A fundamentação "per relationem" e o CPC/2015, por Pedro Abrão Marques Junior

Não raras as vezes, o advogado, no exercício da advocacia contenciosa, depara-se com decisões de fundamentação sucinta, e, em algumas, o julgador restringe-se a motivar sua escolha fazendo remissão a atos decisórios anteriormente proferidos ou até mesmo às peças processuais das partes e do parquet. “Mantenho a decisão pelos seus próprios fundamentos” ou “As alegações do autor merecem prosperar, e, amparado no parecer do Ministério Público de fls. X, julgo procedente a demanda”: eis alguns exemplos da chamada fundamentação per relationem ou aliunde ou, simplesmente, fundamentação referencial.
Admitida sob a égide do Código de Processo Civil de 1973, há divergências sobre a sua perpetuação na sistemática do novo digesto processual civil. Alguns defendem que o novo Código, em especial o famigerado §1º do art. 489, sepultou a possibilidade de sua utilização pelos magistrados e outros sustentam o eventual acolhimento dos tribunais pátrios dessa vedação, consoante artigo da coluna “CPC dos Tribunais” do portal JOTA, subscrito por Rodrigo Becker e Victor Trigueiro em 19 de janeiro de 2017.[1]
Malgrado existam sólidas críticas na doutrina acerca da fundamentação referencial, o fato é que, rogadas as vênias a entendimentos diversos, o Código de Processo Civil vigente não impossibilitou que o Aplicador da Lei utilize, na exposição de seus motivos, referências à outras decisões ou peças processuais. Isso porque o codex não impõe que a decisão seja autônoma, exarada de uma forma inédita, mas simplesmente que às partes – e à sociedade, em geral – seja assegurada a publicidade das razões de convencimento do Juízo, sendo certo que se, por exemplo, o julgador faz, na fundamentação da sentença, remissão a parecer do Ministério Público e este consta nos autos, a mens legis será atingida, vez que, ao ler esta peça processual, a justificação poderá ser conhecida.
Recomenda-se, contudo, que o julgador se utilize dessa forma de fundamentar cum granus salis, pois, se sua utilização não for escorreita, isso é, nos limites que permite o §1º do art. 489 do Código de Processo Civil, a validade da decisão restará maculada. É dizer: a remissão promovida pelo Juízo não pode, por exemplo, fazer com que se olvide de enfrentar os argumentos deduzidos pela parte vencida que seriam capazes de infirmar a tese adotada (art. 489, §1º, inc. IV, CPC) ou que não se estabeleça a correlação necessária entre a manifestação ou decisão referida e a que está sendo exarada (art. 489, §1º, inc. III, CPC). Nesse caso, imperioso ressaltar também que o rol do §1º do art. 489 do CPC é meramente exemplificativo, consoante orientação assentada no enunciado de nº 303 do Fórum de Permanente de Processualistas Civis.
Salienta-se, por outro lado, que a fundamentação per relationem em atos decisórios de instâncias ad quem, isso é, quando, por exemplo, um acórdão mantém uma sentença “pelos seus próprios fundamentos”, haverá a nulidade por ausência de justificação. Isso porque, embora a motivação aliende seja permitida, o aviamento de recurso pressupõe obrigatória inovação na matéria de direito por meio da impugnação específica da decisão recorrida, tendo em vista o princípio da dialeticidade. Com efeito, se a parte recorrente maneja o recurso inova em sua argumentação, consequentemente não poderá a Corte manter uma sentença “pelos seus próprios fundamentos”, haja vista o dever de apreciação das razões recursais.
Caso haja inobservância, pelo recorrente, dessa dialética própria dos recursos, cingindo-se as razões recursais à repetição da argumentação já deduzida na instância primeva e não havendo impugnação específica do decisum vergastado, caberá ao relator inadmitir o recurso, conforme indicado no art. 932, inc. III, CPC.
Daniel Amorim Assumpção Neves apresenta como fundamento para o óbice à aplicação da fundamentação per relationem no novo CPC o fato de o legislador prever no art. 1.021, §3º do CPC, que “é vedado ao relator limitar-se à reprodução dos fundamentos da decisão agravada para julgar improcedente o agravo interno”, sendo este um exemplo da opção legislativa.[2] Entretanto, permissavênia, esclarece-se que o dispositivo citado pelo renomado autor harmoniza-se com a possibilidade de utilização da motivação aliunde aqui defendida, haja vista que, conforme asseverado, esta não poderá ser utilizada quando do manejo de um recurso, considerando a força de inovação da dialética recursal. Nesse caso, não deverá o relator reproduzir a decisão agravada, mas sim não conhecer do agravo por ausência de impugnação específica. Ademais, importante realçar, também, que a vedação do art. 1.021, §3º do CPC está sendo mitigada pela jurisprudência que se consolida do Superior Tribunal de Justiça (“A Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, ao interpretar o art. 1.021, §3º do CPC/2015, assentou que o dispositivo não impõe ao julgador a obrigação de reformular a decisão agravada para, em outros termos, reiterar seus fundamentos, notadamente diante da falta de argumento novo deduzido pela parte recorrente” – Embargos de declaração no Agravo em Recurso Especial nº 980.631, Rel. Ministra Regina Helena Costa, DJE de 22.5.2017).
Em suma, o fato de o art. 1.021, §3º do CPC não permitir que o relator reproduza no agravo interno os fundamentos da decisão agravada não elide a possibilidade da fundamentação per relationem que não seja realizada em decisão sobre recurso interposto. Caso o acórdão queira, por exemplo, fazer remissão ao parecer da Procuradoria Geral de Justiça, não há nenhuma vedação para assim o fazê-lo.
Importante sobrelevar, igualmente, que a fundamentação per relationem não pode ser utilizada para referenciar documentos acostados aos autos, posto que, neste caso, não se faz referência a argumentos ou fundamentos, mas sim a elementos de prova, sendo necessária a devida correlação das provas com a pretensão perquirida. Sobre isso, escólio de Nelson Nery Júnior:

[…] Fundamentar significa o magistrado dar as razões, de fato e de direito, que o convenceram a decidir a questão daquela maneira. A fundamentação tem implicação substancial e não meramente formal, donde é lícito concluir que o juiz deve analisar as questões postas a seu julgamento, exteriorizando a base fundamental de sua decisão. Não se consideram “substancialmente” fundamentadas as decisões que afirmam que, “segundo os documentos e testemunhas ouvidas no processo, o autor tem razão, motivo por que julgou procedente o pedido”. Essa decisãé nula porque lhe falta fundamentação.
De outro modo, é fundamentada a decisão que de reporta a parecer jurídico constante dos autos, ou às alegações das partes, desde que nessas manifestações haja exteriorização de valores sobre as provas e questões submetidas ao julgamento do juiz. Assim, se o juiz na sentença diz acolher o pedido “adotando as razões do parecer do Ministério Público”, está fundamentada a referida decisão, se no parecer do Parquet houver fundamentação dialética sobre a matéria objeto da decisão do magistrado.[3]

Outrossim, deve o magistrado individualizar a peça processual ou fragmento a que se faz referência, não sendo possível, por exemplo, que se faça a justificação aliunde com supedâneo em uma petição, por exemplo, inepta e desconexa, com uma centena de páginas. Sobre isso, entendimento do Superior Tribunal de Justiça: “A simples remissão empreendida pelo Juiz a quo na decisão agravada a mais de duas centenas de documentos não permite aferir quais foram as razões ou fundamentos incorporados à sua decisão para indeferir a indisponibilidade dos bens do réu, bem como o seqüestro de bens e valores dos seus representantes, exsurgindo, daí, a nulidade do julgado” – Recurso Especial nº 1.399.997/AM, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, DJE de 24.10.2013. Nesse julgado, além da referência ter sido feita a documentos – o que, como visto, é vedado – não houve também a correta individualização, perfazendo a documentação referida em mais de duas centenas de páginas.
Cumpre frisar, ademais, que se revela recomendável, quando possível, que o julgador transcreva os trechos da manifestação ou ato decisório referido, pois o Superior Tribunal de Justiça já anulou acórdão do Tribunal de Justiça do Mato Grosso em que isso não fora realizado: “É pacífico no âmbito do STF e do STJ o entendimento de ser possível a fundamentação per relationem ou por referência ou por remissão, não se cogitando nulidade ou ofensa ao artigo 93, inciso  IX,  da  Constituição Federal, desde que os fundamentos   existentes   aliunde  sejam  reproduzidos  no  julgado definitivo (principal), o que, como visto, não ocorreu na espécie” (Recurso Especial nº 1.426.406/MT, Rel. Min. Marco Muzzi, Relator designado Min. Luís Felipe Salomão, DJE de 11.5.2017).
Digno de nota, também, que esta discussão é desnecessária no âmbito do Juizado Especial, pois o art. 489 do CPC não é aplicável, consoante entendimento sedimentado no enunciado de nº 162 do Fórum Nacional de Juizados Especiais (FONAJE): “Não se aplica ao Sistema dos Juizados Especiais a regra do art. 489 do CPC/2015 diante da expressa previsão contida no art. 38, caput, da Lei 9.099/95”. Além disso, o art. 46 da Lei nº. 9.099 admite expressamente a possibilidade de utilização da fundamentação per relationem: “O julgamento em segunda instância constará apenas da ata, com a indicação suficiente do processo, fundamentação sucinta e parte dispositiva. Se a sentença for confirmada pelos próprios fundamentos, a súmula do julgamento servirá de acórdão”.
Alguns visualizam existir, também, motivação aliunde quando o julgador fundamenta sua decisão com supedâneo em outra proferida em outro processo. Imagine, por exemplo, que várias pessoas ingressem com demanda de idêntico pedido e causas de pedir. Trata-se de situação costumeira na advocacia serial. Não será necessário, dada a celeridade e economia processual, que o magistrado fundamente individualmente cada sentença. É dizer: poderá o Juízo utilizar um paradigma a ser aplicado aos casos idênticos, com a relevante ressalva de que deverá efetuar a necessária fundamentação no tocante à existência de nexo o pronunciamento referenciado e o que será prolatado.
Com relação à jurisprudência, inicialmente esta se inclinou para o não acolhimento da fundamentação per relationem no novo CPC. Sobre isso, há expresso reconhecimento da vedação no julgamento dos embargos de declaração em agravo em recurso especial de nº  1.540.894/SP, relatoria do Min. Paulo de Tarso Sanseverino, DJE de 2.6.2016.
No entanto, após o transcurso de mais de um ano de vigência da nova legislação processual civil, vê-se que a jurisprudência dominante no STJ é a da plena compatibilidade do novo codex com a modalidade de fundamentação analisada. Sobre isso, precedentes na seara cível: REsp nº 1.570.427/RN, Rel. Min. Herman Benjamin, DJE de 2.9.2016, RMS 50.400/MG, Rel. Min. Herman Benjamin, DJE de 10.5.2017 e AgInt no AREsp 128.086/RS, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, DJE de 21.2.2017.
Assim, tem-se que, não obstante as críticas doutrinárias, a fundamentação per relationem é compatível com o Código de Processo Civil de 2015, respeitados os limites do seu art. 489, §1º, devendo o julgador utilizá-la com parcimônia, atento às garantias processuais das partes de respeito ao contraditório, seja em seu aspecto formal ou substancial.

Comentários