O labirinto e a origem subconsciente do usucapião extrajudicial: a nova lei 13.465/17 (Parte III), por André Abelha

Caros,
Depois do condomínio de lotes e da alienação fiduciária, chegou a vez da usucapião extrajudicial.
Para começar: devemos escrever "a" usucapião ou "o" usucapião? A verdade é que tanto faz. Como esta palavra é um substantivo comum de dois gêneros, ele admite os artigos feminino e masculino. Por isso, se o Word sublinhar o seu texto, ignore; e se alguém te chamar de néscio ou iletrado, branda em sua defesa a 5ª edição do Vocábulo Ortográfico da Língua Portuguesa, produzido pela Academia Brasileira de Letras.
Tudo bem que o reconhecimento extrajudicial de usucapião não é tão novo assim, e existe desde 2016, quando entrou em vigor o art. 216-A da lei 6.015/73 (Lei dos Registros Públicos), causando certa euforia no mercado.
O objetivo era, em linhas gerais, agilizar a regularização de parte dos imóveis usucapiendos, com benefícios de natureza econômica e social, e liberando o Poder Judiciário de muitas demandas.
No regime do Código de Processo Civil ("CPC") anterior, o que geralmente se passava em um processo judicial de usucapião? O juiz, ao receber pela primeira vez o processo, encaminhava os autos para o Ministério Público ("MP")1, que inevitavelmente opinava pela correção da petição inicial, juntando uma avassaladora lista padrão de providências a serem tomadas e documentos a serem apresentados. Era como se o autor da ação tivesse pedido uma licença para construir a bomba atômica. Não passarás.
Começava, então, a via crucis do possuidor e de seu advogado. Por mais documentos que fossem juntados, o resultado era o mesmo: "O MP reitera a manifestação de fls." E o juiz? "Ao autor." Com a vinda da petição explicando que uma parte das exigências não estava correta, outro despacho: "Ao MP". Após o promotor reiterar a mesma manifestação inicial, os autos voltam do gabinete do juiz com outro "ao autor". O ciclo tornava-se quase infinito: "ao MP""ao autor""ao MP"...
Nem mesmo a chamada Meta 2 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), criada em 2009 para permitir o encerramento de processos antigos, resolveu a situação das ações de usucapião.
E não se diga que todo esse temor desmedido em acolher o pedido do possuidor se justificava pelo risco de perda injusta da propriedade pelo réu da ação. Fosse assim, as ações de execução (com penhora de imóvel) e de adjudicação compulsória padeceriam do mesmo mal. Só que ali existe apenas a demora inerente a todo processo judicial. Por isso, o prêmio continua nas mãos dos juízes que proferem a rara sentença (de procedência) de usucapião.
Como se isso não bastasse, desenvolveu-se no país, para o desespero dos proprietários de terrenos invadidos, uma jurisprudência majoritária segundo a qual existe conexão entre as ações reivindicatória (movida pelo dono do imóvel) e de usucapião (ajuizada pelo invasor, como estratégia de defesa). Uma não é julgada sem a outra. Agora imaginem: se uma ação de usucapião, sem litígio, e com o interesse do autor em fazê-la andar, dificilmente chega ao fim, o que dizer de um caso em que o invasor não tem o menor interesse em impulsionar o processo?
Logo, custo a crer que os anjos idealizadores da usucapião extrajudicial não tenham pensado, nem de relance, nesse drama silencioso. Sim, pois a criação de tal procedimento extrajudicial foi uma genuína situação win-win: lucraram os juízes, que se livraram, ao menos em parte, desse tedioso e interminável processo, e ganharam muito mais os possuidores de imóveis sem litígio, que passaram a nutrir a esperança de não serem sugados para esse verdadeiro labirinto judicial.
Sublinhe-se que o reconhecimento extrajudicial de usucapião não alterou as regras materiais; ele traz apenas normas procedimentais. Em outras palavras, o legislador, em 2016, adicionou um caminho para se regularizar, via usucapião, a propriedade. Todavia, para os casos-em-que-isso-pode-ocorrer, permanecem as mesmas hipóteses, previstas em diversas leis.
Então, antes de entrar propriamente nas mudanças da lei 13.465/17, é importante dar uma breve visão panorâmica dos tipos existentes de usucapião. Antes que você fuja: somente vou me valer de imagens.
Pois bem. Cada modalidade de usucapião se diferencia das demais pelo prazo mínimo de posse e demais requisitos, mas todas compartilham três requisitos básicos:
Não há um modo rígido de classificar os tipos. Para fins meramente didáticos, separo-os em dois grupos principais: individual e coletivo.
Primeiro, o usucapião individual. Na tabela abaixo, a mão vermelha significa "5 anos"; a Constituição Federal está referida como "CF", enquanto "CC" significa o Código Civil e "EC", o Estatuto da Cidade (lei 10.257/01):
Conheço apenas uma modalidade de usucapião coletivo. A imagem abaixo já reflete as alterações da nova lei 13.465/17, que alterou o artigo 10 do Estatuto da Cidade ("EC"):
Se, entretanto, você prefere dividir as modalidades de usucapião pela situação do imóvel (urbano ou rural), os conjuntos ficariam assim:
Finalmente entrando na parte procedimental, a divisão é a seguinte:
Como se pode ver na imagem acima, considero, ao contrário de alguns, que a legitimação da posse e a legitimação fundiária são espécies de usucapião. Não existe diferença material, apenas de procedimento: se o caso for de legitimação da posse ou fundiária, no âmbito da Reurb, devemos observar o rito mais simples previsto na nova lei 13.465/17, que revogou os dispositivos da lei 11.977/09 que tratavam da regularização da posse (não havia previsão de regularização fundiária). Para todos os demais tipos de usucapião, aplica-se o art. 216-A da Lei dos Registros Públicos ("LRP").
Afinal, quais foram, então, as novidades? A lei 13.465/17 alterou algumas regras do procedimento extrajudicial, que listo para conhecimento de todos. Os incisos e parágrafos citados ao final de cada item referem-se sempre ao art. 216-A da Lei dos Registros Públicos ("LRP"), que regula a usucapião em cartório.
Eis as cinco inovações:
1) Ata notarial: Um dos documentos a serem apresentados ao oficial do registro de imóveis é a ata notarial lavrada pelo tabelião de notas, atestando o tempo de posse do requerente e de seus antecessores2, e suas circunstâncias. O CPC, no art. 384, ao tratar da ata notarial, prevê que os fatos podem ser atestados por "dados representados por imagem ou som gravados em arquivos eletrônicos". A nova lei agora estipula, expressamente, que esse dispositivo se aplica ao usucapião extrajudicial. Evidentemente isto nem seria necessário, dada a unidade do nosso sistema jurídico. Mas, como às vezes o óbvio para alguns é também o óbvio para outros (só que em sentido oposto), o legislador quis eliminar as discussões que infelizmente já começavam a se avolumar nos cartórios (alteração do inciso I).
2) Notificação por edital: esta foi uma alteração muito feliz, que vai destravar procedimentos em todo o Brasil. Agora, se o notificando não for encontrado, ou estiver em lugar incerto ou não sabido, tal fato será certificado pelo cartório, que fará a notificação por edital com prazo de 15 dias, mediante duas publicações em jornal local de grande circulação (inclusão do §13). Melhor ainda: se a Corregedoria estadual permitir, a publicação do edital poderá ocorrer em meio eletrônico (inclusão do §14).
3) Concordância dos titulares e confrontantes do imóvel: Essa foi, sem dúvida, a transformação mais importante. Até aqui, o silêncio de "qualquer um dos titulares de direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel" era presumido como discordância. Na prática, o procedimento não funcionava, pois só era possível usucapir extrajudicialmente o imóvel nos pouquíssimos casos em que os titulares e confrontantes do imóvel eram encontrados e concordavam expressamente. Agora, em boa hora, inverteu-se a lógica. Se esses titulares, notificados (pessoalmente ou por edital), não se opuserem ao pedido, a sua concordância será presumida (alteração do §2º e do §6º).
4) Unidade em condomínio edilício: Se o imóvel a ser usucapido integra um condomínio edilício, não é necessário obter o consentimento (expresso ou presumido) dos confrontantes, bastando a notificação do síndico. Aqui, entretanto, vai uma ressalva: se o espírito da norma é evitar o risco de avanço indevido sobre o terreno, a melhor interpretação teleológica nos diz que, sendo a unidade um lote ou uma casa (e respectiva fração ideal), em tese, pode haver invasão de área privativa vizinha, o que impõe o consentimento do confrontante, mesmo em caso de condomínio edilício (inclusão do §11). Em qualquer caso, porém, estará dispensada a notificação de todos os condôminos (inclusão do §12º).
5) Procedimento de justificação administrativa: O possuidor tem que apresentar ao registrador o justo título (o qual somente é essencial para o usucapião ordinário) ou quaisquer outros documentos que demonstrem a origem, a continuidade, a natureza e o tempo da posse, tais como o pagamento dos impostos e das taxas que incidirem sobre o imóvel. Se o registrador entendesse que os documentos eram insuficientes, a lei era omissa sobre o próximo passo. Agora, está claro que a posse e os demais requisitos necessários ao reconhecimento da usucapião poderão ser comprovados no próprio cartório, em procedimento de justificação administrativa, obedecendo-se, no que couber, às regras da produção antecipada de provas previstas nos arts. 382 e 382 do CPC (inclusão do §15).
Uma vez concluído o procedimento, e reconhecido um dos tipos de usucapião, o oficial procederá ao registro, como no exemplo abaixo:
Não quero me alongar mais. Se alguém discordar ou tiver algo a acrescentar, não hesite em se manifestar.
Ainda na série sobre as alterações trazidas pela lei 13.465/17, pretendo falar, no próximo post, sobre outro relevante tema: as novas regras envolvendo os loteamentos de acesso controlado e os seus impactos sobre a atual discussão judicial envolvendo as associações de moradores.
Até breve!
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1 A atuação do MP era obrigatória por força do art. 944 do Código de Processo Civil ("CPC") de 1973. O atual CPC, que entrou em vigor em março/2016, não exige mais essa intervenção, salvo em ações de usucapião coletivo ou quando houver interesse público ou social (art. 178, I e III).

2 Se o período dos antecessores não for necessário para atender ao requisito de lapso temporal mínimo, basta comprovar o tempo de posse do requerente.

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