desjudicialização ou “deslegislação”?
No Brasil, concorde-se ou não — e não é pecado ou crime discordar do modo como a desjudicialização é operada por aqui —, houve muitas iniciativas de fuga para o mundo extrajudicial. Pouco depois da criação do CNJ surgiu uma normativa da máxima relevância nesse processo: a Lei 11.441/2007, que institui os procedimentos de inventário, partilha, divórcio e separação pela via administrativa.

Esse quadro foi normalizando aquela tendência regulamentadora, em muito fermentada pelo bom diálogo entre o Judiciário e as notas e registros. Mas isso não suprime riscos, tanto mais em um país com as dimensões do Brasil. Especialmente perigosa é a tentativa de efetivar mudanças sociais através desses serviços. Isso corresponde a uma face do problema institucional já estabelecido pelo ativismo judicial. Neste, desconsidera-se o Poder Legislativo, por se enxergar nele uma série de desqualificações que acabam reunidas sob a rubrica de sua suposta “falta de legitimidade”. Diante disso, por que não usar aquilo que já se mostrou célere e eficaz, concretizando o que o legislador custa a fazer?
Há uma forte tentação de manusear o notariado e os registros para a efetivação de direitos por uma camada da sociedade. Trata-se de uso políticodesses serviços.
O exemplo mais óbvio, como se sabe, é o do casamento de pessoas do mesmo sexo. Diante da clareza da CF/88 (artigo 226, parágrafo 3º) em apontar o casamento entre homem e mulher, bem como do CC/02 (artigo 1.565, caput), seria preciso aguardar a inciativa legislativa. Ninguém se surpreenderia, contudo, se o STF “pacificasse” a questão. Mas a realidade foi mais dura: o casamento homossexual no Brasil não ocorreu nem mesmo por inciativa do STF, mas por uma diretiva do CNJ dada aos oficiais do Registro Civil (Resolução 175/2013). Mesmo que se admitisse a tese de que as resoluções do CNJ configuram ato normativo primário, podendo inovar no ordenamento (como defendeu o ministro Ayres Britto na ação declaratória de constitucionalidade relativa à Resolução 7 do CNJ), o fato é que a Resolução 175 estava fora das raias constitucionais. De todo modo, não se acompanha aquele entendimento. Fica-se com o que já foi dito: o órgão não pode inovar no ordenamento.
O próprio CNJ afirma que, “ao proibir que autoridades competentes se recusem a habilitar ou celebrar casamento civil ou, até mesmo, a converter união estável em casamento, a norma contribuiu para derrubar barreiras administrativas e jurídicas que dificultavam as uniões homoafetivas no país”[7]. Trata-se, é bom repetir, apenas de um exemplo da instrumentalização do serviço extrajudicial para fins políticos.
Não se está a negar o papel de notários e registradores na efetivação de direitos. Tanto a qualificação de partes e formalização de sua vontade (pelo tabelião), quanto o registro de fatos e atos jurídicos (pelo registrador), constituem atividades fundamentais para o fluxo jurídico e econômico do país. São agentes indispensáveis para que o cidadão veja seus direitos eficacizados perante a coletividade. Mas isso não pode implicar uma redistribuição dos poderes e da organização do Estado.
Certas inciativas que partem de uma leitura pré-condicionada da Constituição Federal e vão parar diretamente nos cartórios correspondem a algo pior do que o “salto” sobre a via legislativa para criar direitos através de “interpretação” judicial, o decisionismo, denunciado pelos mais abalizados juristas (Lenio Streck, por exemplo). Correspondem, sim, aquelas iniciativas, a uma espécie de duplo carpado: invade-se espaço de lei sob o manto da “competência regulamentar” e uma má compreensão de seu significado.
O risco é enorme. Nas frestas dessas soluções pacificadoras sobre temas polêmicos escondem-se problemas institucionais tão graves quanto os do ativismo, que é a face mais cruel de um movimento tipicamente brasileiro de desconsideração do direito positivo em nome de um apanhado de teorias e pseudoteorias que estão há muito tempo se arrastando pelas estradas do país[8].
Conclusão
A atuação do CNJ, órgão importante para a manutenção do equilíbrio do Poder Judiciário e dos serviços extrajudiciais, precisa ser analisada criteriosamente. O ponto de partida, neste texto, foi o Provimento 63/2017, que, ao regrar o reconhecimento voluntário da paternidade socioafetiva e o anonimato do doador no registro de filhos havidos por reprodução assistida, acaba invadindo um espaço de regulação reservado ao Legislativo. Instituições têm de ser analisadas de forma racional e limpa. Para o seu próprio bem, e para o bem do cidadão.

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