Arbitragem e Administração Pública: sentença judicial supre cláusula compromissória vazia e determina arbitragem institucional, por Cesar Pereira, Eduardo Talamini e Luísa Quintão

1. O contexto das decisões do Judiciário
Foi proferida em 19 de abril de 2017 sentença da 3ª vara Cível de Itu/SP, em ação promovida com base no art. 7º da lei 9.307/96, que supriu cláusula arbitral vazia mediante a escolha de instituição arbitral reputada adequada para a administração do litígio envolvendo um contrato de concessão do Município de Itu (SP). A solução foi baseada em acórdão proferido no mesmo processo pelo Tribunal de Justiça de São Paulo.
Em conflito relativo a contrato de concessão de serviço público celebrado com o Município de Itu (SP), a empresa concessionária Águas de Itu Exploração de Serviços S/A iniciou procedimento arbitral perante a Câmara de Arbitragem Empresarial – Brasil (CAMARB).
A peculiaridade é que a cláusula compromissória em questão é vazia, isso é, limita-se a afirmar que os litígios decorrentes do contrato de concessão devem ser resolvidos por meio de arbitragem. Não indica a instituição responsável pela administração do procedimento nem outras regras para a instituição da arbitragem1. No entanto, a concessionária reputou que a CAMARB seria instituição adequada e requereu a instauração da arbitragem com sede em São Paulo (SP) segundo as regras daquela instituição. O demandado (Município de Itu) foi notificado para responder ao pedido de instauração da arbitragem, ocasião em que lhe caberia manifestar sua eventual objeção à arbitragem ou à instituição escolhida.
2. A ação do art. 7º (compromisso arbitral) proposta pela concessionária
Conforme consta da sentença, o Município efetivamente se opôs à instauração da arbitragem e arguiu a existência de cláusula arbitral vazia. Diante disso, em agosto de 2016, a concessionária promoveu a ação prevista no art. 7º da lei 9.307/962, a fim de obter a lavratura de um compromisso arbitral ou sentença que preenchesse as lacunas deixadas pelas partes na cláusula compromissória.
Com base na doutrina especializada e em diversas previsões legislativas e regulamentares aplicadas por analogia, defendeu que a arbitragem envolvendo a Administração Pública deveria ser preferencialmente institucional. Por decorrência, requereu que, se não houvesse acordo em audiência, a sentença indicasse instituição arbitral competente para administrar a arbitragem. De modo específico, requereu que a sentença confirmasse a validade da submissão do litígio à CAMARB.
3. A medida urgente deferida
A concessionária requereu que fosse liminarmente determinado o prosseguimento do procedimento arbitral iniciado perante a CAMARB, em vista da necessidade de dar-se célere solução ao litígio de fundo e considerando-se a clara existência de convenção de arbitragem entre as partes e a possibilidade de aproveitamento dos atos processuais praticados na arbitragem, mesmo que ao final fosse eleita outra instituição arbitral como competente. Amedida foi concedida pelo Juízo da 3ª vara Cível de Itu:
Com efeito, a presente medida é adequada e necessária para dar continuidade ao procedimento de arbitragem, nos termos do artigo 7º, da lei 9.307/96.
E, conforme acima fundamentado, a instituição da arbitragem mostra-se obrigatória, de sorte que, por ora, não se verifica nenhum impedimento para o deferimento do pedido tutela de urgência para dar continuidade ao procedimento já instaurado.
De fato, a arbitragem institucional mostra-se a melhor alternativa por se valer de entidade especializada, sobretudo por envolver ente público.
A Câmara indicada na petição inicial, nesta fase inicial, não apresenta nenhum impedimento ou suspeição. É importante destacar que o município não impugnou a escolha feita pela autora em sua manifestação apresentada no procedimento arbitral instaurado. Pelo contrário, apresentou “pedido contraposto-reconvenção” em que requer a condenação da autora pagamento da reparação de danos.
O risco ao resultado útil do processo também mostra-se evidente, tendo em vista que o atraso do procedimento arbitral prejudica às partes que correm o risco de ter a solução definitiva do conflito se postergar por tempo imprevisível.
Portanto, de rigor a concessão da tutela de urgência para autorizar o prosseguimento do procedimento arbitral.
Ante o exposto, DEFIRO a tutela de urgência para autorizar o prosseguimento do Procedimento Arbitral (...).
O município interpôs recurso contra a decisão que deferiu a tutela de urgência pleiteada pela concessionária.
4. A manifestação do TJSP em agravo de instrumento
Contra a decisão que concedeu a tutela de urgência e determinou o prosseguimento da arbitragem perante a CAMARB, o Município interpôs agravo de instrumento, reiterando argumentos anteriores e ainda invocando as regras que limitam a concessão de medidas de cognição sumária contra o Poder Público.
Em acórdão que negou provimento ao recurso do Município, a 7ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) assim se manifestou:
A lei 8.437/92, que dispõe sobre a concessão de medidas cautelares contra atos do Poder Público, é reiteradamente citada pelo agravante para arrimar suas alegações.
Não se ignora o fato, entretanto, de que o referido diploma legal possui a mesma força normativa de outra lei vigente, qual seja, a lei 9.307/96, ou lei de arbitragem, que estabelece, logo em seu artigo 1º, § 1º, que “a administração pública direta e indireta poderá utilizar-se da arbitragem para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis”.
Essa, sim, é a hipótese dos autos. (...)
5. Sentença de procedência
Em 19 de abril de 2017, proferiu-se em primeiro grau sentença de procedência da ação.
Aplicando a competência-competência, a sentença afirmou que as questões relativas à alegada nulidade da cláusula compromissória suscitadas pelo Município não poderiam ser conhecidas pelo Juízo, devendo ser decididas pela Tribunal Arbitral.
Reafirmou o entendimento, já manifestado no acórdão proferido no agravo de instrumento, de que a cláusula de eleição de foro é aplicável apenas subsidiariamente à cláusula arbitral, para ações essencialmente judiciais (como a própria ação do art. 7º).
Confirmou também o entendimento já pacificado de que a cláusula compromissória não ofende o art. 5º, inciso XXXV, da CF e de que a Administração Pública pode valer-se de arbitragem para dirimir conflitos.
A sentença enfatizou que a CAMARB “constitui a câmara mais indicada para a realização dos trabalhos” e que não havia sido apresentado nenhum argumento técnico que afastasse a possibilidade de eleição da CAMARB como instituição competente para a administração do procedimento arbitral. Analisou a adequação da instituição, em cotejo com outras referidas na sentença, sob os ângulos da experiência específica e dos custos estimados.
A sentença é coerente com a evolução legislativa e doutrinária acerca da preferência da arbitragem institucional nos litígios envolvendo a Administração Pública. A arbitragem ad hoc apresenta riscos derivados da extensão da autonomia da vontade das partes nesse tipo de procedimento. As partes devem concordar em praticamente todos os aspectos concernentes à estrutura processual básica para que a arbitragem possa fluir – a consensualidade exigida é muito mais alta. Qualquer divergência pode retardar o desenvolvimento do processo e exigir a intervenção do Judiciário para medidas de apoio que supram as divergências.
A arbitragem institucional supre tais riscos. Isso principalmente porque conta com regras pré-estabelecidas (regulamento de arbitragem) determinando a estrutura processual básica, calendário inicial de procedimento, mecanismos de indicação de árbitro(s), regras resolvendo questões relativas à impugnação deste(s), local para audiência, determinação de honorários de árbitros e, inclusive, mecanismos que previnem ou reduzem o risco de inexequibilidade da sentença arbitral por vícios formais.
Basta ver que todos os atos normativos que regulam a arbitragem com a Administração Pública (MP 752/16, decreto 8.465/2015, lei estadual de MG 19.477/11) contemplam arbitragem institucional e até mesmo regulam em maior ou menor detalhe as características da instituição admissível. O art. 4º do decreto 8.465/15 exige que a eventual opção pela arbitragem ad hoc seja justificada, estabelecendo a institucional como preferencial.
Além disso, a sentença reafirmou orientações consolidadas relativas à arbitragem envolvendo entes da Administração Pública.
Mas o pronunciamento reveste-se ainda de interesse muito especial porque, dando um passo além, reconheceu o descabimento de licitação para escolha de árbitros de instituição arbitral. Apesar de a doutrina já ter se posicionado nesse sentido anteriormente,3 não se conheciam decisões judiciais a respeito. A sentença esclareceu que “[t]rata-se de hipótese específica em que há necessidade de profissionais ou empresas de notória especialização, conforme autorizado pelo artigo 25, da lei 8.666/93.4
Nesse cenário, com a procedência da ação, o Juízo declarou válidos e determinou o aproveitamento de todos os atos praticados no procedimento arbitral já instaurado perante a CAMARB, que foi mantida como instituição arbitral competente no compromisso arbitral constante da sentença.
6. Conclusão
As decisões proferidas pelo Judiciário no âmbito do conflito processual existente entre a Águas de Itu e o Município de Itu contemplam e esclarecem diversas questões atinentes à arbitragem envolvendo entes da Administração Pública – algumas delas já pacificadas pela doutrina e pela jurisprudência e até mesmo refletidas nas alterações da lei 9.307/96 trazidas pela reforma legislativa em 2015 (com o advento da lei 13.129/15). Merecem destaque o reconhecimento da conveniência da arbitragem institucional para a resolução de conflitos envolvendo a Administração Pública e o reconhecimento da escolha de árbitros e de instituição arbitral como atos alheios à necessidade de licitação.
A decisão constituirá precedente relevante e inovador no que se refere à afirmação da competência judicial para a definição de instituição arbitral no caso de cláusulas arbitrais vazias envolvendo a Administração Pública. Tanto o juízo singular como o Tribunal de Justiça reafirmaram a diretriz de que a arbitragem em que a Administração Pública é parte deve ser preferencialmente institucional. A decisão de mérito afastou qualquer dúvida sobre a possibilidade de indicação da instituição responsável independentemente de licitação ou qualquer outro procedimento específico, inclusive como parte da competência atribuída ao Poder Judiciário pelo art. 7ª da lei 9.307/16.
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1 Eis seu teor: “16. SOLUÇÃO DE DIVERGÊNCIAS (...) 16.3. Arbitragem 16.3.1. Caso qualquer das partes não aceite o parecer da Comissão de Peritos, poderá no prazo de 30 (trinta) dias úteis, contados a partir da data em que o referido parecer lhe tenha sido comunicado, solicitar que a questão objeto de divergência seja atribuída a um Tribunal Arbitral, de acordo com a Lei 9.307/96 e desde que o assunto seja compatível e que não haja infração à Lei Complementar 101/00 (Lei de Responsabilidade Fiscal). 16.3.2. O Tribunal é competente para emitir decisão sobre as questões que lhe foram submetidas, aplicando, interpretando ou integrando as normas que regem o contrato e a legislação pertinente. 16.3.3. As decisões do Tribunal deverão ser proferidas num prazo não superior a 6 (seis) meses da data de sua constituição, cabendo as despesas e custas do processo arbitral à parte que o solicitou”.
2 “Art. 7º Existindo cláusula compromissória e havendo resistência quanto à instituição da arbitragem, poderá a parte interessada requerer a citação da outra parte para comparecer em juízo a fim de lavrar-se o compromisso, designando o juiz audiência especial para tal fim. § 1º O autor indicará, com precisão, o objeto da arbitragem, instruindo o pedido com o documento que contiver a cláusula compromissória. § 2º Comparecendo as partes à audiência, o juiz tentará, previamente, a conciliação acerca do litígio. Não obtendo sucesso, tentará o juiz conduzir as partes à celebração, de comum acordo, do compromisso arbitral. § 3º Não concordando as partes sobre os termos do compromisso, decidirá o juiz, após ouvir o réu, sobre seu conteúdo, na própria audiência ou no prazo de dez dias, respeitadas as disposições da cláusula compromissória e atendendo ao disposto nos arts. 10 e 21, § 2º, desta Lei. § 4º Se a cláusula compromissória nada dispuser sobre a nomeação de árbitros, caberá ao juiz, ouvidas as partes, estatuir a respeito, podendo nomear árbitro único para a solução do litígio. § 5º A ausência do autor, sem justo motivo, à audiência designada para a lavratura do compromisso arbitral, importará a extinção do processo sem julgamento de mérito. § 6º Não comparecendo o réu à audiência, caberá ao juiz, ouvido o autor, estatuir a respeito do conteúdo do compromisso, nomeando árbitro único. § 7º A sentença que julgar procedente o pedido valerá como compromisso arbitral”.
3 JUSTEN FILHO, Marçal. “Administração Pública e Arbitragem: o vínculo com a câmara e os árbitros” In: Revista Brasileira da Advocacia – RBA. Vol. 1. São Paulo: Revista dos Tribunais, abril-junho 2016. pp. 103-150. No mesmo sentido, embora aludindo a inexigibilidade de licitação, GARCIA, Flávio Amaral. A escolha dos árbitros e das Câmaras Arbitrais: licitar ou não?. Ano 2016, nº 150. Disponível em: clique aqui; SOARES, Carlos Henrique; LIMA, Daniela Silva; TOLEDO, Luciana Aguiar S. Furtado de. (DES)NECESSIDADE DE PROCESSO LICITATÓRIO PARA ESCOLHA DE CÂMARA ARBITRAL. In: Revista CEJ / Conselho da Justiça Federal (CJF), Brasília, Ano XVI, n. 58, p. 44-49, set./dez. 2012. Disponível em: clique aqui; e OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Inexigibilidade de licitação na escolha do árbitro ou instituição arbitral nas contratações públicas. Ano 2016, no 285, Disponível em: clique aqui.
4 Embora a sentença tenha referido o regime da inexigibilidade de licitação, a situação seria mais propriamente descrita como de descabimento ou inaplicabilidade da licitação, uma vez que nem mesmo é possível identificar um contrato administrativo que pudesse ser objeto de uma licitação inexigível. É a lição de Marçal Justen Filho: “A escolha do árbitro e da câmara de arbitragem envolve um ato administrativo unilateral, que é praticado no exercício de competência discricionária. Nada impede que essa escolha, inclusive da instituição arbitral, seja realizada consensualmente com o particular. Isso não implica o surgimento de um contrato, na acepção da Lei nº 8.666”. JUSTEN FILHO, Marçal. “Administração Pública e Arbitragem: o vínculo com a câmara e os árbitros” In: Revista Brasileira da Advocacia – RBA. Vol. 1. São Paulo: Revista dos Tribunais, abril-junho 2016. pp. 103-150. _______________

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