Ação de dissolução parcial de sociedade no novo CPC, por Mônica Mendonça Costa e Mirelle Bittencourt Lotufo

Um dos litígios judiciais de maior recorrência em contencioso societário são as ações de dissolução parcial de sociedade, que geralmente congregam pedidos de extinção do vínculo societário por parte de um ou mais sócios e de apuração de haveres.
São diversas as discussões travadas no âmbito dessas ações: se houve justa causa apta a ensejar a exclusão do sócio; se a natureza da sociedade permite o exercício do direito de retirada pelo sócio; se houve a convocação prévia para comparecimento em reunião de sócios, visando a deliberar sobre a exclusão de um sócio, com observância do tempo mínimo necessário previsto em lei e no contrato social etc. Entre as numerosas discussões, um aspecto gera uma grande  divergência entre os sócios: os critérios para apuração dos haveres, ou seja, dos valores devidos pela sociedade ao sócio que dela se desliga.
Até a promulgação da Lei nº 13.105/2015 (“Novo CPC”), muitas das discussões em ações de dissolução parcial de sociedade, apesar de frequentes e reiteradas, eram reguladas de forma lacônica. A ausência de regulamentação expressa de determinados assuntos e a grande população de casos sobre a matéria motivou a realização de pesquisas empíricas e estatísticas sobre o assunto.
O fruto dessas pesquisas, em que se analisaram disputas societárias nos 27 tribunais estaduais no Brasil, se consolidou na primeira formulação de proposta legislativa pautada em dados concretos, resultando no Capítulo V do Título III do Novo CPC, que passou a regular de forma expressa o procedimento especial referente à ação de dissolução parcial de sociedade.
Apesar de se tratar de um código de processo, parte das disposições constantes no Capítulo V do Título III do Novo CPC possui normas de natureza substancial. É o caso, por exemplo, das disposições previstas nos artigos 605 (definição da data da resolução da sociedade), 606 (definição do critério contábil para apuração dos haveres, em caso de omissão no contrato social), 607 (possibilidade de revisão judicial da data da resolução da sociedade e do critério de apuração de haveres até o início da perícia), 608 (valores que integram os haveres até a data da resolução da sociedade) e 609 (forma de pagamento dos haveres).
O fato de o Novo CPC prever normas de direito material poderia, em um primeiro momento, causar uma certa estranheza. Isso porque, o processo se desenvolve como o instrumento apto a garantir a efetividade do direito material no âmbito do contencioso, pois, como bem ensina José Carlos Barbosa Moreira, será efetivo o processo que constitua instrumento eficiente de realização do direito material[1]. Logo, poderia suscitar que um diploma processual deveria conter tão somente normas processuais que se prestassem a garantir a efetividade das normas de natureza substancial.
Contudo, sabemos que não é o diploma que define a natureza da norma, e sim a norma propriamente dita, cuja natureza se extrai de sua exegese individualizada. Normas de natureza substancial e processual podem conviver de forma harmônica em um mesmo diploma, sendo aplicadas conforme cada caso. É o caso, por exemplo, de inúmeras disposições da Lei nº 6.404/1976 e da Lei nº 11.101/2005.
O Direito deve se prestar, sobretudo, para pacificar as relações sociais que urgem por uma solução prática aos conflitos instaurados. As diversas discussões existentes em ações de dissolução parcial de sociedade, hiporreguladas, instavam por uma solução legislativa. Sendo assim, ainda que o Novo CPC não seja, em tese, o meio recomendável para a sua regulamentação, eis que voltado às questões instrumentais, a positivação de normas expressas em casos lacônicos eleva o nível de segurança jurídica das relações sociais.
A identificação das normas de natureza substancial, inseridas no procedimento especial da ação de dissolução parcial de sociedade, não possui apenas relevância para discussões acadêmicas. Em especial, identificar quais são as normas de direito material possui especial relevância na aplicação do princípio do tempus regit actum para as normas de natureza substancial.
Visando a regular as questões processuais intertemporais, o artigo 1.046 do Novo CPC previu que, ao entrar em vigor, as disposições do referido diploma legal se aplicariam aos processos pendentes, ficando revogada a Lei nº 5.869/1973. Já o artigo 14 do Novo CPC prevê que a norma processual não retroagirá e será aplicável imediatamente aos processos em curso, respeitados os atos processuais praticados e as situações jurídicas consolidadas sob a vigência da norma revogada – o que já era matéria de entendimento do Superior Tribunal de Justiça, ao reconhecer que a instrumentalidade do processo não exclui a aplicação da teoria do isolamento dos atos processuais[2].
Assim, o artigo 14 do Novo CPC prevê a não retroatividade das normas processuais e o artigo 1.046 do Novo CPC prevê a imediata aplicação das disposições do Novo CPC aos processos pendentes. E quanto às normas de direito material reguladas pelo Novo CPC?
O artigo 6º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro dispõe sobre as questões de direito intertemporal, prevendo que a lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. Nos termos do § 1º do mesmo dispositivo, ato jurídico perfeito é aquele que já se consumou segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou. Ainda, a própria Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso XXXVI, prevê que a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.
Trata-se da regra do tempus regit actum, ou seja, o tempo é o que rege o ato. Neste sentido, o direito é adquirido à época da consumação do ato, em regra, não retroagindo a lei aos fatos pretéritos.
O impacto do tempus regit actum é notável para as disposições de natureza substancial do procedimento especial de ação de dissolução parcial de sociedade no Novo CPC.
A título exemplificativo e no que cinge aos critérios para apuração de haveres, um dos maiores pontos de atenção no contencioso societário, o artigo 1.031 do Código Civil prevê que, salvo disposição contratual em contrário, nos casos em que a sociedade se resolver em relação a um sócio, o valor da sua quota será liquidado com base na situação patrimonial da sociedade, verificada em balanço especialmente levantado. Ou seja, o artigo 1.031 do Código Civil prevê que, para calcular o valor da quota do sócio, será levantado o balanço especial[3]. Em breve síntese, o balanço especial é aquele que, simplesmente, atualiza o valor constante no balanço patrimonial ordinário até a data da resolução da sociedade, em qualquer dia do ano, salvo o último dia do exercício social – dado ser este o critério temporal para levantamento do balanço patrimonial ordinário.
Por outro lado, o artigo 606 do Novo CPC prevê que, na omissão do contrato social, o juiz definirá, como critério de apuração dos haveres, o valor patrimonial apurado em balanço de determinação. Contrariamente ao balanço especial, o balanço de determinação contabiliza os ativos e passivos no balanço, atualizando-os e realizando uma avaliação de cada item pelo valor de mercado ou custo de saída[4]. No balanço de determinação, tal como sugere o caput do artigo 606 do Novo CPC, leva-se em consideração os intangíveis da sociedade, contabilizando-os como ativos para fins de cálculo do valor das quotas.
O cálculo dos haveres por meio do levantamento do balanço especial ou do balanço de determinação pode representar, assim, resultados numéricos distintos quanto ao valor a ser pago pela sociedade e é neste descasamento de valores que reside a maior parte das discussões entre os sócios. A análise da irretroatividade das normas de direito material influi, assim, diretamente nos resultados práticos dos litígios.
Caso o sócio tenha sido excluído da sociedade em período anterior à vigência do Novo CPC, o magistrado não deverá aplicar os critérios contábeis de cálculo de apuração de haveres com base no disposto no artigo 606 do Novo CPC, eis que inaplicáveis à época.
Tal como a positivação de questões até então reguladas de forma lacônica, o princípio da irretroatividade também incrementa a segurança jurídica necessária, em especial, em discussões empresariais. A previsibilidade das decisões – inclusive por meio da não aplicação da norma posta a fatos pretéritos – é responsável por elevar o nível da segurança jurídica do mercado. Caso haja imprevisibilidade quanto à aplicação das disposições do procedimento especial da ação de dissolução parcial de sociedade, a segurança jurídica será automaticamente afetada. Isso porque, como ressalta Fábio Ulhoa Coelho, é necessário que haja uma previsibilidade das decisões judiciais no âmbito empresarial. É claro que há uma tolerável margem de imprevisibilidade, mas a insegurança jurídica passa a existir quando é extrapolado esse limite[5]. Consequentemente, a inobservância do tempus regit actum, para fins de incidência das normas de direito material do Capítulo V do Título III do Novo CPC, eleva a insegurança jurídica.
Até o momento, as discussões mantidas nos tribunais estaduais se atêm mais à aplicação, ou não, do Novo CPC quanto às questões processuais, do que para as questões de natureza substancial. No entanto, não se pode ignorar que o Novo CPC elencou normas de direito material em seu Capítulo V do Título III e que, consequentemente, não podem ser aplicadas aos fatos que ocorreram antes da vigência do Novo CPC.
Resta esperar que os magistrados atentem e respeitem a irretroatividade das normas de natureza substancial aos fatos pretéritos à vigência do Novo CPC, em atendimento aos princípios e regras do direito intertemporal e da necessária previsibilidade que as questões empresariais demandam do Poder Judiciário.

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[1] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Por um processo socialmente efetivo. Revista de Processo. São Paulo, v. 27, n. 105, p. 183-190, jan./mar. 2002, p. 181.
[2] MC 13.951/SP, Min. Rel. Nancy Andrighi, 3ª Turma, julgado em 11/03/2008. DJ 01/04/2008.
[3] A interpretação do teor do artigo 1.031 do Código Civil também gerou discussão. Há quem interprete que o artigo 1.031 do Código Civil, ao determinar o levantamento de um balanço especial no momento de afastamento do sócio, estaria, na verdade, se referindo ao levantamento do balanço de determinação, posto que este seria o método contábil mais indicado para apuração do valor presente da quota. No entanto, não compactuamos com tal entendimento, dado ser regra basilar da hermenêutica jurídica o fato de que a lei não contém palavras inúteis e, neste sentido, o artigo 1.031 do Código Civil faz menção ao balanço especial.
[4] COELHO, Fábio Ulhoa. A ação de dissolução parcial de sociedade. Revista de Informação Legislativa, v. 190, 2011, p. 141-155.
[5] COELHO, Fábio Ulhoa. O Projeto de Código Comercial e a proteção jurídica do investimento privadoRevista Jurídica da Presidência. Brasília, v. 17, n. 112, jun./set. 2015, p. 243.

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