Embargos de declaração e prequestionamento, por Rodrigo Becker e Marco Aurélio Peixoto

Na vigência do Código de Processo Civil de 1973, criou-se, na jurisprudência dos Tribunais Superiores, um requisito para conhecimento do recurso especial e extraordinário consubstanciado no que se denominou “prequestionamento”. Por ele, para que um recurso excepcional pudesse ser examinado, no mérito, por essas Cortes, era necessário que a matéria impugnada tivesse sido previamente debatida no acórdão recorrido, fosse ele o aresto da apelação ou dos embargos declaratórios no Tribunal de origem.
Esse denominado prequestionamento se constituiu em verdadeiro pressuposto[1] de admissibilidade dos recursos especial e extraordinário, passando a ser tratado em algumas súmulas, utilizadas diariamente pelos relatores dos recursos no STF e no STJ, e pelos Presidentes de Tribunais de TJ e TRF nos juízos de admissibilidades – em ambos os casos, com o objetivo de impedir a análise das impugnações recursais.
Confira-se, a propósito, o teor das três súmulas (enunciados) mais utilizadas[2] pelas Cortes Superiores:

Súmula 211/STJ: Inadmissível recurso especial quanto à questão que, a despeito da oposição de embargos declaratórios, não foi apreciada pelo Tribunal a quo.

Súmula 282/STF: É inadmissível o recurso extraordinário, quando não ventilada, na decisão recorrida, a questão federal suscitada.

Súmula 356/STF: O ponto omisso da decisão, sobre o qual não foram opostos embargos declaratórios, não pode ser objeto de recurso extraordinário, por faltar o requisito do prequestionamento.

A partir da exegese desses enunciados, criou-se a seguinte dinâmica no Superior Tribunal de Justiça: para que o recurso especial fosse conhecido, era necessário o prequestionamento; caso a matéria que a parte pretendesse impugnar no recurso não tivesse sido debatida no acórdão de origem (falta de prequestionamento), deveria ela opor embargos declaratórios, para prequestionar (suscitar) o tema; se, mesmo assim, o Tribunal se mantivesse silente, entendia o STJ que não havia prequestionamento (súmula 211, acima).
Nesse ponto, faz-se necessária uma importante diferenciação que, via de regra, gerava confusão: prequestionamento implícito e ficto. Enquanto aquele ocorre quando, a despeito de expressa menção, isto é, indicação do artigo ou texto legal violado, o tribunal manifesta-se acerca do tema, este, realiza-se justamente diante da ausência de enfrentamento da questão pelo órgão julgador, concretizando-se pela simples oposição dos embargos. Em verdade, para o STJ era possível o prequestionamento implícito, enquanto o ficto era exatamente o que a Súmula 211 pretendia vedar.
Portanto, se a parte pretendesse ver a questão “omissa”[3], a despeito da oposição de aclaratórios, expressamente debatida pelo Tribunal a quo, deveria interpor o recurso especial e, antes de incursionar no mérito, alegar violação ao art. 535 do CPC/73, para que, se assim entendesse o STJ, fosse provido o recurso, determinando o retorno dos autos à origem para julgamento dos embargos de declaração com taxativa análise da referida questão.
A chamada “preliminar de violação ao art. 535 do CPC/73” virou rotina nos recursos especiais por todo o país, notadamente porque os Tribunais Estaduais e Federais, geralmente, respondiam aos embargos declaratórios de forma genérica, atraindo a necessidade de as partes apontarem tal violação para verem seus embargos devidamente respondidos.
Com o advento do CPC/15, os embargos de declaração “prequestionadores”, abordados anteriormente, e que tinham previsão apenas jurisprudencial, passaram a ter tratamento expresso legal:

Art. 1.025.  Consideram-se incluídos no acórdão os elementos que o embargante suscitou, para fins de pré-questionamento, ainda que os embargos de declaração sejam inadmitidos ou rejeitados, caso o tribunal superior considere existentes erro, omissão, contradição ou obscuridade.

Observa-se, assim, a positivação do chamado prequestionamento ficto, isto é, aquele que ocorre quando a simples oposição dos embargos de declaração já preenche o requisito do prequestionamento da matéria tratada nos recursos especial e extraordinário, independentemente de seu debate expresso no acórdão recorrido.
Então, diferentemente da sistemática que era adotada pelo Superior Tribunal de Justiça, na vigência do CPC/73, na qual, para ser alvo de recurso, a matéria deveria ter sido expressamente tratada no acórdão recorrido, agora, não obstante o pronunciamento do juízo a quo, em sede de embargos, a questão poderá ser apreciada pelos tribunais superiores.
Ressalte-se, apenas, que, para a matéria ser considerada devidamente prequestionada, a teor do art. 1.025 do CPC, o tribunal superior deve admitir existentes erro, omissão, contradição ou obscuridade no acórdão recorrido.
Dessa forma, a ideia de prequestionamento ficto, em verdade, ocorre secumdum eventum litis, em que somente em caso de análise positiva pelo Tribunal, é que a matéria será considerada como debatida pelo aresto a quo.
No mesmo sentido, já se posicionava o STF, anteriormente ao CPC/2015, admitindo, em alguns julgados, o prequestionamento ficto, a partir de uma interpretação de seu enunciado nº 356: “o ponto omisso da decisão, sobre o qual não foram opostos embargos declaratórios, não pode ser objeto de recurso extraordinário, por faltar o requisito do prequestionamento”.
A título de ilustração, a Suprema Corte entendia que “reagitada a questão constitucional não enfrentada pelo acórdão, mediante embargos de declaração, se tem por prequestionada a matéria, para viabilizar o recurso extraordinário, ainda que se recuse o Tribunal a quo a manifestar-se a respeito”[4].
Na mesma linha, o CPC/15, privilegiando os princípios da primazia da resolução do mérito, bem como da razoável duração do processo, teve como escopo justamente proporcionar maior eficácia e segurança jurídica, visto que, ao condicionar o prequestionamento ao acolhimento dos embargos, acabava por esvaziar os aclaratórios, pois, na prática, dificilmente, o órgão julgador, em segunda instância, provia os declaratórios opostos em face de acórdão que ele próprio exarou.
Ainda sobre a mudança realizada pelo código, Wambier e Talamini fazem perfeita análise:

Em suma, o ordenamento procura impedir que possa haver falta de prequestionamento por motivo não imputado à parte. Se a parte devidamente desincumbir-se de seu ônus, a matéria ficará prequestionada. Assim, afastam-se alguns dos óbices que indevidamente se punham à admissão dos recursos especial e extraordinário.[5]

No entanto, passados mais de um ano da entrada em vigor do referido código, dúvida ainda persiste em relação à aplicação deste dispositivo. Isto porque, nos termos da Súmula 211 do STJ, acima referida, é inadmissível recurso especial quanto à questão que, a despeito da oposição de embargos declaratórios, não foi apreciada pelo Tribunal a quo.
Esse enunciado colide frontalmente com as disposições do art. 1025, na medida em que trata a questão de forma diversa: enquanto a súmula exige que os embargos declaratórios sejam opostos e examinada expressamente a omissão apontada, o dispositivo do código estabelece que não é necessário o exame da referida omissão.
Muito embora a súmula tenha sido editada na vigência do Código de 1973, o Superior Tribunal de Justiça insiste em aplicá-la, fazendo uma interpretação, demasiadamente extensiva, na tentativa de harmonizá-la com o CPC/2015.
Veja-se a propósito que, em 27.06.2017, foi proferido o seguinte acórdão por aquela Corte Superior:

1.1.  “A oposição de Embargos de Declaração após a formação do acórdão, com o escopo de que seja analisado tema não arguido anteriormente no processo, não configura prequestionamento, mas pós-questionamento, razão pela qual a ausência de manifestação do Tribunal sobre a questão não caracteriza negativa de prestação jurisdicional” (AgInt no AREsp 885.963/SP, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 22/9/2016, DJe 11/10/2016).
1.2.  Ainda que assim não fosse, “a admissão de prequestionamento ficto (art.  1.025 do CPC/15), em recurso especial, exige que no mesmo recurso seja indicada violação ao art. 1.022 do CPC/15, para que se possibilite ao Órgão julgador verificar a existência do vício inquinado ao acórdão, que uma vez constatado, poderá dar ensejo à supressão de grau facultada pelo dispositivo de lei” (REsp 1639314/MG, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 4/4/2017, DJe 10/4/2017).
  1. Agravo interno improvido. (AgInt no AREsp 1043549/RS, Rel. Min. MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, DJe 01/08/2017)

A grande discussão cinge-se, portanto, a respeito da possibilidade de aplicação, ou não, da Súmula 211 do STJ, sob a égide do CPC/15, senão vejamos:
Publicado em agosto de 1998, isto é, durante a vigência do CPC/73, o referido enunciado privilegia os ideais deste, outrora já mencionados. Assim, com a entrada em vigor do Código de Processo Civil de 2015, imperioso analisar se ele foi, ou não, recepcionado pelo novo diploma legal.
Com efeito, uma das principais diretrizes do NCPC é a razoável duração do processo, conforme consignado em diversos dispositivos e acima mencionado. Observe-se, no entanto, que a sistemática da Súmula 211 vai justamente em sentido oposto a esse princípio, visto que enseja, com a interposição do recurso excepcional, a devolução dos autos ao tribunal a quo, para, só depois de sua expressa manifestação, incursionar pelo mérito da questão, no novo recurso especial a ser interposto, pois, só então, a questão estaria prequestionada.
Nesse mesmo sentido, caminha parte da doutrina processualista:

O disposto no art. 1.025 do NCPC acaba por superar o entendimento firmado na Súmula 211/STJ, pois esta prega que o julgamento negativo dos embargos de declaração não permite o prequestionamento (pois o ponto continuou sem estar decidido), vedando-se, assim, a análise de tal matéria pela instância excepcional. Assim, a seguir a orientação da Súmula 211/STJ, somente era possível apreciar a questão ventilada (e omitida de julgamento), em sede de recurso excepcional, se o manejo dos embargos de declaração para fins de prequestionamento era justificável. O julgamento ficava limitado à anulação do acórdão que julgou os embargos de declaração, devolvendo-o para a origem, caso provido o recurso excepcional, a fim que o Tribunal examine os embargos de declaração e os julgue para suprir o vício apontado. [6]

Nem se diga que o STJ apenas corrigiu eventual equívoco do art. 1.025, que, numa interpretação açodada, poderia levar a crer que a simples oposição de embargos declaratórios já dava por prequestionada a matéria, fazendo com que a Corte Superior tivesse que se manifestar sobre temas inovadores e questões descontextualizadas do processo.
Isso porque, como já categoricamente afirmado acima, para a matéria ser considerada devidamente debatida, a teor do art. 1.025 do CPC, o tribunal superior deve admitir existentes erro, omissão, contradição ou obscuridade no acórdão recorrido.
A solução do CPC é extremamente técnica e adequada porque somente considera o prequestionamento ficto, secumdum eventum litis, quando houver admissão pelo STJ da existência de erro no julgamento dos embargos pelo Tribunal. Caso o relator ou a turma entenda que não houve erro, omissão, contradição ou obscuridade no acórdão recorrido, não há necessidade de considerar fictamente prequestionada a matéria.
Dessa forma, não há espaço para a tese do STJ de que a aplicação do art.  1.025 do CPC/15, em recurso especial, “exige que no mesmo recurso seja indicada violação ao art. 1.022 do CPC/15[7], para que se possibilite ao Órgão julgador verificar a existência do vício inquinado ao acórdão, que uma vez constatado, poderá dar ensejo à supressão de grau facultada pelo dispositivo de lei”.
Além de não haver na lei essa exigência, trata-se de um ônus à parte irrelevante e meramente formalista, na medida em que pouco importa se ela alegou a violação ao art. 1022 do CPC; depende apenas de o relator no STJ considerar como omissa, obscura ou contraditória a questão, e isso não tem qualquer relação com requerer o provimento do recurso especial por infringência à norma do art. 1.022
Ademais, não é essa violação que fará o recurso ser provido, e sim a afronta à norma supostamente infringida e tida por prequestionada. Mais ainda. O art. 1025 é uma norma de conteúdo autoaplicável, que não depende de um requisito externo – alegação de violação a outro dispositivo, no caso, o art. 1022 – para ter concretude.
A conclusão do novo Código, portanto, prima pela celeridade processual em duas frentes: (i) impede a devolução do processo quando a matéria, de fato, foi omissa, obscura ou contraditória no acórdão recorrido e (ii) evita que o STJ tenha que se manifestar sobre matéria suscitada no especial que não foi objeto de um dos vícios apontados acima.
É uma pena que o Superior Tribunal de Justiça tenha retrocedido em tão importante tema, que tinha por objetivo exatamente impedir a demasiada demora na solução do litígio.

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[1] No mesmo sentido: WAMBIER, Luiz Rodrigues e TALAMINI, Eduardo. Curso Avançado de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 16ª edição, 2016, p. 610.
[2] A título de ilustração, a súmula 282/STF aparece, isolada ou conjuntamente com outras, aproximadamente, em 14.456 acórdãos e 370.600 decisões monocráticas do Superior Tribunal Justiça, enquanto a Súmula 211/STJ aparece, nos mesmo termos, em 13.581 acórdãos e 280.709 decisões monocráticas do Superior Tribunal Justiça.
[3] A questão “omissa” aqui é apenas um exemplo de umas das hipóteses de cabimento dos embargos declaratórios, e nada impedia que fosse um ponto “contraditório” ou “obscuro”.
[4] RE 231452/PR, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Primeira Turma, DJ 24/09/2004. Há, contudo, entendimento em sentido contrário, como se pode observar do RE 661521 ED, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 17/04/2012.
[5] WAMBIER, LUIZ RODRIGUES e TALAMINI, Eduardo. Ob. cit., p. 612.
[6] MAZZEI, Rodrigo in Breves comentários ao Novo Código de Processo Civil/Tereza Arruda Alvim Wambier [et. al.] coordenadores. São Paulo: editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 2283.
[7] Art. 1.022.  Cabem embargos de declaração contra qualquer decisão judicial para:
I – esclarecer obscuridade ou eliminar contradição;
II – suprir omissão de ponto ou questão sobre o qual devia se pronunciar o juiz de ofício ou a requerimento;
III – corrigir erro material.

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