O contrato na tríade universal: Estado, mercado e pessoa, por Fernando Rodrigues Martins

A evolução da humanidade, dentre tantas criações e descobertas, também tem causa na figura do contrato. Em rica passagem histórica, Heródoto narra as entabulações entre os cartagineses e vizinho povoado insular pelas quais as trocas de ouro por suprimentos eram realizadas. Essa base, por si só, é suficiente para demonstrar que a conceituação doutrinária do contrato não perdeu de vista o iter histórico: relação jurídica de natureza patrimonial entre dois ou mais sujeitos protegida pelo sistema jurídico.
Em rápida exortação, é no mínimo curioso expressar que na dimensão filosófica o contrato ganhou contornos notabilíssimos, sendo indicado como instrumento útil à criação do Estado e, via de consequência, à geração de deveres e direitos subjetivos. Três pensadores são passíveis de indicação: Hobbes, para quem o ‘homem sendo lobo do homem’ torna-se exigível mal necessário: o Estado para controlar e impor deveres aos ‘súditos’; Locke, na defesa da existência de um ‘pacto social’ onde os cidadãos escolhem o governante, sendo que esse, por sua vez, lhes garante direitos básicos como liberdade e propriedade; e Rousseau, que discursando sobre a igualdade entre os homens a eles credita a soberania popular, propondo a partir disso a renúncia da vontade individual para a formação da vontade geral. Eis o contratualismo como fundamento do Estado, perfilhado nos elementos básicos da conceituação doutrinária acima: vontade, vínculo, reciprocidade.
Obviamente, as Constituições não podem (e nem mesmo devem) ser tratadas como contrato, mas cabe o registro de que o constitucionalismo (inclusive, o contemporâneo) crivou dentre as premissas fundantes as noções contratualistas, tanto que preceitos como igualdade e direitos civis e políticos foram claramente colhidos desta fonte tão significativa, a ponto de John Rawls, famoso filósofo estadunidense, nela basear-se para a formulação da ‘posição original de igualdade’ e conhecimento a priori pelo ‘véu da ignorância’.
No âmbito do mercado, o contrato encontra maior escopo: a circulação de riquezas a partir de infinitas interpolações em rede globais essenciais ao incremento das empresas, dos setores de produção, das exportações de ‘commodities’, da importação de tecnologias, da distribuição de produtos e serviços, da exploração dos recursos naturais, da fabricação de incontáveis gêneros para atendimento das necessidades básicas, da construção de objetos imobiliários e mobiliários.
Neste ponto, é claramente verificável a passagem do contrato-fordista para o contrato-toyotista, onde a mão-de-obra deve ser multifuncional e qualificada; a mecanização é flexibilizada conforme a demanda (evitando-se excedentes); há amplo controle visual de todas as etapas da produção; são implantados sistemas de qualidade total, ‘just in time’ para exata ocupação do tempo e espaço, bem como pesquisa de satisfação junto aos ‘clientes’. Igualmente, a redução de custos ganha proeminência para o aumento dos lucros e facilitação das contratações pelos empresários.
As críticas deste ambiente (e são muitas) não devem ser dirigidas ao contrato, senão ao mercado que pretende ser uma garantia de liberdade absoluta, lugar de méritos, de riscos e ocasiões, senão o pior: autor exclusivo das próprias regras (cosmos) onde o Direito não tem normatividade nem coerção, o que neste ponto revela como consequências o enfraquecimento das relações sociais e a extrema vulnerabilidade dos consumidores.
Chegou-se ao ponto na globalização – e que aqui convenhamos o mais correto seria tratar como globalismo – em indicar, como fez Francesco Galgano, a substituição da lei pelo contrato e do legislador pelo advogado que redige os contratos, dado que a soberania outrora absoluta (com Hegel) foi relativizada (com Kant), permitindo que recentes modelos, negociações e tipos de contratualizações singrassem na aldeia global criando novas regras, novas normas. Talvez, possível solução esteja com Pietro Perlingieri na mediação entre mercado, solidariedade e direitos humanos.
É justamente neste último ponto (direitos humanos) que está alocada a pessoa, centro de imputação jurídica ou valor inesgotável do Direito. A recontextualização da pessoa (consciência, resistência e emancipação, conforme propõe Joaquin Herrera Flores) pelo Direito permitiu acréscimo valorativo a todos os institutos jurídicos e, especialmente, o contrato.
O Direito deixou de ser observado tão somente pela teoria do conhecimento (epistemologia) como conjunto de dispositivos ou mera idealidade, avançando para a ética e metaética (justiça). É realidade social. Tanto deixa marcas na coletividade quanto dela também recebe cicatrizes. Neste fluxo, diversas legislações passaram a contemplar não apenas interpretação favorável ao vulnerável, mas igualmente efetividade e novos requisitos de validade nas interações negociais, como no caso do CDC, Estatuto do Idoso, Estatuto da criança e do adolescente, Estatuto da pessoa com deficiência e até mesmo demais leis dirigistas como a Lei de Locações.
É nesta realidade policontextural que os contratos existenciais ganham espaço como modelo a dar efetividade ao livre desenvolvimento da personalidade e, via de consequência, reoxigenam a figura do contrato em amplo diálogo com os direitos humanos. Eis uma figura hoje apta a não ter como escopo apenas a circulação de riquezas, a inquietação pela intensa lucratividade, senão a transformação de vidas.
Repensar o contrato diariamente significa compreendê-lo como essencial à humanidade e ao dever-fazer dos direitos humanos.

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