Em abril de 2017, o Supremo Tribunal Federal, apreciando, em sede de repercussão geral, os recursos extraordinários nº 601.720 e nº. 594.015, ambos referentes à cobrança de IPTU para imóveis pertencentes a entes públicos, mas explorados comercialmente por empresas privadas arrendatárias, ou mesmo sociedades de economia mista, fixou a seguinte tese: “A imunidade recíproca, prevista no art. 150, VI, a, da Constituição não se estende a empresa privada arrendatária de imóvel público, quando seja ela exploradora de atividade econômica com fins lucrativos. Nessa hipótese é constitucional a cobrança do IPTU pelo Município”.
Nos casos concretos, discutia-se no RE 601.720 a imunidade de IPTU para revendedora de veículos situada na área do aeroporto de Jacarepaguá, no Rio de Janeiro e no RE 594.015 a imunidade em favor da Petrobrás, em área portuária.
O julgamento, amplamente divulgado pela imprensa como solução definitiva a respeito da discussão da incidência do IPTU em áreas públicas exploradas por particulares, além de não ter enfrentado questões atinentes à natureza jurídica dos diversos contratos de concessão de áreas públicas (que podem, inclusive, afastar a tributação), muito especialmente em relação aos empreendimentos situados em áreas aeroportuárias, não tornou definitiva a possibilidade de tributação.
O acórdão referente ao RE 594.015 foi disponibilizado em 25 de agosto de 2017 e o do RE 601.720 ainda não foi publicado, mas, independentemente disso, tem-se que, em ambos os casos, julgados em conjunto, prevaleceu a impossibilidade de se estabelecer situações que firam a isonomia, atraindo, assim, pretenso tratamento privilegiado àqueles que têm suas sociedades funcionando em áreas de concessão. Para Barroso: “Entender que os particulares que utilizam os imóveis públicos para exploração de atividade econômica lucrativa não devem pagar IPTU significa colocá-los em vantagem concorrencial em relação às outras empresas”.
Chama atenção, primeiro, que a utilização do argumento de igualdade concorrencial, na essência, é contrária à súmula 52 do próprio Supremo Tribunal: “Ainda quando alugado a terceiros, permanece imune ao IPTU o imóvel pertencente a qualquer das entidades referidas pelo art. 150, VI, “c”, da Constituição Federal, desde que o valor dos aluguéis seja aplicado nas atividades para as quais tais entidades foram constituídas.”
Isso porque, embora se saiba que nos casos das entidades religiosas o reconhecimento da imunidade tenha sido pretendido, e alcançado, em nome próprio (e seja condicionado à destinação dos recursos à atividade religiosa) a imunidade, em hipóteses em que os imóveis são destinados à locação, na prática também cria ambiente de desigualdade comercial: milhares de pessoas jurídicas locatárias não pagam IPTU (via repasse) por estarem em imóveis pertencentes a entidades religiosas, ao passo que, outros tantos vizinhos se sujeitam ao recolhimento (também via repasse).
Mais, passo adiante, ao permitir que o IPTU incida indistintamente em imóveis localizados em áreas públicas, atrai-se, em muitos casos, sobreposição de conceitos e aspectos contratuais.
Em diversos dos contratos de concessão têm-se apenas a transferência do direito de uso (relação de caráter pessoal) e não do direito real de uso (relação de caráter real, que garante, inclusive, o direito de sequela). No direito de uso, a posse é precária e, portanto, não há animus domini, que permitiria a cobrança do IPTU.
Com efeito, o artigo 34 do Código Tributário Nacional define como contribuinte do imposto o “proprietário do imóvel, o titular do seu domínio útil, ou o seu possuidor a qualquer título.”. Argumentos principiológicos ou interpretações constitucionais simplesmente não são hábeis a alterar essa verdade inconteste: a cobrança de IPTU em face do concessionário do direito de uso cria hipótese de incidência não existente.
Essa distinção, que atrai a inexistência de fato gerador, não foi devidamente tratada no julgamento. E, por isso, o cenário que se aventa é de dúvida. Se, por um lado, o STF possibilitou a tributação, por outro, há vasta jurisprudência do STJ no sentido de que o contrato de concessão de direito de uso não transfere animus domini (e, portanto, não acarreta a ocorrência do fato gerador do IPTU).
Aliás, curiosamente, a Ministra Rosa Weber, no RE 594.015, tendo votado pela impossibilidade de reconhecimento da imunidade alcançar o particular, acabou convalidando que nem todos os contratos são capazes de atrair a incidência do IPTU (apenas os que transferem animus domini), em que tese a Ministra tenha, contraditoriamente, votado em sentido contrário:
E, aí, a jurisprudência sedimentada em torno do tema, como trazida pelo eminente Ministro Fachin, esposou o entendimento de que a posse capaz de configurar um fato gerador do IPTU é apenas aquela que decorre de um direito real ou que se exerce com animus domini, vale dizer, com a pretensão de adquirir por usucapião a propriedade do bem imóvel localizado em perímetro urbano. (grifou-se)
E também o Ministro Fachin, cujo voto foi mencionado pela Ministra, toca no ponto e, igualmente, reconhece a distinção – tendo ele, coerentemente, votado pela possibilidade de reconhecimento da imunidade.
E a síntese do meu voto, Senhora Presidente – vou juntar declaração -, leva em conta, de uma parte, tratar-se o IPTU de um imposto de natureza real, e, portanto, a natureza jurídica do bem público cedido onerosamente, ou não – ou seja, submetido ao regime de arrendamento, ou não -, não se altera. E, portanto, quem o recebe na qualidade de possuidor direto evidentemente que não é possuidor com animus domini; tem o que se denomina, classicamente, de opinio seu cogitatio domini – pode até desejar, obviamente, tornar-se titular, mas titular não é. (grifou-se)
Além disso, uma outra questão (essa apenas vinculada aos aeroportos em si), há de ser enfrentada. De acordo com o artigo 38 do Código Brasileiro de Aeronáutica, o aeroporto, enquanto mantida a destinação especifica, mesmo não sendo de propriedade da União, é bem público por equiparação.
O artigo 39 da lei, abaixo colacionado, traz a definição do que são aeroportos:
Art. 39. Os aeroportos compreendem áreas destinadas:
I – à sua própria administração;
II – ao pouso, decolagem, manobra e estacionamento de aeronaves;
III – ao atendimento e movimentação de passageiros, bagagens e cargas;
IV – aos concessionários ou permissionários dos serviços aéreos; V – ao terminal de carga aérea;
VI – aos órgãos públicos que, por disposição legal, devam funcionar nos aeroportos internacionais;
VII – ao público usuário e estacionamento de seus veículos;
VIII – aos serviços auxiliares do aeroporto ou do público usuário;
IX – ao comércio apropriado para aeroporto.
Embora o caso concreto julgado pelo Supremo Tribunal Federal (RE 601.720), que envolvia uma concessionária de venda de veículos, realmente não pudesse atrair a problemática (já que uma concessionária que vende veículos a terceiros realmente não tem qualquer tipo de utilidade que se adeque à definição de aeroporto), a questão, sobretudo em razão dos incisos VIII e IX indica que muitos das empresas situadas em aeroportos devem ter seus estabelecimentos equiparados a bens públicos (e, sob essa justificativa, impossibilitados de sofrerem tributação).
Pegue-se, como exemplos, uma locadora de veículos, um hotel, lojas de qualquer natureza, centros de convenções etc. Tudo isso, e não parece haver dúvidas, ou bem é serviço auxiliar ao aeroporto e do público usuário, o bem é comércio apropriado para aeroporto. Todos, por equiparação legal, são bens públicos.
Embora mais outra vez a consequência seja a mesma (impossibilidade de tributação por conta do artigo 150, VI, ‘a’ da Constituição), tem-se, a bem da verdade, um bem efetivamente público sendo tributado.
Nos muitos aeroportos brasileiros há contratos de concessão amarrados à exploração de atividades especificas (como, por exemplo, a instalação de hotéis e centro comercias). Nessas hipóteses, fica ainda mais escancarado a destinação aeroportuária das concessões: afinal, se a INFRAERO, estatal que detém praticamente o monopólio do setor, direciona procedimento licitatório especifico a determinado fim, seria ao menos de se estranhar que o fizesse livremente, sem qualquer tipo de vinculação ao seu objeto legal.
Aliás, negar que determinadas atividades se enquadram no rol do artigo 39 com base no julgamento do STF (notadamente, o fato de haver exploração empresarial), atrairia, também, a tributação de IPTU para aeroportos privatizados?
Como se nota, portanto, embora seja possível afirmar que, ante o julgamento do Supremo, as concessionárias de direito real, que exerçam atividades estranhas à utilidade aeroportuária, devem sofrer a tributação do IPTU, o tema, em relação às concessionárias de uso e, também de direito de direito real, que explorem atividades aeroportuárias, não foi resolvido pelo STF, remanescendo, ainda, ampla discussão para essas hipóteses.
Comentários
Postar um comentário