O STJ e a extinção do processo sem análise do mérito, por Rodrigo Becker e Victor Trigueiro

Prezados leitores do Jota,
Depois de uma pausa em julho na coluna, estamos de volta, analisando a aplicação do CPC pelos Tribunais.
As questões previdenciárias sempre tiveram peculiaridades que fizeram com que fossem julgadas pelos Tribunais, muitas vezes, com algum desapego às normas processuais, em respeito ao conteúdo social que norteia tais questões.
Daí que se cunhou a expressão informal “julgamento pró-segurado”, quando se refere a uma decisão de tribunal que abre mão de uma regra processual, com o objetivo de conceder um benefício previdenciário.
Exemplo maior disso são as normas processuais referentes à admissibilidade de recursos, que, vez por outra, são deixadas de lado para que o direito material seja concedido ao segurado, muito embora tal fato dificilmente seja exposto na própria decisão, certamente para evitar debates acerca do acerto ou não do afastamento da regra de processo.
Não bastasse isso, recentemente, o Superior Tribunal de Justiça deu um passo à frente, e adotou posição atípica em julgamento de recurso especial repetitivo, afirmando que, em matéria previdenciária, a insuficiência ou falta de provas ocasiona a extinção do processo sem análise do mérito, ensejando a possibilidade de propositura de nova demanda, idêntica à anterior, com a juntada de novas provas.
Confira-se a ementa do julgado:
  1. Tradicionalmente, o Direito Previdenciário se vale da processualística civil para   regular   os  seus  procedimentos, entretanto,  não  se  deve  perder  de  vista  as peculiaridades das demandas  previdenciárias, que justificam a flexibilização da rígida metodologia    civilista,    levando-se    em   conta   os   cânones constitucionais  atinentes  à Seguridade Social, que tem como base o contexto   social   adverso   em   que  se  inserem  os  que  buscam judicialmente os benefícios previdenciários.
  2. As normas previdenciárias devem ser interpretadas de modo a favorecer os valores morais da Constituição Federal/1988, que prima pela proteção do Trabalhador Segurado da Previdência Social, motivo pelo qual os pleitos previdenciários devem ser julgados no sentido de amparar a parte hipossuficiente e que, por esse motivo, possui proteção legal que lhe garante a flexibilização dos rígidos institutos processuais. Assim, deve-se procurar encontrar na hermenêutica previdenciária a solução que mais se aproxime do caráter social da Carta Magna, a fim de que as normas processuais não venham a obstar a concretude do direito fundamental à prestação previdenciária a que faz jus o segurado.
  3. Assim como ocorre no Direito Sancionador, em que se afastam as regras da processualística civil em razão do especial garantismo conferido por suas normas ao indivíduo, deve-se dar prioridade ao princípio da busca da verdade real, diante do interesse social que envolve essas demandas.
  4. A concessão  de benefício devido ao trabalhador rural configura direito  subjetivo individual garantido constitucionalmente, tendo a CF/88  dado  primazia à função social do RGPS ao erigir como direito fundamental  de  segunda  geração  o  acesso à Previdência do Regime Geral;  sendo  certo  que  o trabalhador rural, durante o período de transição, encontra-se    constitucionalmente    dispensado    do recolhimento   das   contribuições,   visando  à  universalidade  da cobertura  previdenciária e a inclusão de contingentes desassistidos por meio de distribuição de renda pela via da assistência social.
  5. A ausência de conteúdo probatório eficaz a instruir a inicial, conforme determina o art. 283 do CPC, implica a carência de pressuposto de constituição e desenvolvimento válido do processo, impondo a sua extinção sem o julgamento do mérito (art. 267, IV do CPC) e a consequente possibilidade de o autor intentar novamente a ação (art.  268 do CPC), caso reúna os elementos necessários à tal iniciativa.
  6. Recurso Especial do INSS desprovido. (REsp 1352721/SP, Rel. Min. NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, CORTE ESPECIAL, DJe 28/04/2016)
No julgamento do recurso especial repetitivo, como se percebe, o STJ tomou rumo atípico quanto à regra processual do ônus da prova e do conteúdo das sentenças que resolvem o mérito do processo. Chama a atenção alguns dos argumentos utilizados pelo relator para a adoção da tese de que a insuficiência ou falta de provas ocasiona a extinção do processo sem análise do mérito:
As normas previdenciárias devem ser interpretadas de modo a favorecer os valores morais da Constituição Federal/1988, que prima pela proteção do Trabalhador Segurado da Previdência Social, motivo pelo qual os pleitos previdenciários devem ser julgados no sentido de amparar a parte hipossuficiente e que, por esse motivo, possui proteção legal que lhe garante a flexibilização dos rígidos institutos processuais.
Assim como ocorre no Direito Sancionador, em que se afastam as regras da processualística civil em razão do especial garantismo conferido por suas normas ao indivíduo, deve-se dar prioridade ao princípio da busca da verdade real, diante do interesse social que envolve essas demandas.
De há muito se conhece a máxima do direito probatório de que o ônus da prova cabe à parte que alegar o fato constitutivo do seu direito (autor) ou extintivo, impeditivo ou modificativo do direito alegado (réu). Essa regra, que já sofria mitigação em leis específicas (consumidor e ação civil pública), ganhou mais força mitigatória com o novo CPC, que expressamente prevê a possibilidade de se inverter o ônus da prova, “nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário” (art. 373, § 1º, do CPC).
Feita essa consideração, cabe ressaltar que hoje o sistema probatório passa por três hipóteses processuais, todas elas destinadas a compreender os fatos alegados em juízo, levando a um julgamento de mérito positivo ou negativo do direito reivindicado:
1) a parte que alega o fato tem o ônus de prová-lo;
2) o juiz pode inverter esse ônus, se presente alguma das situações previstas no art. 373, § 1º, do CPC;
3) o magistrado pode, de ofício, determinar a produção de alguma prova conforme art. 370 do CPC.
Portanto, é fácil perceber que tanto as partes, como o juiz, são atores de um sistema que tem por objetivo empreender esforços para comprovar (ou não) os fatos alegados na ação. Esse esforço é expressão do princípio da cooperação, insculpido no art. 6º do Diploma Processual.
Nesse ponto, Daniel Mitidiero[1] foi categórico ao afirmar que o modelo cooperativo pressupõe a efetiva participação das partes na solução do caso, assim como os deveres judiciais de esclarecimento, diálogo, auxílio e prevenção.
Todavia, mesmo que, com toda a cooperação e esforço, o autor não obtenha êxito na prova do direito alegado, a consequência processual é o julgamento de improcedência do pedido, com resolução de mérito, na forma do art. 487, I, do CPC.
Vale aqui a transcrição da lição de Sérgio Luis Wetzel de Mattos, acerca do ônus da prova:
Por um lado, constitui uma norma de conduta para os litigantes (aspecto subjetivo). Por outro, é uma norma de julgamento, segundo a qual, quando faltar a prova dos fatos relevantes do processo, o juiz deverá proferir uma sentença de mérito desfavorável para o litigante que estava encarregado de subministrá-la, já que proibida a decisão de non liquet (aspecto objetivo).[2]
Ainda sobre o tema, Cândido Dinamarco e Bruno Lopes aduzem que é o princípio do interesse que leva a lei a outorgar ao autor o ônus de provar os fatos constitutivos do seu direito, porque esses fatos são a sua causa de pedir, razão pela qual, se não tiverem acontecido e o juiz assim reconheça, a sentença rejeitará a sua pretensão[3].
No Superior Tribunal de Justiça, a orientação não destoa da doutrina:
  1. Não tendo os autores da ação de reintegração se desincumbido do ônus de provar a posse alegada, o pedido deve ser julgado improcedente e o processo extinto com resolução de mérito.
  2. Recurso especial conhecido e provido. (REsp 930.336/MG, Rel. Min. RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, DJe 20/02/2014)
Extrai-se de tudo o que foi dito que a tese deduzida em recurso especial repetitivo pelo STJ (contrariando julgados da própria corte) não encontra respaldo na doutrina, na sua própria jurisprudência, e tampouco na lei.
Afirmar que o direito previdenciário deve ser interpretado de modo a proteger o trabalhador segurado da previdência social, resguardando o hipossuficiente é inovar no ordenamento jurídico processual e admitir que se adote uma técnica de julgamento apenas autorizada por lei: a decisão secundum eventum probationis, pela qual o mérito do processo é resolvido de acordo com o que foi provado nos autos.
Todavia, essa técnica só é autorizada por lei, exatamente porque contraria toda a lógica do processo. Exemplo de norma nesse sentido é a lei de ação civil pública, que em seu art. 16 taxativamente autoriza o ajuizamento de nova ação, quando o pedido tiver sido julgado improcedente por falta de provas.
Em matéria previdenciária não há essa autorização legal. A decisão do Superior Tribunal de Justiça gera grande insegurança jurídica, sobretudo nos demandados, porque, a partir da argumentação utilizada, nada impede que aquela Corte utilize outro direito material previsto na Constituição para justificar, em novos casos, a mitigação do ônus probatório.
Essa mesma crítica, com argumentos robustos, foi feita por Lúcio Delfino, Eduardo José da Fonseca Costa e Newton Pereira Ramos Neto, ao asseverarem:
Sem ingressar no mérito das opções legislativas no tocante a um modelo liberal ou social de processo, é importante ver que mesmo as iniciativas processuais autorizadas pelo legislador não vão ao ponto de permitir a criação de um processo ad hoc para cada direito material que o juiz, numa compreensão subjetiva, pretenda realizar. Noutras palavras, mesmo em tais circunstâncias é preciso considerar o texto legal como ponto de partida. Hipóteses de correção da vulnerabilidade processual podem ser pensadas de lege ferenda, mas não podem ser impostas por um modelo decisionista de interpretação jurídica.[4]
O que se viu na decisão do STJ foi a criação de um direito processual para causas previdenciárias, que não encontra respaldo na lei, nem na teoria processual.
Nem se diga que o acórdão fixou interpretação para os casos em que a parte não traz nenhuma prova na inicial, e por isso, a solução encontrada possibilitaria que se renovasse o pedido com a devida comprovação, afinal, esse é um requisito da petição inicial.
Em primeiro lugar, o caso concreto tratava de necessidade de comprovação de tempo de trabalho rural, em que a Lei 8.213/91 exige a comprovação documental do tempo de serviço para concessão da aposentadoria. No caso em análise o segurado apresentou exclusivamente a prova testemunhal, mas o Tribunal entendeu que era insuficiente e extinguiu o feito sem resolução do mérito.
Vê-se que não se trata de ausência de qualquer prova, mas da falta de prova material, que era necessária para a comprovação da condição de rurícola, sem a qual, a lei não admite a comprovação da qualidade.
Portanto, fica claro que o autor teve a oportunidade de provar e não o fez. Por que? Por que não tinha direito? É possível, e pelo que foi trazido aos autos, de fato, não tinha direito, razão pela qual a resolução do mérito do processo era a solução processualmente correta.
É de Marinoni, Arenhardt e Mitidiero, que se extrai a ideia de que o ônus da prova serve como um guia para o juiz, uma regra de julgamento, em que ele se livra do estado de dúvida e decide o mérito do processo. Destarte, “se a dúvida paira sobre a alegação de fato constitutivo, essa deve ser paga pelo demandante, tendo o juiz de julgar improcedente o seu pedido”[5].
Ademais, ainda que a parte não tivesse trazido a prova correta, poderia, ainda, o juiz, ter determinado a produção da prova, conforme se viu acima, a partir do princípio da cooperação. Não o fez, e mais, com o entendimento do STJ, transferiu o prejuízo ao réu, que poderá ser demandado novamente, por um fato que o autor não conseguiu comprovar, e que o juiz, por omissão, não auxiliou a obter a prova.
Trata-se inegavelmente de uma inovação processual adotada pelo Superior Tribunal de Justiça, que, em nome de um direito social, aplicou um método processual probatório excepcional, conferido por lei a casos específicos, a uma situação concreta.
Estamos diante do modelo americano, em que o Judiciário pode criar determinadas regras processuais, como o Rules Enabling Act of 1934, em que é possível se estabelecer normas processuais referentes à colheita de provas. Todavia, o direito aplicável aqui é o brasileiro.

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[1] MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil: pressupostos sociais, lógicos e éticos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
[2] MATTOS, Sérgio Luis Wetzel de. Da iniciativa probatória do juiz no processo civil. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 48/49.
[3] DINAMARCO, Cândido Rangel e LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. Teoria geral do novo processo civil. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 183.
[4] DELFINO, Lucio; COSTA, Eduardo José da Fonseca e RAMOS NETO, Newton Pereira. Existe um Direito Processual para a Previdência Social?, disponível em http://www.conjur.com.br/2016-mai-16/existe-direito-processual-previdencia-social.
[5] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz e MITIDIERO, Daniel. Novo código de processo civil comentado, 3ª edição. São Paulo: editora Revista dos Tribunais, 2017, p. 483.

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