Arbitragem, confidencialidade e transparência, por Ana Frazão

A utilização progressiva da arbitragem como método de resolução de controvérsias no Brasil e no plano internacional vem modificando profundamente o cenário de composição de conflitos na atualidade. A quantidade e a importância dos casos submetidos à arbitragem, inclusive no que diz respeito aos montantes envolvidos, foram identificadas pela Professora Selma Ferreira Lemes no âmbito da pesquisa Arbitragem em números e valores[1], que evidencia a evolução dos procedimentos arbitrais nas seis maiores câmaras do país.
Em que pese as suas inúmeras vantagens, o protagonismo crescente da arbitragem vem destacando também alguns aspectos negativos da sua utilização, tais como a falta de transparência e accountability, o que pode comprometer o próprio ideal de justiça por ela buscado. Com efeito, a confidencialidade dificulta – quando não impossibilita – a disponibilização de informações sobre o resultado do procedimento arbitral, impedindo a existência de uma jurisprudência respectiva.
Não se trata, obviamente, de um problema apenas brasileiro. Em instigante artigo, Dora Gruner[2]aponta que a arquitetura atual do “sistema internacional de arbitragem” não tem adequadas soluções procedimentais para a proteção do interesse público. Daí propor três tipos de soluções procedimentais para tais casos: (i) publicação de laudos arbitrais; (ii) admissão da intervenção de terceiros; e (iii) estabelecimento de um regulador que possa supervisionar e assegurar transparência ao sistema internacional de arbitragem.
Observa-se, portanto, que a ausência de jurisprudência arbitral não é o único problema relacionado à proteção do interesse público nas arbitragens. Entretanto, é um grave problema, na medida em que gera altos custos sociais. Como ensina Calixto Salomão Filho[3], “A ausência de transparência é frequentemente citada em estudos acadêmicos como um dos maiores responsáveis pelos altos custos sociais da arbitragem. Com efeito, falta de transparência pode ser sinônimo de denegação de justiça. A impossibilidade de ter acesso a uma jurisprudência arbitral consistente muitas vezes é responsável pelo benefício aos agentes com maior poder econômico”.  Daí a sua conclusão de que “A justiça pode ser cega, mas jamais pode ser muda. É preciso que as decisões sejam conhecidas por todos aqueles que possam ser por ela afetados”.
A dificuldade é especialmente grave quando a questão discutida no âmbito de procedimento arbitral diz respeito a questões de ordem pública, a interesses públicos ou mesmo a interesses relevantes de terceiros (stakeholders). Entretanto, mesmo em questões sem maior significado social, a ausência de uma jurisprudência arbitral tem inúmeros inconvenientes.
Com efeito, a ausência de publicidade das decisões arbitrais impede ou dificulta a existência de uma jurisprudência arbitral, que poderia atender a diversos propósitos: (i) direito à informação por parte da coletividade, especialmente quando as controvérsias forem de interesse público ou tiverem repercussão sobre relevantes interesses de stakeholders; (ii) aprendizado coletivo e prevenção de futuros litígios; (iii) legitimidade social das decisões arbitrais, submetendo-as ao escrutínio público (social, acadêmico e profissional); (iv) segurança jurídica e previsibilidade; (v) consolidação de entendimentos que poderiam servir de diretrizes de comportamento em nível micro e macro (lex mercatoria)[4]; (vi) garantia de isonomia e segurança jurídica para partes e para terceiros; e (vii) estabelecimento de concorrência saudável entre as câmaras arbitrais a partir não apenas da reputação dos seus árbitros, mas sobretudo a partir da qualidade de suas decisões.
Atualmente, parece contar com grande aceitação a tese das vantagens de uma jurisprudência arbitral, inclusive para fins de padronização de práticas comerciais[5]. Conforme aponta Gu Weixia[6], a ausência de precedentes ou de princípios jurídicos informadores dessas decisões, bem como a falta de certeza e consistência que isso produz, faz com que advogados dificilmente possam informar seus clientes sobre prováveis desfechos dos procedimentos em curso ou mesmo sobre atuações preventivas. Além disso, um incremento na transparência desses procedimentos contribuiria para um maior grau de conhecimento e compreensão do processo arbitral, bem como de legitimidade do uso da arbitragem internacional de maneira geral[7]. Promove-se, dessa maneira, uma maior proteção dos sujeitos afetados, sejam os acionistas das companhias abertas, sejam seus consumidores, que terão a possibilidade de avaliar os resultados desses procedimentos[8].
Diante do contexto descrito, é importante destacar que, a priori, não há óbices para a formação de uma jurisprudência arbitral, até porque os árbitros exercem função jurisdicional[9]. De fato, a jurisdição não é algo que caiba com exclusividade ao Estado, de modo que a função dos árbitros em nada se diferencia da função dos juízes. A Lei nº 9.307/96 confere às câmaras e tribunais arbitrais o poder de solucionar os litígios existentes em caráter definitivo e o laudo arbitral tem status de título executivo, como ficou, inclusive, assentado no julgamento da Homologação de Sentença Estrangeira nº 5206 pelo Supremo Tribunal Federal[10].
Obviamente que, com tal afirmação, não se sustenta que a jurisprudência arbitral teria as mesmas funções da jurisprudência dos tribunais, muito menos em relação a algumas peculiaridades, tal como a dos precedentes vinculantes. Apenas se afirma que seria possível se pensar em uma jurisprudência arbitral que pelo menos pudesse ser conhecida por todos e aplicada pelas cortes arbitrais, de acordo com seus próprios procedimentos.
E nem se argumente que a confidencialidade seria um óbice apriorístico e incontornável para tal. Afinal, nem a Lei nº 9.307/96 nem a Convenção de Nova Iorque preveem a confidencialidade como sendo inerente à arbitragem. Na verdade, a Lei nº 9.307/96 fala apenas do dever de discrição dos árbitros. Tal conclusão é reiterada pela doutrina, que confirma inexistir um dever geral implícito ou inerente de confidencialidade[11], embora a previsão de confidencialidade esteja prevista nos regulamentos da grande maioria das câmaras arbitrais nacionais e estrangeiras[12].
Mesmo no direito estrangeiro, há várias lições que apontam no sentido de que a confidencialidade, além de não de não ser inerente à arbitragem, pode e deve ser afastada em algumas situações, assim como não deveria, de nenhuma forma, impedir a formação de uma jurisprudência arbitral. Um interessante exemplo é Portugal, país em que a confidencialidade é a regra, salvo acordo expresso em contrário. Entretanto, a lei deixa claro que o dever de confidencialidade não impede a publicação de sentenças e outras decisões do tribunal arbitral, desde que expurgadas de elementos de identificação das partes, salvo se qualquer destas a isso se opuser.
Dessa maneira, já é possível conciliar confidencialidade com jurisprudência arbitral, desde que as câmaras arbitrais possibilitem e que as partes assim concordem, como regra. Fora dessa hipótese, apenas casos excepcionais, como atendimento de determinações legais, justificam o afastamento da confidencialidade[13]. Exemplo nesse sentido seria o dever de divulgar fatos relevantes por parte de uma companhia aberta[14].
Ocorre que mesmo a concordância das partes não é requisito indispensável para a publicação dos laudos arbitrais, pois há meios de se conciliar a confidencialidade com as necessidades de uma jurisprudência arbitral. Nesse sentido, Fouchard, Gaillard e Goldman[15] mostram que a confidencialidade não é violada pela publicação das razões do laudo arbitral em uma base anônima. Basta notar que, segundo o item 7.10 do regulamento da Câmara de Arbitragem do Mercado, “Periodicamente, a Câmara de Arbitragem produzirá a publicação de Ementário das Sentenças Arbitrais proferidas, agrupadas por temas tratados, as quais poderão ser levadas em conta pelos árbitros, como simples referencial, a fim de orientar suas decisões. A publicação das sentenças suprimirá qualquer elemento que possibilite a identificação do procedimento”. Em seguida, dispõe o item 9.1.2. que “A divulgação das informações na forma do item 7.10 não representará violação ao sigilo do procedimento arbitral”.
Para a divulgação dos laudos de forma anônima, várias soluções podem ser pensadas além da publicação sem o nome das partes e sem os fatos que possibilitem a identificação do processo. Uma delas, como se viu acima, seria a publicação das decisões de forma agregada, por temas e não por casos. Uma coisa é certa: para atender à necessidade de uma jurisprudência arbitral, é necessária a identificação dos elementos fundamentais para compreender o litígio, sem o que a divulgação dos laudos não atenderá aos seus objetivos.
Todavia, apesar de todos os aspectos já abordados, poucos avanços vêm ocorrendo na tentativa de se construir uma jurisprudência arbitral. Embora muitas câmaras brasileiras e internacionais contemplem a possibilidade de publicação de laudos arbitrais, em forma de ementários ou não, é grande a discricionariedade das câmaras. São elas que decidem se vão publicar, o que vão publicar ou quando vão publicar e, em muitos casos, ainda dependem da expressa concordância das partes.
Dessa maneira, existe hoje um problema grave para a formação do direito em decorrência da forma como as arbitragens têm sido conduzidas em relação à divulgação dos seus resultados. Um conjunto de fatores tem impossibilitado que haja a formação de uma jurisprudência arbitral consistente, embora não existam óbices incontornáveis para a solução do problema. Pelo contrário, existem soluções possíveis e viáveis.
Assim, é necessário que possamos avançar na discussão sobre a necessidade de uma jurisprudência arbitral, especialmente naquelas questões que dizem respeito a matérias de ordem pública, a interesses públicos relevantes ou a interesses diretos de terceiros, sem o que os custos sociais da arbitragem podem ultrapassar as suas vantagens privadas.

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