Moralidade nos contratos administrativos, porThaís Boia Marçal e Jessé Torres Pereira Junior

Em cenário de crise institucional, os princípios constitucionais podem inspirar o estado democrático de direito no sentido de reconhecer a sociedade civil como a titular única das escolhas e prioridades condutoras de seus próprios e sobranceiros destinos, de que os poderes públicos devem ser não mais do que fiéis intérpretes e executores.1
No âmbito das contratações públicas, sobejam questões acerca de como lidar com a prática de atos de corrupção descobertos após o transcurso de anos da realização de licitações públicas, por meio dos quais a administração identifica a proposta tida como mais vantajosa e, por isto, ensejadora da contratação do respectivo proponente, ao final dos certames competitivos.
E já nesse postulado, tido como o móvel de toda licitação - a escolha da proposta mais vantajosa -, surgem questões a desafiar providências pertinentes à moralidade nas contratações do estado: o que vem a ser a proposta mais vantajosa, a que alude o art. 3º da lei 8.666/93? Será sempre a de menor preço? Outros elementos, além do preço, devem ser considerados na identificação da melhor proposta? Em caso afirmativo, como estabelecê-los objetivamente, de sorte a ter-se um padrão de julgamento que evite vícios invalidantes da licitação e da contratação?
A administração pública é titular, mercê da autotutela, do dever jurídico de declarar nulas ou de anular as licitações e contratações fundadas em atos administrativos cuja estrutura morfológica irredutível se apresente viciada quanto a qualquer de seus elementos – competência, forma, objeto, motivo e finalidade. Fazê-lo ou não o fazer concerne tanto à moralidade quanto à segurança jurídica, dado que a nenhum título é lícito ou legítimo que a administração licite ou contrate pela via de atos viciados, vale dizer, praticados por autoridades sem a competência funcional devida, inobservada a forma exigida, versando sobre objeto sem interesse público, pretextando motivos (razões de fato e de direito que justificam a decisão) falsos, inexistentes ou inidôneos, ou com desvio de finalidade.
Contratos contaminados pela prática de atos de corrupção acrescentam teor inadmissível de dolo à conduta dos agentes públicos e privados envolvidos. Daí a relevância de fixarem-se stardards que balizem as escolhas segundo as quais a administração pública orientará o seu comportamento de gestão dos contratos, sem violar a segurança jurídica.
Uníssona, embora matizada nos pontos que destaca aqui e ali, é a doutrina administrativista acerca da onipresença da moralidade nos atos e contratos administrativos.
Hely Lopes Meirelles2 fez ver, de uma vez para sempre, que a moralidade administrativa é pressuposto de validade de todo ato da administração pública, nos termos do disposto no art. 37, caput, da Constituição Federal de 1988.
Marçal Justen Filho3 acentua que a moralidade soma-se à legalidade, tanto que uma conduta compatível com a lei, mas imoral, será inválida.
Para Celso Antônio Bandeira de Melo, a administração e seus agentes têm de atuar na conformidade de princípios éticos. Em outras palavras, violá-los implicaria em violação ao próprio direito, configurando ilicitude que sujeita a conduta viciada à invalidação, porquanto tal princípio assumiu foros de pauta jurídica, na conformidade do art. 37 da Constituição.4
José dos Santos Carvalho Filhoafirma que o princípio da moralidade impõe que o administrador público não dispense os preceitos éticos em sua conduta, devendo não só averiguar os critérios de conveniência, oportunidade e justiça em suas ações, mas também distinguir o que é honesto do que é desonesto.
Maurice Hauriou6, no seu Précis de droit administratif e de droit public (Paris, 1927, p. 420), destacava que a conformidade do ato administrativo com os princípios da boa administração deve ser fiscalizada pelo recurso fundado no desvio de poder, o qual incide sobre a zona da moralidade administrativa.7
Diogo de Figueiredo Moreira Neto8 ressaltava que a moralidade administrativa atua como peculiar derivação dos conceitos de legitimidade política e de finalidade pública, pois é a partir da finalidade que é prevista em abstrato, sendo a partir da legitimidade, como resultado da aplicação, que a moralidade administrativa se define em concreto.
Toshio Mukai esclarece que "a moralidade administrativa difere da moralidade comum porque ela busca e significa tão-só que o agente público atue na condição de um bom administrador, como alguém que, gerindo recursos alheios, o faz ciente de que não são seus, e, portanto, atuando com eficiência, zelo, parcimônia, honestidade e, sobretudo, com a observância da boa-fé; enfim, o princípio da moralidade administrativa requer que o administrador público, na prática de cada ato de sua alçada e competência, saiba discernir entre aquilo que é do bem daquilo que é do mal e, além disso, tenha no seu agir a preocupação constante do bom administrador, aplicando a lei corretamente, no sentido sempre da satisfação do interesse público, fim último do Estado."9
Segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro10, sempre que se verificar que o comportamento da administração ou do administrado, que com ela se relaciona juridicamente, ofende a moral e as regras de boa administração haverá ofensa ao princípio da moralidade administrativa.
Fábio Barbalho Leite complementa que "o princípio da moralidade administrativa consubstancia cânone dos mais significativos para o controle dos atos administrativos. Ademais que apresenta campo semântico superior ao da legalidade, submetendo os atos administrativos a maiores exigências da lei."11
Emerson Garcia12 pontua que "a moralidade administrativa apresenta uma relação de continência com o princípio da juridicidade, o qual abrange todas as regras e princípios norteadores da atividade estatal. Violado o princípio da moralidade administrativa, maculado estará o princípio da juridicidade, o que reforça a utilização deste como parâmetro para a identificação dos atos de improbidade."
Alexandre Santos de Aragão acrescenta que, "hoje, estando a legalidade ampliada pela ideia da juridicidade, e estando a própria moralidade (tal como vários outros princípios antes considerados como metajurídicos) positivada na Constituição, passou a integrar o bloco de legalidade. Assim, um ato administrativo imoral, que foge ao que seria o comportamento de um 'bom administrador', seria também um ato ilegal por violação à mais importante de todas a leis, a Constituição."
Flávio Amaral Garcia sublinha que "a moralidade alcança não apenas o administrador público, mas também os licitantes. A despeito de seu caráter subjetivo – já que moral é um conceito aberto, sujeito a variações de época, de locais e de pessoas – implica a observância de comportamento ético no transcorrer das licitações públicas."13
Em sede pretoriana, o Supremo Tribunal Federal tem por diretriz inarredável que o princípio da moralidade é de observância obrigatória no conduzir da administração pública. Assim:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - LEI ESTADUAL QUE AUTORIZA A INCLUSÃO, NO EDITAL DE VENDA DO BANCO DO ESTADO DO MARANHÃO S/A, DA OFERTA DO DEPÓSITO DAS DISPONIBILIDADES DE CAIXA DO TESOURO ESTADUAL - IMPOSSIBILIDADE - CONTRARIEDADE AO ART. 164, § 3º DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA - AUSÊNCIA DE COMPETÊNCIA NORMATIVA DO ESTADO-MEMBRO - ALEGAÇÃO DE OFENSA AO PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA - PLAUSIBILIDADE JURÍDICA - EXISTÊNCIA DE PRECEDENTE ESPECÍFICO FIRMADO PELO PLENÁRIO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL - DEFERIMENTO DA MEDIDA CAUTELAR, COM EFICÁCIA EX TUNC. AS DISPONIBILIDADES DE CAIXA DOS ESTADOS-MEMBROS SERÃO DEPOSITADAS EM INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS OFICIAIS, RESSALVADAS AS HIPÓTESES PREVISTAS EM LEI NACIONAL. – (omissis) A atividade estatal, qualquer que seja o domínio institucional de sua incidência, está necessariamente subordinada à observância de parâmetros ético-jurídicos que se refletem na consagração constitucional do princípio da moralidade administrativa. Esse postulado fundamental, que rege a atuação do Poder Público, confere substância e dá expressão a uma pauta de valores éticos sobre os quais se funda a ordem positiva do Estado.(omissis).
(ADI-MC 2661, CELSO DE MELLO, STF.) – os grifos não constam do original.
Ingressando no sistema de controle da esfera gerencial e operacional da atividade contratual do estado, Rafael Carvalho Rezende Oliveira14 visualiza que "o ordenamento jurídico prevê diversos instrumentos de controle da moralidade administrativa, tais como: a ação de improbidade (art. 37, §4º, da CRFB e lei 8.429/92), a ação popular (art. 5º, LXXIII, da CRFB e lei 4.717/65), a ação civil pública (art. 129, III da CRFB e lei 7.347/85), dentre outros."
Arremate-se com Odete Medauar: "a probidade administrativa, que há de caracterizar a conduta e os atos das autoridades e agentes públicos, aparecendo como dever, decorre do princípio da moralidade administrativa."15
O direito público brasileiro há de passar do campo conceitual da moralidade, em que há consenso, para o do cotidiano das ações de gestão administrativa dos contratos, em que se divisam lacunas e fragilidades pelas quais se introduzem desvios da moralidade. Daí, na legislação recente e nas normas regulamentadoras da conduta administrativa, se observarem avanços na esfera da responsabilização de agentes públicos e privados, pessoas físicas e jurídicas, por danos morais e materiais que condutas ímprobas causem aos resultados de interesse público que a sociedade não mais tolera que sejam frustrados.
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