Uma lei geral inovadora para o Direito Público, por CarlosAri Sundfeld

Quase 30 anos após os avanços produzidos pela Constituição de 1988 no mundo público, uma nova lei estruturante está surgindo.  E pode trazer mais equilíbrio na ação do estado em todo o Brasil, tornando mais segura a atuação dos gestores e dos parceiros privados, sem comprometer o controle público. Foi finalmente aprovado nas duas casas do Congresso Nacional, e deve ir à sanção presidencial nos próximos dias, o projeto de lei que inclui 11 artigos sobre segurança jurídica e eficiência na criação e aplicação do direito público (PL do Senado 349/15 e PL da Câmara 7.448/17).
A proposta teve origem em pesquisa acadêmica da Sociedade Brasileira de Direito Público – sbdp e do Grupo Público da FGV Direito SP. Seu objeto de análise eram as concepções legislativas fundamentais adotadas no Brasil nos últimos 80 anos a respeito de três problemas básicos: a construção do interesse público, o tratamento da autoridade pública e os papéis dos Poderes do estado e dos órgãos constitucionais autônomos (ver Carlos Ari Sundfeld, Direito Administrativo para Céticos, 2ª. ed., em especial caps. 9, 11 e 12, ed. Malheiros-sbdp, 2014).
A pesquisa identificou uma crise, causada por opções legislativas conscientes, das ideias históricas sobre a divisão de tarefas dentro do estado na construção do interesse público. A conclusão foi que, para superar a crise, seria preciso aceitar duas tendências. Por um lado, a de juízes e controladores compartilharem em alguma medida com a administração pública a construção em concreto do interesse público. Por outro, a de a administração compartilhar uma parte da produção normativa com os legisladores.  Mas o problema, apontou a pesquisa, é que as leis sobre a atuação dos diversos órgãos, muito pontuais e fragmentadas, não foram capazes de inventar o “direito mais que administrativo” (capaz de lidar com a construção do interesse público para além do âmbito da administração), necessário para evitar a ineficiência e o arbítrio no exercício dessas competências compartilhadas. Além disso, a gestão pública no Brasil ficara fragilizada e até acuada, muitas vezes por conta de avaliações apressadas e superficiais. Daí a constatação de que só uma solução legislativa articulada poderá abrir caminho para o equilíbrio no compartilhamento de funções jurídicas criadoras pelos vários Poderes e órgãos constitucionais autônomos.
Essa solução tem alguma identidade com o propósito das leis processuais civil, penal e administrativa. Mas ela precisa ter incidência maior.  Suas normas têm de ser pensadas para o conjunto de Poderes e órgãos constitucionais autônomos, à diferença dos Códigos de Processo, que disciplinam a atuação só da Justiça. A nova legislação também tem de valer para todos os entes da Federação, nisso se distinguindo das leis de processo administrativo federal, estaduais e municipais surgidas no Brasil a partir da lei paulista nº 10.177, de 1998. Portanto, a solução é uma lei nacional e geral de direito público, focada em segurança jurídica e eficiência da ação estatal como um todo.
Mas aí veio o desafio: como conceber essa solução? O primeiro passo, um aprendizado importante, foi entender os elementos simbólicos adotados pelas leis consideradas na pesquisa, e que haviam contribuído para o sucesso histórico delas. O segundo foi testar alternativas de forma, conteúdo e tamanho para a nova lei, considerando viabilidade política (como dialogar ao mesmo tempo com Congresso Nacional, Executivo, órgãos e sujeitos afetados?), representatividade jurídica (que soluções poderiam, apesar do caráter inovador, ser coerentes com a era atual do direito público?) e concretude normativa (de que instrumentos novos o direito público mais se beneficiaria?).  Os testes envolveram um diálogo muito extenso com publicistas acadêmicos e práticos de todos os matizes.
A pesquisa apontou que o tipo de normas que se estava concebendo tinha identidade funcional com o conteúdo da velha Lei de Introdução ao Código Civil – LICC, de 1942, pois, à semelhança desta, a função das novas normas seria regular as bases da criação e aplicação do Direito, mas agora segundo as necessidades surgidas das mudanças desses mais de 70 anos desde a LICC, em especial no campo público. Estava, então, descoberta a fórmula: era preciso publicizar ainda mais a Lei de Introdução, e com isso modernizá-la.
A vantagem da fórmula é sua aderência a teses consolidadas na Ordem dos Publicistas. Uma dessas teses é a de que a simbólica Lei de Introdução nunca foi só do direito privado, mas do Direito em geral. Outra é que a evolução jurídica brasileira no futuro está dependendo de nossa capacidade de, em alguma medida, articular o direito público em sua integralidade, para superar problemas da dispersão ou insuficiência das leis dos ramos jurídicos, cada vez mais especializados.  (Sobre ambos os tópicos, Geraldo Ataliba, prefácio ao livro Fundamentos de Direito Público, de Carlos Ari Sundfeld, Malheiros, 1992).  A alteração da ementa da LICC, em 2010, a qual passou a se chamar Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB sem que suas normas tivessem sido ampliadas, soava como um convite do legislador para a formulação de normas inovadoras.  O caminho estava aberto: era só aceitar esse convite. Por aí seguimos.
A proposta final foi divulgada no trabalho Uma Nova lei para Aumentar a Qualidade Jurídica das Decisões Públicas e seu Controle, de Carlos Ari Sundfeld e Floriano de Azevedo Marques Neto (no livro Contratações Públicas e seu Controle, Carlos Ari Sundfeld, org., Malheiros-sbdp, 2013).
Faria diferença se a proposta chegasse ao Congresso Nacional pelas mãos de parlamentar respeitado no campo jurídico-público. Isso ocorreu. Tornando-se senador em 2015, o professor Antônio Anastasia imediatamente a encampou. E ela começou a tramitar, com audiências no Senado e muitos debates em Procuradorias, Tribunais de Justiça, Tribunais de Contas, OAB e universidades. Logo surgiram estudos de juristas de diversas gerações, analisando e defendendo as inovações. São exemplos os livros Segurança Jurídica e Qualidade das Decisões Públicas (Flávio Unes Pereira, coord., Senado Federal, 2015) e Transformações do Direito Administrativo: consequencialismo e estratégias regulatórias(Fernando Leal e José Vicente Santos de Mendonça, orgs., FGV Direito Rio, 2016).
O apoio do Executivo foi inicialmente obtido no governo Dilma, por iniciativa do então Ministro da Fazenda, Joaquim Levy, ao ensejo dos trabalhos de comissão de juristas criada em agosto de 2015 para formular propostas para a melhoria do ambiente de negócios no Brasil. A comissão contribuiu também com novas ideias, uma das quais seria acolhida pela relatora no Senado, Simone Tebet, e viria a constituir o art. 30 da LINDB, sobre o caráter vinculante das súmulas administrativas e de outros instrumentos jurídicos semelhantes, para estabilizar os entendimentos da administração pública.  Depois, já durante o governo Temer, o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social da Presidência, em sua 46ª reunião plenária, em 7 de março de 2017, defendeu esse fortalecimento da legislação sobre segurança jurídica. Assim, o projeto acabou sendo aprovado no Senado em abril e na Câmara agora em outubro.
As novas normas são relativamente poucas e concisas, ao estilo da LINDB. Sua  linguagem incorpora terminologia e concepções contemporâneas. Fala-se em gestão pública, em políticas públicas, em consequências práticas das decisões,  em obstáculos e dificuldades reais do gestor, em circunstâncias práticas e em alternativas de decisão.  Tudo a ver com uma visão mais atual e pragmática do direito público. Garantem-se direitos e mecanismos para a transição jurídica adequada em caso de mudanças, para a estabilização de relações jurídicas, para a eliminação de incertezas jurídicas, para a solução consensual de dificuldades ou conflitos e para a participação da sociedade na produção de normas administrativas. São ganhos significativos para o direito público.
Característica importante é que, em mais de um dispositivo, a lei fornece instrumentos para que a segurança jurídica e a eficiência sejam viabilizadas pela atuação dos próprios órgãos de controle. Corrige-se, assim, a ênfase da legislação anterior, que se revelou incapaz de compor bem os distintos valores públicos, pois andou multiplicando os espaços de contestação das decisões púbicas sem atentar a sério para os riscos de instabilidade do sistema (ver Floriano Marques Neto e Juliana Bonacorsi de Palma, Os Sete Impasses do Controle da Administração Pública no Brasil, no livro Controle da Administração Pública, Marcos Augusto Perez e Rodrigo Pagani de Souza, coord., Fórum, 2017).
É uma lei que, ao mesmo tempo, preserva as conquistas do controle público e ajuda no indispensável equilíbrio das relações internas do estado e das relações deste com a sociedade. A aposta é esta: que equilíbrio, moderação e inovação possam incentivar nosso desenvolvimento 

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